O momento mais especial da edição 2019 do Semibreve foi também o último: as elegantes vénias com que Suzanne Ciani retribuiu o efusivo aplauso que recebeu no final da sua actuação foram o perfeito corolário para três dias de intensa comunhão entre o público e os artistas que preencheram os espaços com que este cartaz se espalhou por Braga. Não restam dúvidas de que à sua nona encarnação, este festival conseguiu a proeza de firmar um público com generoso espírito de aventura, atento, reverente e perfeitamente conhecedor das mais recônditas zonas musicais com que ano após ano tem sido confrontado.
O programa do último dia de Semibreve iniciou-se no impressionante espaço que é o Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, uma sala de pedras e madeiras carregadas de história cujo carácter solene e nobre se revelou perfeito para enquadrar a música sussurrada de Félicia Atkinson. Com Fender Rhodes, um pequeno Korg, laptop e um pequeno conjunto de percussões (sinos cerimoniais tibetanos e o que parecia ser uma lâmina de vibrafone montada sobre um tubo reverberante), Félicia criou a difusa paisagem sobre a qual a sua voz, como um eco perdido e ténue, evoluiu com dramática elegância. “In some deserted place you get sunflower seeds”, parece ter dito a dada altura, num dos arremedos poéticos que por vezes se tornavam perceptíveis. A música de Félicia parece fazer-se da mesma fugaz matéria dos sonhos e, uma vez mais, convidou a assistência a cerrar os olhos e a deixar levar-se para longe. No meu caso posso dizer que senti o chão de um bosque debaixo dos pés, cheiro a musgo e a densa presença de neblina. Suzanne Ciani, os Deaf Center ou André Gonçalves contavam-se entre a assistência, evidência de que no Semibreve até os artistas sabem também ser público.
Já no Theatro Circo, Scanner foi o primeiro a subir ao palco para a apresentação que contava com visuais a cargo de Miguel C. Tavares. Na conversa que marcou o arranque desta edição do Semibreve, na passada sexta-feira, Robin Rimbaud já tinha confessado o carácter desafiante imposto pelo facto de estar a trabalhar com o sistema ADDAC de André Gonçalves — “será como aprender uma linguagem diferente”, referiu —, mas a verdade é que foi com contida elegância que se desenrolou a sua prestação, sem sobressaltos aparentes, numa investida ambiental que uma vez mais convidou ao recolhimento, sugestão tornada ainda mais premente pelas imagens difusas e altamente abstractas de Miguel Tavares, com o mar sobrevoado, tingido de filtros a revelar-se como perfeitamente adequado para as doces ondas electrónicas que Scanner foi erguendo a partir do seu modular. Que os seus discos que estavam na banca de merch tenham desaparecido rapidamente no final da apresentação é indicador claro da forma como foi recebida.
E foi com Suzanne Ciani, que subiu ao palco pelas 18h10, que o círculo deste Semibreve se completou. Curiosamente (ou não, que nestas coisas não há acidentes…), o cartaz deste evento contou com dois veteranos da pioneira cena electrónica de São Francisco a abrir e fechar. Tanto Morton Subotnick como Suzanne Ciani estiveram ligados ao Tape Music Center daquela cidade californiana e ambos foram toda a vida devotos executantes dos instrumentos imaginados e construídos por Donald Buchla.
Para a sua actuação, Suzanne revelou toda a generosidade da sua entrega ao usar uma câmara para projectar no ecrã gigante do palco principal do Theatro Circo o seu setup e, sobretudo, a forma como com ele interagiu ao longo de 45 fascinantes minutos: um Buchla 200e, “aditivado” com três iPads e um dos interfaces originais do instrumento, uma espécie de esotérico teclado de lâminas metálicas que parecia saído do cockpit de uma nave espacial numa produção cinematográfica dos anos 70. Se os Klingons tiverem instrumentos, não hão-de ser muito diferentes…
Do ruído branco a graves que fizeram ressoar as centenárias madeiras do Theatro Circo, de brilhantes e vibrantes arpeggios a bleeps e bloops que percorreram o espaço — Ciani fez uso do sistema quadrifónico montado na sala e replicado na forma como foram dispostos os monitores em palco —, de tudo se ouviu extraído de um generoso modular manipulado — “tocado mesmo”, como Ciani fez questão de sublinhar na sua comunicação pública do dia anterior — por mãos sabedoras que souberam aproveitar a ocasião para demonstrar todas as possibilidades do instrumento. Aqueles 45 minutos foram, de facto, preenchidos com uma amostra de todas as nuances existentes dentro daquele Buchla. Foi, por isso mesmo, uma actuação carregada de dinâmicas, ultra-expressiva e totalmente cativante. Os entusiasmados aplausos do final, elegantemente retribuídos por Suzanne Ciani, foram disso mesmo o mais claro sinal.
Fechou, portanto, com chave de ouro mais uma edição do Semibreve e a natural satisfação estampada nos rostos de Luís Fernandes, Rafael Machado, Miguel Pedro Guimarães ou Tiago Gomes Sequeira, os organizadores do festival, e demais equipa reflectem uma missão cumprida da melhor forma. Em 2020, o festival chegará à sempre importante marca que é 10ª edição e portanto, certamente, grandes projectos se preparam desde já. Tarefa que será mais facilitada tendo em conta tudo o que já se conquistou nestas primeiras nove edições. Venha de lá esse futuro.