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Ilustração: Riça
Publicado a: 12/08/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #24: Jaga Jazzist / Jon Hassell / Wildflower

Ilustração: Riça
Publicado a: 12/08/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Jaga Jazzist] Pyramid / Brainfeeder

Nono álbum para o veterano colectivo norueguês Jaga Jazzist que se estreia na Brainfeeder de Flying Lotus cinco anos depois de ter editado o seu último registo, Starfire. Este novo trabalho foi originalmente anunciado para o mês de Abril, mas viu-se adiado para a passada sexta-feira, tendo o compasso de espera sido mitigado com a edição de dois singles, o tema “Spiral Era” (que mereceu, no passado mês de Junho, musculado upgrade para pista de dança assinado por Prins Thomas) e o tema “Tomita” (que teve direito a edit e a um interessante vídeo de animação, disponibilizados a 23 de Julho).

Nas notas de lançamento, explica-se que embora Pyramid partilhe com Starfire “o mesmo espírito de curiosidade experimental”, algo que de resto está presente desde sempre na atitude do grupo liderado por Lars Horntveth (multi-instrumentista que neste registo é creditado com “guitarras, guitarra pedal steel, clarinetes, saxofones, teclados, sintetizadores, vibrafone, piano e programação”!!!), o método de criação foi bastante diferenciado, com o próprio colectivo a assumir a produção (até agora, papel quase sempre assegurado pelo colaborador próximo Jørgen Træen) que foi muito mais concentrada no tempo: duas semanas para gravar e misturar tudo, por oposição ao processo de dois anos do registo anterior.

Ao lado de Hornveth estiveram Marcus Forsgren (guitarra eléctrica e vozes), Even Ormestad (baixo), Line Horntveth (tuba, saxophone alto, bombardino, flauta e vozes), Erik Johannessen (trombone e vozes), Martin Horntveth (bateria, percussão e programação), Øystein Moen (sintetizadores, clavinet, Hammond) e Andreas Mjøs (vibrafone e, se bem entendemos o crédito de “chef” mencionado nas notas de edição, tachos e panelas…).  David Wallumrød é ainda referenciado como “pro soloist” em “Tomita” (o que não significa, tomando a incrível música aqui apresentada, que todos os outros sejam “amadores”…).

O texto de apresentação de Pyramid refere tratar-se para o grupo de um “mergulho profundo em influências pós-rock, jazz e psicadélicas”, explicando-se ainda que o encaixe na aventureira editora de Los Angeles foi aproveitado pelo grupo para desenvolver “um apropriado som cósmico” que se traduz em “piscadelas de olho” a “antepassados” como “a banda de jazz dos anos 80 Out To Lunch e o guru norueguês dos sintetizadores Ståle Storløkken ou contemporâneos como Tame Impala, Todd Terje e Jon Hopkins”. De facto, “cósmico” é um adjectivo que descreve bem o som dos Jaga jazzist em 2020, mais um sinal claro do aparente processo de reavaliação das pistas do jazz de fusão dos anos 70 e 80. Essa sonoridade “expansiva” e complexa, apoiada em estruturas elaboradas, exploratória à sua maneira, é inspiração forte neste Pyramid que faz jus ao programa que promete pós-rock, psicadelismo e jazz ao procurar formas mais dilatadas no tempo (o álbum apresenta-se como um painel de quatro quadros), uso criativo da mistura e dos efeitos de estúdio para criar “ambiências” e, claro, invenção espontânea liderada por solos inquisitivos.

Em termos texturais, Pyramid é extremamente rico, percebendo-se que houve investimento meticuloso na forma como se procuraram articular as diferentes personalidades dos instrumentos, com as guitarras e os sintetizadores a colorirem em primeiro plano as densas tapeçarias sonoras aqui trazidas. Os títulos dão-nos algumas pistas: se “Tomita” e “The Shrine” parecem ser referências directas ao compositor de electrónica japonês Isao Tomita e ao gigante nigeriano Fela Kuti (The Shrine era o nome do seu lendário clube em Lagos) e “Spiral Era” poderia ser uma piscadela de olho algo oblíqua a Vangelis e ao seu trabalho de 1977, Spiral, já “Apex” poderá estar aberto a mais interpretações (o seu pulsar particular poderá remeter para Harold Faltermeyer, teclista que trabalhou com Giorgio Moroder e que se eternizou com o icónico “Axel F”, tema criado para a banda sonora de Beverly Hills Cop). Não sendo necessárias grandes doses de imaginação para adivinhar ligações entre as planantes criações de Tomita e algumas das passagens do tema que abre Pyramid, e se mesmo arrancando em terrenos mais “milesianos”, “The Shrine” não evita uma cadência mais vincada onde é fácil reconhecer a influência do afrobeat, já “Spiral Era” pode mesmo ser uma referência a Vangelis, com o uso das vozes no tema, por exemplo, a remeter para “Ballad”, uma das faixas do já referido álbum do famoso teclista grego.

É mais do que claro que os Jaga Jazzist não disfarçam as origens do som que apresentam em Pyramid, mas o que aqui importa é a viagem em si, não o ponto de partida. E os arranjos traduzem sempre ambição formal, rigor orquestral e imaginação em doses generosas, com a música no final a afirmar-se como firmemente deste tempo, muito mais do que simples resultado de um colectivo olhar revisionista. Regresso em forma, sem a menor sombra de dúvida. Resta esperar que a decisão de adiar o disco de Abril para Agosto esteja ligada a uma vontade de trazer para os palcos a aventura que foi criada num estúdio sueco perdido no meio da floresta. Dedos cruzados…


[Jon Hassell] Seeing Through Sound (Pentimento Volume Two) / Ndeya

Na capa interior deste Seeing Through Sound – segundo volume na série Pentimento iniciada há um par de anos – há uma frase do realizador italiano Federico Fellini: “A música parece ser sempre acerca de dizer-nos um segredo…” De facto, se há artista que parece ter gasto as últimas quatro décadas a enredar-nos num mistério, esse artista responde ao nome Jon Hassell.

Hoje com 89 anos, e felizmente alvo de um sustentado esforço de recatalogação da sua obra (os álbuns Vernal Equinox, 1978, Fourth World Vol. 1 – Possible Musics, trabalho colaborativo com Brian Eno datado de 1980, Dream Theory in Malaya (Fourth World Volume Two), de 1981, e Flash of the Spirit, disco dividido com os Farafina, de 1988, foram todos relançados nos últimos anos), Hassell continua, no entanto, a revelar-se como um inquieto criador, não lhe bastando a constante adulação que a crítica e os seus pares devotam à sua obra clássica. Há dois anos ofereceu-nos o primeiro volume de Pentimento, o admirável Listening Through Pictures. O título da série refere-se ao “reaparecimento numa pintura de imagens, formas ou pinceladas mais antigas, que foram mudadas e pintadas por cima”. E sim, a música de Jon Hassell faz-se de múltiplas camadas de significação criativa, de um pensamento constante sobre a arte e o mundo, sobre as imagens e, agora também, sobre o som.

Neste novo álbum colaboram músicos como John von Seggern (baixo, sintetizadores, samples), Rick Cox (guitarra, clarinete baixo), Eeivind Aarset (guitarra, sampler), Kheir Eddine M’Kachiche (violino, sampler), Michel Redolfi (veterano do INA-GRM, responsável por “texturas electrónicas” no tema “Moons of Titan”), Peter Freeman (baixo), Hugh Marsh (violino, arranjos), Jan Bang (live sampling), Sam Minaie (baixo e percussão) e ainda Adam Rudolph (mais um veterano, baterista com longa associação a Yusef Lateef que também colaborou com os Build na Ark de Carlos Niño). Uma equipa diversa, que inclui músicos com vasta experiência nos campos do pós-punk, electrónica experimental ou jazz de feições mais exploratórias. O que faz pleno sentido: Jon Hassell é um daqueles músicos que, como nos explicava a também trompetista Susana Santos Silva (que, aliás, deve conhecer bem a obra do veterano americano), inclui no seu processo de composição a meticulosa escolha dos músicos que o acompanham – não se trata apenas de seleccionar um qualquer executante competente para um determinado instrumento, mas antes de eleger conscientemente um músico com uma história e uma bagagem específicas. E isso sente-se especialmente em trabalhos, como este Seeing Through Sound, que vivem da precisa gestão dos mais ínfimos detalhes. Aqui, cada “pincelada” conta: mesmo as que possam ficar submersas nos arranjos mais densos.

O álbum é “emoldurado” por duas peças mais longas que ultrapassam os 8 minutos cada: “Fearless”, logo a abrir, é um manifesto de intenções, uma destemida peça em que o trompete de Hassell surge altamente processado, desenhando abstractas figuras geométricas em torno de uma cadência repetitiva e hipnoticamente lenta ao passo que “Timeless”, tema que encerra este estudo de “visão através do som”, é uma peça mais ambiental, igualmente preenchida de diferentes texturas, como um complexo ecossistema, em que cada som parece depender do próximo. Os títulos “Fearless” e “Timeless” podem também ser entendidos como uma referência à vida e à morte: tendo superado severos problemas com cancro, Hassell encontrava-se no grupo de maior risco de contágio por COVID-19, facto que levou Brian Eno a iniciar uma campanha de angariação de fundos para cobrir custos com a hospitalização do seu antigo companheiro de aventuras.

Julgando apenas pela música aqui apresentada, percebe-se que o desconhecido continua a ser o que mais atrai Jon Hassell, que continua capaz de criar as mais vívidas paisagens de mundos que ainda precisamos de descobrir, com o seu altamente expressivo trompete a resolver-se em estúdio como um instrumento mutante, sentindo-se vagamente ao fundo a tradição que o formou (Miles é uma referência, bem como os minimalistas como Terry Riley ou LaMonte Young com quem trabalhou no arranque da sua carreira), mas resultando muito mais nítida a exótica galáxia distante para onde consegue remeter-nos a cada nova peça.


[Wildflower] Season 2 / Ill Considered Music

Os Wildflower são o trio do baixista Leon Brichard (que também integra os Ill Considered, Pokus e madmadmad), do clarinetista, saxofonista e flautista Idris Rahman (igualmente dos Ill Considered, mas também membro de Uniting of Opposites e Soothsayers) e ainda do baterista Tom Skinner (que toca com muita gente incluindo os Sons of Kemet). Season 2, segundo trabalho do trio, que sucedeu a uma homónima estreia data de 2017, foi originalmente lançado o ano passado, mas teve relançamento recente e por isso mesmo merece por aqui algumas notas (azuis…).

Como se percebe pela enumeração dos projectos a que estes três músicos estão ligados, todos se encontram profundamente ligados à nova cena londrina (mais um par de meses e deixa de fazer sentido – se calhar já nem faz, na verdade… – usar a palavra “nova” para classificar o que se passa com a cena jazz da capital britânica). Entende-se igualmente que são músicos habituados a explorar diferentes contextos musicais, partindo quase sempre do jazz para aproximações ao funk e soul (madmamadmad), kraut (Pokus), world music (Uniting of Opposites), reggae (Soothsayers) ou afrobeat (Sons of Kemet), entre muitas outras coordenadas. Estamos, claramente, perante um trio de poliglotas.

E isso sente-se neste Season 2: se Rahman convoca para a sessão a sua particular bagagem cultural (o pai é bengali e os modos da música clássica da indiana informam a sua personalidade melódica, sobretudo, talvez, quando troca o tenor pelo clarinete e pela flauta, como acontece, respectivamente, em “Light in the Sorrow” ou “Where The Wild Things Dance”), Brichard contrapõe uma segurança a toda a prova que se traduz em riffs circulares, hipnóticos e amplos, o traço gordo que oferece os contornos para a coloração melódica do homem dos sopros e para a sofisticada propulsão criada por Skinner, um conhecedor profundo dos diferentes tempos que podem sustentar as derivas mais livres.

O lado espiritual da música de gente como John Coltrane ou Pharoah Sanders é importante como farol para o trabalho que os Wildflower aqui apresentam, mas, ainda que feita com doses generosas de liberdade discursiva, com cada um dos músicos a demonstrar de forma plena que saber “largar tudo” e partir sem mapa, a música deste álbum é igualmente feita de uma clara transparência que a torna imediatamente acessível. Nada aqui é “difícil”, antes pelo contrário: os Wildflower soam quase como uma condensação de várias décadas de jazz, uma refinada forma de a partir do presente olharem de forma panorâmica para a história que os trouxe até aqui.

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