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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 16/06/2023

Sem espaço para a electrónica Photoshop.

Oneohtrix Point Never no Capitólio: e lançou-nos ao assalto do céu

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 16/06/2023

Um puto, branco, com os seus cinco anos, quem sabe se o próprio Daniel Lopatin, numa imagem amplamente reproduzida pelas séries e filmes norte americanas e que conformam já um imaginário colectivo. O verde, esse verde imaculado, aparado. O jardim. Quadrado do Éden materializado. Ao fundo pormenor de casa de madeira branca. O puto, novamente ele, com a t-shirt, quem nunca teve uma assim. Projecção repetida uma e outra vez, numa sequência não linear, com a imagem em nitidez periclitante remetendo inapelavelmente para o conceito de ‘eeriness’ de Mark Fisher. Intrigante, misterioso, não necessariamente assustador, até bem longe disso. 

Estrutura elipsoidal montada no palco, a fazer lembrar um olho ou em interpretação alternativa a cóclea, para se tornar espontaneamente num exercício de escuta colectiva. As imagens difusas de um passado, que mais não são do que recordações que temos dele no presente, remeto-nos inapelavelmente para o exercício que há anos, Janeiro de 2020, Bruno Silva (Ondness, Serpente, Sabre entre outros) organizou nas Damas a propósito de On Vanishing Land de Mark Fisher & Justin Barton. Um longo campo espectral, uma extensa toada melodiosa. A cartografia de um passado – presente, as linhas da recordação – construção. Figura do puto que lentamente se desvanece e se (re)configura em fisionomias a preto e branco não imediatamente identificáveis. A música, sempre ela, acompanha e reforça essa transmutação. Torna-se mais acelerada, mais compassada. Quando perante um concerto de Oneohtrix Point Never, uma certeza emerge – não há sentidos únicos, não há caminhos feitos que não se tornem imediatamente em curvas que nos conduzem noutra direcção, sobretudo a outra dimensão. Um Prince of Persia, recordação de infância obrigatória, capaz de encontrar uma porta, um alçapão, um ponto de fuga. Mesmo quando as luzes se transformam em pompons em forma de malmequer, sabemos à partida que tudo é transitório. A música, sempre e nunca esquecer, torna-se parente próxima da que se magicava nos finais dos 90’s, uma inexorável esperança no futuro. Quando pensamos estar lá ou pelo menos chegado lá próximo, deixamos de estar. Nova escadaria, novo ponto de fuga. Uma toada claramente mais dançável, uns quantos se atreveram, para passar num momento mais ou menos imediato para uma toada mais ambient, e o quanto soube bem ouvir este subgénero algo estagnado, que nem o constante recurso a field recordings o parece impedir de sair de estado letárgico.

Em Oneohtrix Point Never há um sentido na multiplicidade nesta permanente construção e reconstrução. Não há espaço para a electrónica Photoshop, à la Caterina Barbieri, nem muito menos para o mata-borrão tecnológico, sempre à procura da novidade para afirmar tendência. Ele é. A convocação de um imaginário tão diverso como apurado – a fada Sininho, os comics americanos e novamente a figura do puto. Claramente o desenho de uma narrativa, arriscamos – o contar de uma história. Como mestre que é e sabe que é, pode estar pejada de artifícios, mas tão magnificamente elaborada e encaixada, que convence rapidamente um intrépido frequentador dos micro concertos em espaços obscuros.

No final, Daniel e a relação deste com o nosso país, em particular à Galeria Zé dos Bois, curadora desta data no Capitólio. Poucas luzes, sem imagens e uma maquinaria que o próprio assume ter vida própria. Um despojamento total. Que delicada forma de acabar.

Uma noite com aquele cheirinho a concerto. Um concerto, não custa repetir palavra, irrepreensivelmente bem produzido. Soube-nos bem. Só ao alcance de poucos, muito poucos.

PS.: Título retirado e adaptado do filme e ciclo de cinema “Lançaram-se ao assalto do céu“, por Luciana Fina, a decorrer na ZDB.


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