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Ilustração: Riça
Publicado a: 15/08/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #35: Tenderlonious / Romare / Suzanne Ciani

Ilustração: Riça
Publicado a: 15/08/2020

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.


[Tenderlonious] Quarantena / 22ª

Quem nunca? Quem nunca deu por si com uma quantidade inesperada de tempo nas mãos e o aproveitou para, finalmente, se atirar ao que quer que a vida nos possa ter impulsionado a acumular com o singular propósito de “um dia” nos dedicarmos à tarefa, até aí sempre adiada, de dar sentido a esse acervo, seja ele qual for: livros, discos ou filmes, fotografias ou selos, legos ou puzzles, mas também todo o tipo “ferramentas”, adquiridas para serem (eventualmente…) usadas naquele projecto que fomos entregando ao futuro, que é aquele tempo que a vida teima empurrar para a frente e que quase nunca chega. Só que desta vez foi diferente, como por esta altura já todos bem sabemos. O futuro, algo distópico até, dizem muitos, chegou mesmo e tornou-se agudo presente, confinando-nos às nossas casas, com a vida lá fora desacelerada até quase parar, esvaziando as desculpas do costume, as que se iam usando para procrastinar a tarefa de enfrentar o tal projecto de vida.

Ed “Tenderlonious” Cawthorne, flautista, saxofonista, produtor e homem do leme da etiqueta 22ª, começou a colecionar equipamento de estúdio – sintetizadores, caixas de ritmos e outros artefactos – quando contava apenas 16 anos. E a colecção cresceu. Quando, de repente, como tantas outras pessoas, foi forçado a travar a habitualmente carregada agenda de viagens, concertos e sessões de estúdio (lançou nos últimos tempos um ep que é o resultado de uma aventura no Paquistão, apresentou um novo single da banda que integra, Ruby Rushton, participou, a convite dos Coldcut, nas gravações do projecto Keleketla…), essa provou ser a oportunidade perfeita para finalmente limpar o pó à colecção. No álbum que agora apresenta, Quarantena (o título não podia ser mais directo…), Tender toca flautas, obviamente, e sax soprano, mas também Roland Juno-106, Fender Rhodes, Yamaha SY85, Roland JX-8P, Korg Polysix, Arp Axxe, Roland TR-606, Oberheim Matrix 1000, Dave Smith Mopho, Akai MPC60 mkII, Novation Supernova, Roland TR-707, Yamaha DX7, Nord Lead 2X, piccolo, Access Virus A, Roland JV-1080, Sequential Circuits TOM, Roland RS-09, Oberheim DX, Roland TR-808, Akai MPC 2000XL, Studio Electronics SE1, Roland JP-08. Um impressionante “arsenal”, de facto.

Na entrevista que concedeu ao Rimas e Batidas no passado mês de Junho (e que recentemente por aqui publicámos), Ed já levantava o véu sobre Quarantena: “Quando olho pela janela — eu vivo na cidade –, há pessoas a passar a toda a hora, aviões a sobrevoar o meu tecto, e vivo perto da estação de comboios. Tudo está em constante movimento. Esse movimento informa a minha música, por isso a música é sempre rápida, um pouco mais agressiva, e agora, com tudo fechado, não há quase nenhuns aviões a voar por cima do meu tecto, e normalmente há um a cada minuto a aterrar. Os comboios continuam lá, mas, man, normalmente há dois a cada minuto, e agora é dois a cada vinte minutos ou algo do género. E as ruas estão bastante calmas. Não há quase ninguém fora, mas está a começar a ficar mais confusão porque bastante gente está a ficar frustrada. Nas últimas quatro ou cinco semanas tem estado bastante sossegado, quase como se fosse uma cidade fantasma. A vibração é tão calma e tranquila, por isso a música que tenho feito está a transmitir isso”. E quando questionado sobre se essa nova música estava a ser produzida em modo solitário, Tenderlonious esclareceu: “Sozinho, mas enviei recentemente algumas músicas para o Nick Walters, parte da 22a, trompetista para Ruby Rushton que também faz coisas a solo. Eu enviei-lhe alguns beats, é a pessoa a quem recorro para solos de trompete. Se não, é só flautas e sintetizadores. Mas, sim, é tudo a minha própria produção. Vai-se chamar Quarantena, que é o termo italiano original para descrever o que se passava com os barcos que iam para Veneza para negociar, se eles viessem de um sítio desconhecido, por causa das doenças eram isolados por 40 noites. Eu fiz alguma pesquisa sobre a origem da palavra e pensei, “seria fixe ter este aceno à História”. É um momento tão histórico aquele pelo que estamos a passar agora, eu queria meter algo cá fora que fosse uma representação real deste momento. Esta música não vai ter nada a ver com aquilo que lancei anteriormente, é muito diferente, o que é excitante”.

Tirando então os elegantes solos de Nick Walters no tema-título “Quarantena” e no igualmente explicitamente titulado “Covid Blues”, tudo o resto é o resultado das solitárias semanas que Ed Cawthorne passou na companhia da sua colecção de equipamento. Uma das marcas deste trabalho passa exactamente pela ideia de diálogo entre o homem e a máquina: a personalidade dos diferentes instrumentos, sobretudo das caixas de ritmos, é quase sempre colocada em primeiro plano, aproveitando-se as suas singularidades texturais ao máximo, com poucas interferências no processo de mistura, e é desses inalterados padrões rítmicos (que por vezes soam a presets – “Lockdown Boogie”, por exemplo, deve ter nascido do pressionar num botão que quase de certeza teria inscrito algo como “samba rhythm”…) que depois resultam os arranjos, simples, líquidos e transparentes. O próprio autor descreve os beats como sendo “lo-fi”, termo de tão comum uso que parece ter perdido o sentido original e que hoje traduz mais uma postura de produção do que propriamente uma relação de desinteresse pela alta-definição sonora. No caso presente, isso poderá querer implicar alguma simplicidade de meios: os arranjos são básicos, erguidos em torno de um pulsar rítmico, por vezes bastante esparso (como em “Rocco’s Raga”), em cima do qual são dispostos floreados sintetizados e, pontualmente, solos dos sopros acústicos. Tender aponta as bandas sonoras dos filmes de ficção científica como uma referência. Mas não será ao minimalismo cortante e gélido de um John Carpenter que o músico e produtor se refere, antes às mais expansivas propostas de compositores como Vangelis ou Tomita (que ainda recentemente foi reclamado como inspiração pelos Jaga Jazzist), que produziram música a meio caminho entre um certo ambientalismo e a tradição mais orquestral imposta por Hollywood ao mundo (“Falkor’s Flight” é, inclusivamente pela escolha de timbres electrónicos – será o DX7 que aí se escuta? -, um bom exemplo disso mesmo). Há também por aqui uma certa dose de escapismo fantasista, com derivas tranquilamente baleáricas (como a que se propõe na já mencionada “Lockdown Blues”) a revelarem as paisagens feitas de praias e palmeiras por onde andaria a imaginação do confinado artista.

Neste trabalho de recorte elegante, Tenderlonious apresenta o seu equivalente às solitárias produções que nos anos 80 resultavam dos estímulos sugeridos pelo carácter excitante das novas tecnologias que o mercado ia recebendo, numa era em que as máquinas pareciam ser tão responsáveis pelos resultados musicais finais quanto os compositores. “Covid Blues”, por exemplo, parece um tema esquecido numa bobine de um estúdio qualquer de Los Angeles desde para aí 1986, resultado de um trabalho descartado por um qualquer solista de jazz em busca de uma ligação ao presente através do uso generoso do que seriam na época novas máquinas (quase dá para ouvir um qualquer músico a dirigir-se ao produtor, certamente numa voz parecida com a de Miles Davis: “just do your thing with those shiny machines and I’ll lay my solo on top of it”!). Logo depois, em “Total Recall” (que não é apenas título de filme, mas também indicação de uma funcionalidade das mesas de mistura, como a SSL, que nos anos 80 vieram revolucionar os estúdios), é o lado mais cinemático que é explorado, com Tender a debruçar-se, mais uma vez, sobre um dos seus sintetizadores em busca de uma ideia de passado que se adeque ao seu estranho presente.

Para quem possa ter dado atenção recente aos trabalhos de Tenderlonious realizados em Lahore, no Paquistão, ou, em Londres, com o piccolo de Tubby Hayes, Quarantena poderá soar algo estranho, mas esta também não é a estreia do músico londrino nos domínios da electrónica, embora seja a primeira vez que o faça sem uma declarada ideia de pista de dança em mente. Seja como for, o resultado é estimulante e reconfirma que o isolamento pode ser um vigoroso alimento para a imaginação. E o contexto perfeito para finalmente se desempacotar o que demorou uma vida inteira a juntar.


[Romare] Home / Ninja Tune

Ao contrário do que é assumido por Tenderlonious, desde logo no título escolhido para o seu mais recente trabalho (abordado mais acima), este HOME não reflecte o período de reclusão forçada que (quase) todos vivemos recentemente, antes uma viragem pessoal do produtor Romare que decidiu trocar o bulício cosmopolita de Londres por uma mais tranquila vida no campo, para onde se mudou depois de constituir família. “Identidade e um sentido de pertença são coisas que tenho procurado mais desde que fui pai. Enquanto crescia estive sempre rodeado de muita gente, de diferentes origens, e por isso a minha própria identidade por vezes parecia obliterada”, explica Romare nas notas que acompanham o lançamento deste seu terceiro álbum, o sucessor de Love Songs: Part Two, que dá datava de 2016, e o terceiro registo longo na sua discografia pessoal (que tem sido sempre carimbada pela Ninja Tune, desde a sua estreia em 2014 nos quadros da histórica etiqueta criada pelos Coldcut).

Tratando-se de música instrumental, poderá ser um pouco mais difícil adivinhar nas diferentes peças a mudança de contexto emocional, mas, em boa verdade, não é apenas nos títulos –  “Gone”, “Dreams”, “Sunshine”, “The River”, “Deliverance”, “High”, “You See”, “Heaven”, “Home” – que é possível ler a guinada narrativa de Archie Fairhurst: no álbum anterior, títulos como “Who to Love?”, “All Night”, “Don’t Stop”, “New Love” ou “My Last Affair” contavam uma história bem diferente. Agora, com uma relação estável, uma criança que o obriga a pensar sobre o futuro e um contexto mais bucólico, Romare pode repensar a sua música. Os samples vocais continuam a surgir na sua música (em “Sunshine”, “Deliverance” ou “High”, por exemplo), mas no estúdio que finalmente conseguiu construir há agora também alguns instrumentos reais (a velha guitarra de 12 cordas que pertenceu ao seu pai, um igualmente velho órgão que adquiriu numa loja de caridade, a bateria a que brevemente se dedicou na adolescência…) e uma colecção de discos que se estende ao gospel, música tradicional irlandesa, country, hinos religiosos e música clássica (os compositores Thomas Tallins e Vaughan Williams, revela-se nas notas de lançamento, estão entre os seus favoritos). E isso resulta em momentos de exaltação extática como “The River”, firmemente apoiados em samples, geridos a pensar tanto na pista como num possível altar de uma igreja baptista do sul dos Estados Unidos.

Mas, ainda que haja por aqui material que pelo seu pronunciado carácter rítmico possa funcionar muito bem numa futura pista (as do presente continuam suspensas, num estranho limbo que a todos envolve…), mesmo que tenha sido composto como resposta a um possível sentido de exaltação espiritual (como “Sunshine” ou “Heaven”), também há passagens de câmara lenta, como a interessante “Deliverance”, combinação de vozes corais em contraponto, notas esparsas de piano e guitarra, e um sentido difuso de felicidade, como quem vê a vida a partir daquele estado entre o sono e a consciência, quando o real e o imaginário por momentos se confundem. É igualmente essa a ideia que anima “High”, tema servido por um expansivo acorde de graves e um arranjo espacializado que resulta especialmente eficaz nos auscultadores (e essa é, aliás, outra das marcas do álbum, provavelmente misturado nos auscultadores de forma a não perturbar a tranquilidade doméstica e portanto mais um nível removido do anterior hábito de misturar discos a pensar primeiramente nos sistemas dos clubes).

Depois de passar por diferentes nuances emocionais, HOME desagua, no seu penúltimo momento,  “Heaven”, na pista de dança: talvez seja apenas a pista de dança possível, a que se improvisa no alpendre, no quintal ou no terraço (ou nas salas do nosso confinamento), mas a ideia aqui é de celebração, erguida em cima de simples esquemas repetitivos, que na música de Romare adquirem sempre uma saudável dimensão hipnótica (psicadélica?…). O ponto final com “Home” é radicalmente diferente, um assomo de solarenga canção folk que arranca com um tranquilo sample daquilo que soa como um acordeão a expor as suas entranhas, e depois se expande com guitarra acústica, flauta e apaziguante voz feminina que parece entoar uma canção de embalar. Suficientemente intrigante para desejarmos que essa seja a direcção seguida num futuro trabalho, porque a música, Romare que agora é pai sabe-o bem, tem o direito às crianças…


[Suzanne Ciani] Music For Denali / Finders Keepers

O admirável trabalho da Finders Keepers de Andy Votel de recuperação da carreira e nome de Suzanne Ciani como central na história da música electrónica já conta com quase uma década: o selo de Manchester começou por lançar a antologia Lixiviation em 2011 e, no ano seguinte, reeditou os pioneiros álbuns Voices of Packaged Souls, de 1970, e Seven Waves, de 1982. Ciani, uma pianista com educação clássica, percebeu no arranque dos anos 90 que teria que se concentrar no piano e abandonar a electrónica para continuar a garantir a sua sobrevivência. A sua relação com a Finders Keepers nesta última década permitiu-lhe, no entanto, recuperar a sua ligação ao sintetizador modular da Buchla (vimo-la, o ano passado, a tocá-lo maravilhosamente numa muito aplaudida apresentação no Theatro Circo no âmbito do Semibreve) e ingressar no circuito internacional de festivais de música mais exploratória, tanto a solo como em parcerias que sublinham o seu estatuto pioneiro, como a que estabeleceu com Kaitlyn Aurelia Smith em 2016 ou as alianças que tem desenvolvido no seio da extensa família da sua actual editora, caso dos NeoTantrik, “super-grupo” em que milita ao lado de Andrew Shalcross, Jane Weaver, Sam McLoughlin e Sean Canty (que é metade dos Demdike Stare).

O álbum que a editora de Votel agora lança, Music For Denali, resulta de uma aturada exploração dos arquivos de Suzanne Ciani e é especialmente revelador. O material, que foi recentemente recuperado em velhas e detalhadamente anotadas fitas na posse da compositora americana, data de 1972, altura em que Ciani foi contactada por um produtor francófono de cinema chamado Patrick Derouin com o intuito de compor música “de pensamento avançado” e “de outro mundo” para, revela-se nas notas que descrevem este lançamento, “acompanhar algumas imagens inéditas das primeiras pessoas a alguma vez descerem em skis a perigosa face do Monte McKinley no Alaska. Reconhecida como uma das mais altas montanhas do mundo, estas imagens iriam assinalar um significativo feito histórico previamente inconcebível excepto para um pequeno grupo de exploradores francófonos europeus e também iria coincidir com um esforço de pressão cultural junto das autoridades do Alaska de forma a reclamarem junto da Comissão Norte Americana de Nomes Geográficos a reposição do nome tradicional da montanha, Denali (uma decisão apoiada amplamente pelos Koyukon Athabaskans que há séculos habitam a área em torno da montanha)”.

Suzanne Ciani haveria de trabalhar para cinema, tendo criado música e efeitos sonoros para Rainbow’s Children (1975) de Lloyd Michael Williams e The Stepford Wives (1975) de Bryan Forbe, mas esta foi a sua primeira encomenda dessa área, depois de ter registado o seu primeiro trabalho pago quando criou, em 1970, loops de sintetizador para aquários da cadeia de centros comerciais Middle America (música essa reeditada pela Finders Keepers no EP Fish Music). E é uma espécie de vislumbre do futuro, pois combina trabalho electrónico com piano. Ciani interpretou as imagens que lhe foram propostas por Patrick Derouin, combinando alguns drones de carácter mais ambiental, com arremedos pianísticos, com alguma dimensão poética, certamente adequada às imagens que lhe foram trazidas pelo documentarista.

“Denali foi composta usando apenas o Buchla e o piano”, confirma Ciani nas notas de lançamento. “Foi gravado no Rainbow recording, que fui o estúdio que fundei e que partilhava com o engenheiro de som Richard Beggs, que depois o vendeu ao Francis Ford Coppola, depois de eu me ter apaixonado e de me ter mudado repentinamente para Los Angeles”. “Se eu tivesse ficado por lá”, explica Ciani referindo-se a São Francisco, “teria provavelmente acabado a fazer som para o Coppola”. “Tenho muito boas memórias de ter conhecido o Patrick, com o seu carregado sotaque francês, Ele era um homem baixo e áspero que parecia ter acabado de descer da montanha ele mesmo”. Suzanne acabou por só ver as imagens um par de vezes, mas, como se cuida de referir nas notas de lançamento, toda esta história coincide com os registos que apontam a primeira descida em ski da montanha Denali em 1972. O nome do intrépido explorador era Sylvain Saudan, suíço.

Com drones que evocam o vento que rasga as montanhas, pulsares rítmicos que traduzem a sensação de movimento e o piano a conferir carga dramática às composições, esta é uma vívida amostra dos talentos de uma mulher que desbravou terreno e assegurou um lugar na história que, muito graças aos esforços quase “arqueológicos” de etiquetas como a Finders Keepers, vai ganhando novos contornos, novos protagonistas, novas heroínas.

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