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Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 12/10/2023

Sons à deriva no Barreiro.

OUT.FEST’23: à superfície do ar

Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 12/10/2023

[“BEAMS”]

Pequenos tubos azúis entrelaçados no braço de cada um dos músicos. Instrumentistas barreirenses da Academia de Jazz “Os Franceses” e da Escola de Música da Banda Municipal do Barreiro. A deambular através do público, ordeiramente disposto, sentado ou encostado em cada recanto do PADA Studios, na descrição – “Galeria e Residência Artística localizada numa zona pós-industrial na margem Sul.” Bolas de basquete batidas contra o solo. Dá-se início à 19ª edição do OUT.FEST e convém recordar a descrição do mesmo – “Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro”. A evocação de um tempo primordial, da experimentação livre e sem barreiras, como tão bem descrito na folha que acompanha o concerto de Alvin Curran, acrescentamos com entusiamo do primeiro dia e de sempre – finalmente! – “exercício com ‘oboes d’ amore’, evocando os dadaístas, os modernistas, os punks, os presidentes de câmara de Darmstadt, os carrocéis, Thelonious Monk” [tradução livre]. Um caramujo soprado com toda a vitalidade de um octagenário e a convocar-nos, a todos sem excepção, para o concerto de abertura. Uma bonita, e adjectivação semelhante que nos possamos lembrar e inventar, maneira para descrever na imperfeição de cada palavra aquilo que se pôde assistir no passado dia 04 de Outubro. Um plano horizontal, horizonte longínquo e convocador da participação de todos. A democracia sem representatividade. Cada um de nós não é meramente ouvinte. Participamos, porque Alvin Curran, na sua exaltação, nos impele para movimentos circulatórios de respiração até ficarmos sem fôlego. Ágora no pavilhão. No Barreiro. Nas “barbas” do mausóleo de Alfredo da Silva. Um levantamento popular. Exagero assumido, mas sentido. O caramujo, os instrumentos de sopro tocados sob uma direcção precisa. Convocam as tágides, que já não habitam Lisboa, mas se dirigem para a “margem certa”. Exercício entre o jazz e a electrónica, desconstruída, retalhada, de corta e cose permanente. Cerzir espaço. A gravação sonora de cada momento, trabalhada e retratada em cada loop que Curran ia introduzindo sistematicamente ao longo de todo o concerto. Esta pesquisa, tão aparentemente simples e tão vital. Ao alcance de uns quantos, muito poucos, eleitos. Espaços livres. Métrica e cadência límpida. Num mundo de imprecisões, de discursos e práticas maniqueístas, reconforta-nos a existência de um “tuffo di mare”. Não há limites. O profundo vai-se conhecendo em cada turbilhão de uma nova descoberta. Sopros novamente. Loops permanente lançados. Os gestos, e tão vivos que são, de Curran, ora de mão apontada para os instrumentistas, ora subitamente cerrando-a dão o mote. A gratuitidade do concerto, bela prática que se repetiu noutros dias, as composições etárias heterogéneas das orquestras reforçam o que já de si vem sendo uma prática recorrente e momento marcante do OUT.FEST – a abertura. Socorrendo-nos de memória curta – Will Guthrie & Ensemble Nist-Nah [2022], a homenagem a Eliane Radigue e os colchões como cadeiras [2021] e ‘Kimbo Slice’: Gabriel Ferrandini + Camerata Musical do Barreiro (Ft. Miguel Abras) [2019].

No ouvido interno, o sopro dos tubos azuis. Procuramos ponto de ligação na senda da “Música Exploratória do Barreiro”. Carlos “Zíngaro” [Escola de Jazz – 06 de Outubro]. Associação demasiado óbvia pela proximidade geracional, pelo campo colaborativo que o músico português criou com Alvin Curran. No cristalino do gesto de ambos encontramos curva larga e deslizante. Carlos Zíngaro a solo é para marcar a duplo sublinhado. Jamais avesso em colaborar com diferentes músicos, não somente na área do jazz. Com ou sem projecções, mas é a solo que a sua música ganha transcendência. Toca nuvem. Exige do público uma atenção não contemporânea. Concentração bem maior que um simples swipe left. A recusa, com e para ele, jamais será opção. Um violino e um arco, para precisão, dois tipos de arco. Um palco despido, nota – dispensavam-se as luzes. A encimá-lo, ao músico e ao palco da Escola de Jazz, um quadro com a inscrição – “Sociedade Cooperativa Operária do Barreiro”. Novamente, a recordação de um passado colectivo. De interesses comuns. Na sala, praticamente lotada, o público expõe gesto de concentração. A simplicidade e multiplicidade. Um instrumento e a exacta percepção, contradição assumida, que não é somente um som que emerge das cordas. São vários. É uma técnica apurada de anos e anos. Imaginamos “Zíngaro” no seu atelier e sem fazer qualquer distinção entre pincéis, lápis e arcos a desenhar, contornar, a marcar e remarcar todas as configurações impossíveis. Tememos pela saúde do pulso, das falanges e das falangetas. Nada a recear. São os “Beams” que escreve Curran. Novamente, a folha de sala do primeiro concerto – “tudo perfeitamente sincronizado com a poética da música”.

O princípio. O gesto inicial. Deslumbrar-nos com as seringueiras da estação, ver carruagens em decomposição, acompanhar a linha da marginal e praia fluvial todos os caminhos teriam de dar a lugar familiar – SIRB – Os Penicheiros – dia 05. Concerto de Sven-Åke Johansson & Jan Jelinek. A conjugação sempre eterna, quanto também o é a discussão em volta da electrónica & jazz. Ainda hoje. E justifica-se. Porque a cada excelente paradigma se sucedem uma catefrada de momentos pastelosos, sobretudo quando se juntam sintetizadores e bateria. Puxar muito pela cabeça não faz falta. Cada um se lembrará, sem o mínimo esforço, de uns quantos exercícios mal-amanhados e talhados em faca romba. Não foi o caso. Aparentemente entediante. Como o tédio, na maior parte das vezes, não fosse a suave melancolia do tempo que passa. Jamais em atitude de aborrecimento. Há mestria. A sequência é bem desenhada. As paragens nunca o são. Antes momentos de ligação. Talhas sulcadas para nova direcção. Ninguém conduz. Hierarquia inexistente. Ao mesmo tempo no banco da frente e no banco de trás. Somos conduzidos. Reflexos em espelho retrovisor, que tornam os objectos bem mais próximos do que efectivamente estão. A ligação pontual entre os dois músicos, tendo tido materialização em dois registos sonoros com a designação de Puls-Plus-Puls. O expectável surpreendente. Evocam paisagens psicadélicas com a mesma facilidade com que nos entrelaçam num aparente enredo sem saída. Nada mais falso. Saber escutar é uma das muitas manifestações da paciência. Concerto que se desenha ao longo da entrada na noite, noite. Esboço vincado de uma conjugação feliz. A confirmação de que mais relevante do que se faz é a forma como. Na forma, nas dinâmicas criadas e no eterno desejo de novo regresso aos “Os Penicheiros”, descemos para contemplar a out.ra margem.



[“GEOGRAFIAS DE INTERVENÇÃO”]

Objectos de apagamento. Apraz-nos, numa posição altamente confortável e muito pouco crítica, compreender a música e respectivas apresentações ao vivo [concertos], como momentos de reflexão. Aparentemente, haverá muito poucas tangentes entre Rojin Sharafi, Brìdghe Chaimbeul, Cucina Povera, Voice Actor e DJ Marcelle. O facto comum de serem todas mulheres é ponto que as une. Há mais, um trabalho de pesquisa sonora mais ou menos profundo e constante. Ainda a vontade intrínseca de apresentarem um discurso e voz própria, em que o termo concessão não faz parte do léxico. Discutir se será categorizável como experimental ficará para hipotéticas e desejadas conversas posteriores. Desenham-se entre elas eixo comum – um discurso político vincado, mesmo que assumindo matizes diversas.

A meio, Rojin Sharafi dirige-se ao público, maioritariamente sentado no chão da sala A4 [dia 04 de Outubro], exclamando contra o regime opressivo iraniano, país de que é originária e cujas mulheres — oh, novidade — são as principais vítimas. Pequena nota para o burburinho incomodativo vindo do bar e que claramente retirou força ao discurso. Não nos ficaria mal, enquanto público, escutar. Numa época em que o médio oriente voltou à agenda e os lobos da extrema direita se protegem em alcateia bem coordenada é exercício astuto – estar alerta. A sonoridade de Sharafi a isso, também, obriga. Graves dos subs, convite a uma toada mais dançável, mas igualmente num registo mais próximo do noise. Todas as sequências engendradas convergem para materialidade rugosa e densa. A utilização de instrumento tradicional iraniano e consequente uso das gravações em loop, bem como o recurso a vocalizações, que julgamos ser em farsi, reforçaram um lado mais pesado e espesso que se saúda. O primeiro dia com Curran, Sharafi e estamos certos com Novo Major constituiu alba perfeita para a 19ª edição.

Auditório da Biblioteca Municipal do Barreiro. Há um ano, neste mesmo local, tocara Claire Rousay. Nesta edição, Voice Actor. No sempre insuficiente enredo de gerar classificações, há quem categorize o trabalho de Noa Kurzweil, à semelhança do de Rousay, como emo ambient. Se é verdade que as sonoridades em certos aspectos se assemelham e revelam um registo diarístico evidente, o trabalho de Kurzweil assume uma natureza mais plástica, em disco [Sent from my Telephone] e sobretudo na apresentação ao vivo. Sala escura, entrecortada por projecções em feixes de luz. Vultos quotidianos. Transeuntes. Deambulações sem rumo como imagem. O retrato da ausência. A manifestação da existência em sombras. Aparentemente lenta e enganosamente deprimente a recordar episódio do realizador inglês Terence Davies – “Uma vez, uma espectadora perguntou-me: ‘porque é que o filme é tão lento e deprimente?’. Só lhe consegui responder: Minha senhora, é um dom.'” Há talento na configuração do exercício de corta e cola. Na transfiguração de temas mais ou menos reconhecidos, a remeter para universo trip-hop e construir narrativa. Há discurso. A edificação de uma arquitectura da melancolia.

Por espaços sacros, igrejas, também se construiu a edição deste ano. Brìdghe Chaimbeul, Igreja Rosário [dia 05 de Outubro] e Cucina Povera, Igreja Santa Cruz [dia 06 de Outubro]. A recuperação da tradição de um instrumento de sopro, gaita de fole no caso de Chaimbeul e de uma oralidade em Cucina Povera. Ilusoriamente um acto de conservação, que o é, mas metamorfoseado num ritual de resistência. Ambas ao final da tarde, com o sol a entrar deitado por entre as finas janelas. Um prelúdio. Da longínqua quanto enigmática ilha de Skye na Escócia, Chaimbeul tem sido capaz de estabelecer um trabalho de pesquisa e transformação bastante meritório na recuperação de um instrumento praticamente instinto a partir da década de 80 do século passado, como a própria teve o cuidado de referir a meio do concerto. Temas que vão contando pequenas histórias do seu lugar de origem. Um conto que se vai lentamente desdobrando, como um largo palimpsesto que dá a descobrir as paisagens do norte verde e gelado. A gaita de fole, o uso de pequenos dispositivos electrónicos e voz. É na continua utilização do instrumento tradicional que se ganha uma dimensão transcendental e o corpo sonoro adquire estrutura mais amarrada. Em Cucina Povera a limitação de recursos é condição para se extrair dos parcos instrumentos uma sonoridade tão característica. Em ambas as sonoridades folk são mais ou menos constantes. Nunca percebidas como campos estanques. São relações quase imperceptíveis que vão sendo minuciosamente acrescentadas. A voz, em registo parcimonioso confere aquele ponto ligeiro de supressa. Mantendo-nos nas analogias gastronómicas, a pitada de gengibre que faz soltar sorriso de satisfação. No campo da arquitectura, Maria Rossi encontra-se junto dos grandes vultos da arquitectura vernacular. Pela já mencionada escassez dos recursos, mas sobretudo por ser capaz de conferir ângulos inesperados, “pontos de estar” familiares e uma certa placidez tão contrária aos commuters sociais dos dias que passam. Fixar âncora é discurso político. Ambas, Chaimbeul e Maria Rossi, fazem-no com mestria.

A fechar o OUT.FEST, DJ Marcelle. Talvez a menos óbvia neste grupo das “geografias de intervenção”. Não pela idade, jamais deverá ser factor de categorização, mas porque remete para o campo da música de dança. Exemplos não faltam de como transformar a pista em lugar de revindicação. O acto da dança é já de si libertário. Com três pratos, mais um CDJ, DJ Marcelle faz as passagens que bem entende e mistura o que lhe convém. Sente-se a sua alegria ao fazê-lo e a mesma nos rostos do público ao dançar. Há euforia partilhada. Haverá acto mais genuíno do que fazer aquilo que bem entendemos?



[ADAO, O INTERFACE]

A ADAO – Associação Desenvolvimento Artes e Ofícios tem sido, ao longo dos últimos anos, casa para os concertos de noite de Sexta e Sábado. Poderíamos fazer uma simples lista do que mais nos agradou – Afrorack, Horse Lords, no primeiro dia, Rita Silva e Holy Tongue, no segundo. Uns que perdemos – Farpas e outros que claramente não descortinamos sentido, por razões várias e que passam indubitavelmente por uma questão de gosto – J. Zuns, Širom, Liturgy. Regressemos ao subtítulo – “Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro”. Conhecedores de alguns benefícios da diversidade, da construção de um festival que tem vindo a conseguir agregar, ao longo destes benditos anos, um público heterogéneo e que tem dado a descobrir grupos desconhecidos, nesta edição com os interessantíssimos Dali Muru & the Polyphonic Swarm, e não de menos importância, um lugar de encontros e reencontros. No entanto, parece-nos que este desenho 1 + 1, ou seja, sequência de um concerto a seguir ao outro, leva a um sobredimensionamento da interface social. Como que uma equivalência entre o convívio e a audição. Invariavelmente toda a gente parece feliz. Não seremos nós a fazer a apologia da tristeza, não nestes dias, nunca o associando ao OUT.FEST e ao Barreiro. Desconhecemos se será problema ou somente sentir individual, mas há uma nostalgia difícil de apagar quando poderíamos escolher na ADAO, entre concertos de maior dimensão e outros que se passavam entre espaços mais exíguos, refeitório e outras salas, onde a proximidade aos músicos e ao que ouvíamos se tornava segredo compartido.

Notas de quem admira profundamente o OUT.FEST ano após ano e que deseja criar círculos bloqueando dias para assistir a Sonica Ekrano – “Festival de cinema documental dedicado a músicas, músicos, sons e movimentos nas margens da massificação e da popularidade”, de 27 de Outubro a 04 de Novembro, no Barreiro.


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