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Ilustração: Riça
Publicado a: 24/10/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #42: Trees Speak / Autechre / funcionário

Ilustração: Riça
Publicado a: 24/10/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


Trees Speak – Shadow Forms | Soul Jazz Records

Trees Speak – Large Array Trees Speak – Tear Kisser Trees Speak – Those Who Know Trees Speak – Transforming Trees Speak – Automat Trees Speak – False Ego Trees Speak – Communication Trees Speak – Crystal System Trees Speak – Agonize Signal Trees Speak – Magick Knives Trees Speak – Shadow Forms Trees Speak – Outtake 3 Trees Speak – Transmitter It’s a big one …


[Trees Speak] Shadow Forms / Soul Jazz

Na entrevista que nos concederam (e que em breve poderão ler por aqui), Daniel e Damian Diaz são tão económicos nas respostas como na música que propõem com este seu terceiro álbum. O que o duo de Tucson Arizona revela, no entanto, é uma aversão a rótulos, estranhando o nosso recurso à palavra “krautrock” para descrever o seu som, mas não deixando, ainda assim, de imaginar uma autobahn estendida através das vastas paisagens do Arizona quando lhes é pedido que descrevam a música que fazem. Shadow Forms é já o segundo álbum que inscrevem no catálogo da londrina Soul Jazz em 2020, sucedendo da melhor forma a OHMS (que também recebeu atenção crítica na Oficina Radiofónica). Há diferenças entre os dois trabalhos, como seria de esperar, mas o seu programa estético mantém-se nos mesmos moldes avançados à imprensa local de Tucson em Março último: “A nossa intenção é criar música com uma abordagem minimalista e improvisada através da execução de ritmos simples, riffs e sequências que nos carreguem para dentro. Permitimos que a performance musical esculpa o seu próprio destino criando assim uma imperfeição perfeita. A nossa ferramenta de criação é a ansiedade que se sente quando não se ensaia ou se prepara um espectáculo. Acreditamos que esta abordagem nos leva mais perto de nós mesmos. O resultado é música genuína sem uma agenda que capta o espírito sem filtros”. Neste novo álbum, talvez os irmãos Diaz tenham alcançado uma mais remota região interior, sentindo-se uma acalmia do pulso geral, ainda que a tal autobahn a que se referem continue a exigir uma cadência motorik para ser percorrida. Admirável, no entanto, continua a ser a sua renovada capacidade de se abstraírem completamente do tempo presente para nos oferecerem música que parece ter sido criada num qualquer limbo temporal estabelecido algures entre 1969 e 1974. “Em “False Ego” é apenas um sintetizador controlado por um sequenciador que nos guia através do cosmos interior, mas “Those Who Know” já responde à pergunta que poderá ter sido múltiplas vezes colocada por quem vive imerso na história da música electrónica: “a que soaria uma colaboração de Martin Rev dos Suicide com os Neu!?” Os irmãos Diaz sabem perfeitamente. E nada disso os impede de ensaiarem um pastoral desvio por terrenos folk em “Communication” ou até de esboçarem uma aproximação ao universo library-jazz que um colectivo como os Heliocentrics tanto tem feito para explorar, como perfeitamente demonstrado na incrível “Tear Kisser” que à combinação base de bateria e synths adiciona uma evocação do espírito de Miles num trompete altamente processado. Os Diaz pretendem atirar-se à autobahn global em 2021. Cruzemos todos os dedos para que ousem seguir uma placa que lhes indique o caminho de Portugal.



[Autechre] SIGN / Warp

Não há-de ser fácil passar 30 anos inteirinhos em exílio no futuro, mas é exactamente isso que os Autechre de Rob Brown e Sean Booth têm vindo a fazer desde que em 1991 se estrearam com o maxi Cavity Job. Nos últimos anos, a marca Autechre aplicou-se a expansivos projectos, como a interminável série de registos ao vivo ou as NTS Sessions, pelo que a edição de SIGN não deixa de constituir uma surpresa. Em primeiro pela sua escala contida e depois pela sua mais funda “natureza” (e sim, esta palavra foi escolhida com um propósito).

Ao longo dos anos, o ponto de partida techno eleito pelo duo foi-se tornando cada vez mais longínquo, com a música criada a partir do seu certamente complexo e definitivamente misterioso System a resultar crescentemente abstracta, experimental, obtusa, impermeável a qualquer tipo de sintonia externa, presa que estava num universo próprio que parecia obedecer a leis de física sónica distintas. Em SIGN quase se pode adivinhar um esgar de humor na faixa inicial, “M4 Lema”, que começa por sugerir que nada mudou e que Booth e Brown continuam mais interessados nos desconexos pulsares que soam como se resultassem da gravação das “sinapses” de “machine learning”, mas quando os nossos ouvidos aterram em “F7” algo começa a suceder: a densa névoa conceptual de ruídos digitais começa a dissipar-se e a expor o que poderão ser, afinal de contas, territórios familiares, já anteriormente cartografados. E quando se chega a “esc desc” a sensação é a de quem acabou de atravessar um mar revolto para desembarcar numa paradisíaca ilha de frondosa vegetação e praia de cristalinas águas habitadas por estranhos, mas cativantes seres multi-coloridos (ainda que possam ter leds luminosos em vez de olhos e pele transparente que revele um interior híbrido, bio-tecnológico).

Essa mais funda “natureza” dos Autechre, que cedo se propuseram a desmontar as dinâmicas mais intrínsecas do techno e das suas mil derivações, é por aqui uma vez mais renovada, num trabalho que continuando a ser exigente não soa impenetrável, que permanecendo nas margens mais remotas dos territórios avançados da electrónica, não deixa, ainda assim, de se manter nos limites do “mapa” que o próprio duo tantas vezes descartou em favor do mergulho no absolutamente desconhecido. Há por aqui, pasme-se, uma dimensão humana, como se pressente na melancólica “Metaz form8”, uma peça de solene e espiritual poética que poderia escutar-se numa catedral de metal reluzente de Frank Gehry, ou “gr4” que, certamente, permitiria o encaixe de um vocal de alguém como SOPHIE transformando-se numa canção, talvez até de amor. Quando se chega a “th red a” já estamos, literalmente a levitar, imersos numa flutuante esfera interior de um balsâmico pad de contornos analógicos, quase “new age” no seu hipnótico propósito, um estado que já não se abandona até ao final do alinhamento, prolongando-se por “psin AM” e “r cazt” adentro. Não é difícil querer habitar este SIGN, um trabalho em que Brown e Booth investem, afinal de contas, toda a sua humanidade, regressando por momentos desse futuro que sempre preferiram percorrer para nos darem um “sinal” (lá está…) de luz neste estranho e obscuro presente.



[funcionário] Schichishito / turva

funcionário, aka Pedro Tavares, é metade do duo Império Pacífico que no início do passado verão nos ofereceu o belíssimo Exílio. A fasquia alta imposta com esse trabalho, pode começar por se garantir, também serve para medir Schichishito, um álbum cujo título remete, explica-se nas notas de lançamento, para uma espada de sete ramos, “um artefacto cerimonial, que invoca uma viagem introspectiva através dos becos que se abrem perante o argumento/lâmina principal de que se faz a nossa própria vida pessoal”. Este novo álbum de funcionário sucede assim a Gaiden e aprofunda a relação com a cultura japonesa, percebendo-se de forma nítida que esse fascínio não inspira apenas títulos, mas que oferece igualmente ao autor ângulos espirituais e filosóficos que resultam nalguns dos aspectos formais da sua música.

O cenário conceptual ajuda, portanto, a enquadrar uma música decididamente interior, feita de uma subtileza profunda, que se manifesta em delicados gestos melódicos e em cuidadosamente dispostas texturas, algures entre uma electrónica ambiental e sons acústicos de pureza absoluta, feitos de cordas que vibram, de pedaços de bambu que ressoam. Não há tumultos ou sobressaltos neste mergulho nos abismos interiores, antes uma inefável sensação de absoluta harmonia, permitindo a música que possamos flutuar num plácido lago de águas límpidas, em paz. Síntese FM emulada em VSTs cuidadosamente eleitos sugere uma aproximação ao lado mais contemplativo da new age, nesta música de cristais e brisas frescas, mesmo que por vezes, como acontece em “Ramo V”, não se descarte também um certo mistério, de tons um pouco menos luminosos, mas ainda assim nunca perturbadores. Definitivamente, o que funcionário aqui nos apresenta é música para auscultadores e meditação profunda, música que pode embalar sonhos, mesmo quando nos encontramos de olhos plenamente abertos. Também é preciso…

Este é o segundo lançamento da turva, editora que teve apresentação nas páginas do Rimas e Batidas e que já recebeu atenção crítica nesta oficina.

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