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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/10/2023

A postos para o OUT.FEST.

FARPAS: “Temos como objectivo procurar novas soluções e desbastar terreno na música improvisada”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/10/2023

Encostados ao balcão d’Os Penicheiros ou em mesa do Pescador, não seria difícil imaginar conversa entre frequentadores assíduos do OUT.FEST — “Este ano está mais fraco!” “Verdade, não há um nome que puxe.” Será assim até uma hipotética última edição do Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro. Frequentemente esquecendo(-nos) que os concertos relembrados não correspondem aos “grandes nomes”. Recordar Caveira é somente momento como exemplo ou a recente edição “dedicada” a Eliane Radigue, lição a seguir pelos demais festivais. Outra das suas características é dar visibilidade a bandas, sobretudo nacionais, que apenas estão a iniciar o seu percurso. Este ano FARPAS. Conjugação muito feliz de uma efervescência e urgência de uma geração mais ou menos próxima. FARPAS como a materialização de espíritos inconformados, o aperto de construir com expressão. Almas em fogo. A propósito de FARPAS, trabalho de estreia homónimo e recentemente editado em cassete pela Cafetra, conversámos com Miguel Abras (baixo elétrico e voz) e Guilherme Rodrigues (saxofone e eletrónica). Forma singela de lançar a edição deste ano, honrar legado e lição de estar — OUT.FEST!



[FARPAS, A BANDA]

[Abras] Para mim, como músico, sinto que uma muito bonita, se não talvez a mais forte, maneira de conhecer uma pessoa é através da partilha de um espaço colaborativo de criação musical. Tem sido assim na minha experiência, e a vontade que tinha em firmar contacto e conhecer o Gui [Guilherme Rodrigues] e o António [Feiteira] deu em FARPAS, no final de 2022. O Miguel [Limão], um dos impulsionadores da Festa Piloto, convidou-nos a estrear o grupo no Réveillon 2022/2023 (Cybergarden Audiovisual Instalation), na preparação para isso, fizemos ensaios intensivos, gravámos tudo e disso surgiu primeiro encontro discográfica do conjunto.

[O PERCURSO EM FRENTE]

[Gui] Desde o princípio que falámos sobre pensar nas FARPAS como um projecto coletivo, algo maleável. Temos trabalhado com diferentes formações e com diferentes formatos de colaboração. O input do Tomé neste lançamento, por exemplo, foi tão importante quanto o do resto da banda, mesmo de um ponto de vista de composição da música. Pegámos na música com ele quando se tratavam apenas de dois takes corridos, cada um de cerca de 25 minutos. Trabalhámos em conjunto ao longo de duas semanas para a música se transformar naquilo que agora saiu. No fundo foi um processo alternativo de escrever e ensaiar temas. De outra forma, também o trabalho visual da Sara Tralha funciona como uma componente integral das FARPAS, que continuará a ser desenvolvida. 

Também concordámos em manter uma atitude incisiva perante o processo de produção e edição. Compor>trabalhar>partilhar. Evitar perfecionismos, negar a necessidade do trabalho de estúdio canonizado como “profissional”. Queremos gravar à medida que experimentamos ideias novas e utilizar fragmentos do próprio processo como peças do produto final. Tentar agarrar diferentes momentos, de intimidade, casualidade e aleatoriedade, coisas que noutro contexto ficariam perdidas. E tentar expor o máximo que conseguirmos, lançar música nova sempre que der.

[Abras] É uma banda que tem como objetivo procurar novas soluções e desbastar terreno na música improvisada. O que isso significa, no fundo, é simplesmente seguir a voz dos seus intervenientes. Portanto concordo com o Gui, mas acho que é importante reforçar que o facto de cada um ter o seu papel, mesmo que de forma abstrata, bastante definido é meio caminho andado para dar uma voz concreta a FARPAS.

[A JUNÇÃO DE COLECTIVOS] 

[Abras] Um dos grandes objetivos da banda é que ela se torne num coletivo, como o Gui já referiu. Um coletivo de âmago jazzístico, com um pezinho aqui e ali, mas sobretudo fora de pé. Os coletivos de onde viemos, para além da experiência colaborativa que nos deram, são sítios onde se vincam outros trilhos da nossa formação. De um modo filosófico é como se os três coletivos estivessem a interagir — a parte que diz respeito à nossa participação em cada um deles — pela mão de cada um de nós. Quase como se não se pudesse dissociar a pessoa do seu meio, pela obrigatoriedade associativa do meio à pessoa. Mas no fundo no fundo o que se está a criar é só mesmo música e amizade.

[A PALAVRA]

[Abras] As letras assentam que nem luvas na forma de composição que eu prefiro.

A palavra é sempre senhorial como, e na sua, forma primordial de expressão. A música fala diretamente connosco, e há até contextos em que a ausência de palavras comunica profundamente, em que o silêncio é discursivo, mas a haver esse elemento linguístico a peça musical predica por uma legibilidade de notação e temática que aproxima o ouvinte invariavelmente. 

Usufrui de um elemento “isco” no contexto musical em que está inserido, tanto quanto a melodia e ritmo em que está pautado — o que não significa que mesmo que haja esse discurso lírico poético não se criem problemas de entendimento. 

Para além desses e outros factores ajuda-me a organizar e estruturar a música, dar lhe dinâmica, atribuindo lhe variabilidade, e ainda a agravante de facilitar o decorar dos textos, imprimidos em linhas de voz.

O exercício em FARPAS é cantar versos como mais um elemento na improvisação. Ultimamente, tenho andado a ler poemas e recorro a esses versos-refrão para intervenções-sentinela, na malha.

[A VOZ]

[Abras] Desde que comecei a cantar, em Putas Bêbadas, que uso efeitos na voz. Desde esse primeiro âmbito, o processamento tem tido um papel técnico-estético prioritário onde são explorados os limites do canto para lá das limitações da minha voz. As texturas obtidas por essa manipulação procuram dar a esse elemento um patine musical, para lá do elemento verbal, um atributo instrumental, como as outras “vozes” que intervêm na música. Primeiro usei delays, reverbs e distorção, depois o auto-tune e hoje em dia o pitch shift e o chorus. Procuro, e vou continuar sempre a procurar, maneiras de enquadrar esteticamente a voz ao momento evolutivo pelo qual estiver a passar e o meio em que a decidir envolver. Acho que desde sempre procurei essa muleta do processamento como bálsamo de aproximação do meu cantar à música a que estiver a dar voz, nunca pondo em segundo plano a escrita ou o treino vocal igualmente relevantes naquilo que faço.

[A MORTE] 

[Abras] Eu sou bastante hipocondríaco. Estou sempre a ir ao doutor Google fazer triagem dos meus sintomas, e acho sempre que vou morrer — e hei-de. Desde sempre, morte e a sua antecipação fazem parte do meu quotidiano. Neste quadro sintomatológico, faz sentido falar desse tema. Tento amenizar e não transpareço muito isso num modus operandi social. O que acontece na maioria das vezes é que uma frase que me soa bem adequa-se à melodia de voz e pronto, nada mais que isso. Isto d’”A vida é um simulacro…” como diz o Raul Brandão.

[Gui] Se há algo indispensável à vida é a morte. Nunca discuti com o Abras acerca das letras que ele escreve para a nossa música, mas não me parece que se pretenda com elas um significado singular ou fechado. São evocativas e permeáveis a diferentes narrativas. Existe um contexto virtual e/ou mediático praticamente incontornável à contemporaneidade que confere à morte o poder de ser tudo e nada ao mesmo tempo (consequência da sua universalidade). Complementando esta presença deparamo-nos com a alienação, a passividade, o automatismo. Estar “entre a vida e a morte” pode não ser algo tão óbvio quando se passa do plano físico para o plano espiritual. Será possível ser-se vivo se a morte é tudo/nada? Diria que nada disto é constante, mas sim uma oscilação entre um lado e outro.

[A ELECTRÓNICA E O JAZZ]

[Abras] Compusemos tudo na semana anterior ao concerto de estreia. Definimos guias de conduta, a especular através da nossa digitação improvisacional e fomos estruturando a música através de linhas melódicas de voz, sax ou baixo, ritmos do António e jogos harmónicos entre a instrumentação.

A eletrónica teve exatamente a mesma função. Mais apontada ao noise, mas tomamos qualquer decisão sempre pela sua pertinência musical e não por fetichismo ou trejeito, quer na gravação, quer na pós-produção.

[Gui] Tenho a sensação que o jazz contemporâneo toca em tudo, mas raramente se deixa contaminar. Meio que se apropria de outros géneros, por via de elementos como a “improvisação” e a “fluidez”. No entanto é sempre “jazz”, e é alguma força instituída que lhe atribuí a sua superioridade e distinção. O jazz é a nova música erudita, e muitas vezes está mais morto que vivo. Esforço-me bastante por não fazer mais um álbum de jazz.

[DURAÇÃO CURTA OU TALVEZ NÃO]

[Abras] Foi a seleção que fizemos do trabalho que gravámos. Há ainda muito por onde se lhe pegar. Estamos em estúdio a preparar novo disco.

[Gui] É o que o Abras disse. Na altura não deu pra mais. Mas eu prefiro a menos do que a mais.

[A CAFETRA E A EDIÇÃO DE FARPAS]

[Abras] Cafetra é a minha casa, Cafetra é a minha família. Se há espaço onde eu tenho confiança e conforto em expor o meu trabalho é lá. A malta conhece-me muito bem, eu conheço muito bem a malta e achei que a cassete FARPAS fazia sentido no seu catálogo, tanto pelo lado canção como porque não estava a ver mais nenhum selo que nos garantisse as mesmas condições que a Fetra ofereceu. Não que fosse uma edição muito exigente, mas bancaram-na, o que pra nós já é excelente. Ao contrário de algumas editoras nacionais, lisboetas até, que têm a lata de se chamar editoras, que pedem aos músicos para pagar a duplicação.

[Gui] Só tenho a agradecer à Cafetra, pela liberdade e confiança que nos deram na edição, atitude exemplar no contexto DIY. Sabem o que estão a fazer, e deu para sentir que existe mesmo cooperação e interesse genuíno dentro do coletivo.

[O CONVITE DO OUT.FEST]

[Gui] Para mim foi uma surpresa, mas sem dúvida considero a OUT.RA uma associação que faz um esforço por estar o mais atenta possível. Como almadense, olho para o trabalho feito pela OUT.RA e outras associações ou coletivos Barreirenses com grande admiração. E gostava muito de um dia ver esse tipo de movimentação em Almada, algo que tenho tentado impulsionar, de alguma maneira, com a Tundra. Estou muito grato por ter a oportunidade de tocar no OUT.FEST, e por colaborar com a OUT.RA mais uma vez.

[Abras] Da minha perspectiva, se há festival onde vejo FARPAS a atuar é o OUT.FEST, mas confesso que fiquei em pulgas com o convite. É um festival que continua a expirar a música mais interessante que pelo mundo se vai fazendo, feito por uma promotora — a OUT.RA — que vai sempre continuar a inspirar a mim e a outros tantos a trabalhar na música que fazemos. É uma entidade no país que trata da música com humildade maiúscula e que apresenta na sua programação um serviço comunitário pedagógico fortíssimo, sem truques nas mangas ou tentativas de alpinismo culturo-social. É música pela música. A única vénia à indústria que vi foi o concerto de Faust.

[O PRIMEIRO OUT.FEST]

[Gui] Bem, eu sou bastante novo nisto… A primeira vez que fui ao OUT.FEST foi em 2019, tinha feito 18 anos há pouco. Nesse ano fui e vim todos os dias com a Carla Santana (vizinha Almadense), que me deu boleia. Por acaso, acho que o primeiro gig que vi foi o Abras (que na altura ainda não conhecia) e o Ferrandini com Camerata Musical do Barreiro, seguido do Peter Evans a solo. Nessa edição vi concertos incríveis, nomeadamente DeafKids, Kali Malone e yeah you. E descobri muitas coisas novas, que na altura não conhecia. Bezbog, Calhau!, Candura, Luar Domatrix, etc. Estava a afastar-me da realidade do Hot Clube e da ESML, do “jazz académico”, e a perceber que existia todo um universo de música de vanguarda contemporânea muito mais estimulante, que ninguém te fala na escola.

[Abras] A primeira vez que fui ao OUT.FEST foi em 2014. Fomos convidados para tocar Putas Bêbadas e partilhámos o palco com Magik Markers, The Ex e Faust (olha lá…). Tinha 22 anos. No ano anterior, queria muito ter ido para ver The Fall, mas falhei…

Calhou que no seguinte promovíamos o Jovem Excelso Happy e fomos parar ao line-up. Desde essa edição ainda não falhei nenhuma e as memórias que tenho são de plena felicidade e fruição.

Eu, ao contrário do Gui, tenho uma formação musical autodidata e muito dela veio de poder assistir a concertos e outros fazer tipos de contactos com figuras centrais da música. Posso dizer, então, que o OUT.FEST foi para mim academia.

[O OUT.FEST NO PANORAMA NACIONAL]

[Gui] Acho que sou muito novo p’ra falar sobre a evolução do OUT.FEST, só apanhei o último capítulo. Relativamente à importância, sem dúvida fundamental.

[Abras] O mais interessante que tem acontecido neste festival é que manteve-se, desde o princípio, fiel aos seu princípios antigos, como o sub-título indica — Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro. O seu trabalho de programação continua a dar primazia a canais desligados da mercantilização da música. Prendem-se àquilo que têm mesmo gosto em programar e têm tido bastante sucesso. A edição deste ano já está praticamente esgotada. Isso demonstra que abriram um espaço crítico para uma dita música experimental, nacional e internacional, num meio tão pequeno como o português. Concluo dizendo que aquilo que evoluiu de facto foi a sociedade civil, que só teve e tem a ganhar com a edição anual do OUT.FEST.

[O CONCERTO]

[Gui] Na verdade este vai ser o segundo gig de FARPAS com o trio original e a primeira apresentação ao vivo da música editada na cassete. Como o António mora no Porto e os três temos de trabalhar em merdas mais ou menos fixes para pagar as contas, desde o concerto na Festa Piloto ainda não conseguimos arranjar uma data em que todos pudéssemos. Acho que estamos os três na expectativa que o próximo ano seja diferente, que haja mais atividade para as FARPAS.

Dito isto, não vai haver convidados para já. Vamos girar à volta da música da cassete, e de certeza com elementos sonoros novos. Cénicos… Talvez?

[Abras] É ir.


FARPAS vão do jazz ao noise no álbum homónimo de estreia

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