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Ilustração: Riça
Publicado a: 11/07/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #30: Especial Legowelt

Ilustração: Riça
Publicado a: 11/07/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Legowelt] Pancakes With Mist / Nightwind Records

Quem porventura siga com um pouco mais de atenção esta coluna há-de, certamente, ter reparado que desde o seu arranque no passado dia 20 de Dezembro já por aqui se abordaram quatro títulos diferentes da discografia em permanente crescimento de Danny Wolfers, aka Legowelt, o prolífico produtor holandês que actualmente tem por base própria a Nightwind Records: The Land Is Entranced With Peace, assinado como Danny Wolfers, Secrets After Dreamse Tips For Life, ambos de Legowelt, e ainda Folk Triunfator, creditado a Zandvoort & Uilenbal. Se tal facto não denota uma leve obsessão por parte do mecânico de serviço nesta oficina, então esta 30ª sessão de “reparações radiofónicas”, que coloca na mesa de trabalho três edições (ou reedições…) recentes deste mesmo veterano músico e produtor, deverá funcionar como confirmação de que se reconhece sem pudores de espécie alguma o ascendente que a sua música exerce sobre este espaço.

O que é sempre interessante em Legowelt é que apesar de trabalhar com um conjunto de ferramentas muito específico (grosso modo, os sintetizadores, sequenciadores, caixas de ritmos, efeitos e modos de gravação disponíveis entre finais dos anos 70 e arranque dos anos 90), ele vai adoptando diferentes molduras conceptuais que lhe permitem explorar múltiplas nuances do devir electrónico pós-Kraftwerk e, vá lá, pré-drum n’ bass. Isso significa que as mais exploratórias visões que se estenderam a partir do synth pop que nasceu no período que se seguiu ao punk, as obtusas experiências que resultaram numa subterrânea e muito activa cassette culture tão bem documentada pela Vinyl On Demand ou pela Minimal Wave de Veronica Vasicka, toda a cena Italo Disco, o techno que se impôs a partir de Detroit, o electro mais experimental que se desenvolveu nas margens do hip hop em Nova Iorque ou a ideia de rave que se disseminou a partir de Inglaterra nos alvores dos anos 90 são direcções que Legowelt já investigou a partir do seu bunker electrónico, o North Sea Institute For The Overmind, como ele próprio designa o seu laboratório de trabalho.

No presente caso, o intrigantemente titulado Pancakes With Mist, Legowelt tenta traçar a linha que une o electro mais contemplativo, a cena minimal synth e o techno da escola Underground Resistance. Só que, como sempre acontece quando se trata de trabalho assinado pelo senhor Danny Wolfers, por aqui também se adivinha um subtexto de subtil deslocação psicadélica: em “Words are Spoken but do not Enlighten”, por exemplo, parecem estar conjugadas uma faixa de abrasivo techno e um tema ambiental de figuras circulares hipnóticas – ambas poderiam ter existência própria e independente, mas quando combinadas resultam num objecto mutante, tão urgente no plano rítmico, quanto libertário e espacial na estratosfera melódica que o engloba.

O rigor da produção de Legowelt é similar ao da direcção artística das mais exigentes produções cinematográficas que garantem sempre que não há falhas nos filmes de época e que cada móvel, objecto ou peça de roupa é condizente com a era em que decorre a história. Aqui é exactamente a mesma coisa: não há arpégios digitais sobre bases rítmicas analógicas, não há efeitos nas vozes que não remetam para o espírito que se pretende evocar em cada tema, a gestão dos arranjos reflecte o tipo de possibilidades que os primeiros sequenciadores ofereciam e não há a mínima tentação de injectar modernidade na fórmula. Mas, ressalve-se, o impulso de Legowelt não é o de um qualquer desejo de encaixe retro numa cena, como o que leva tantos jovens guitarristas em busca de autenticidade psicadélica a comprarem amplificadores Orange, antes o de um auto-imposto desafio de criação com uma paleta limitada de ferramentas. À falta de uma máquina do tempo que possa levar o músico holandês até à Sheffield de 1979 ou à Detroit de 1984, esta é a melhor forma de condicionar esteticamente o seu output. E os resultados, diga-se, são invariavelmente brilhantes. E de uma funda ironia: basta escutar o tema título em que Legowelt finge ser um jovem adulto que enverga gabardina e se mostra afectado psicologicamente por décadas de Guerra Fria enquanto dança perdido algures num bloco de apartamentos de arquitectura brutalista numa capital europeia do início dos anos 80 e sonha ter o mesmo tipo de sucesso dos Telex. Ou algo do género.



[Legowelt] The Occult Animals of Silicon Valley / Entr’acte

O tema que a Entr’acte muito recentemente disponibilizou no seu Bandcamp fez originalmente parte de uma split tape que em 2009 opôs Legowelt e o projecto Kallabris. Com edição original limitada a 100 cópias (embora, e apesar da sua raridade, os exemplares neste momento disponíveis no Discogs até estejam com preços bem acessíveis), este lançamento digital é por isso mais do que bem vindo e revela mais uma importante peça para completar o complexo puzzle que é a vasta obra do produtor holandês.

The Occult Animals of Silicon Valley, trabalho com 15 minutos de duração, é um belo pedaço de electrónica aventureira, uma composição épica e cinemática em busca de um VHS em que sobreviva um obscuro filme de baixo orçamento que seja condizente com o seu carácter lo-fi. Pode imaginar-se até que se trata de um filme policial que narra o estranho caso de um assassinato no centro nevrálgico do desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos. A música tem, certamente, as doses certas de tensão para servir a narrativa que coloca um detective da esquadra de Silicon Valley a investigar o desaparecimento de um engenheiro informático após um suspeito encontro com uma loura platinada de óculos escuros e gabardine de plástico azul eléctrico… (e sim, tenho perfeita noção de que estou a abusar…)

Desprovida de elementos percussivos, esta suite divide-se muito claramente em duas partes, com a tensão da primeira metade a ser depois substituída por um tom mais melancólico, criado com esparsos desenhos melódicos e doses generosas de reverb que dão a essa secção do tema uma dimensão algo onírica. Este registo, mais longínquo da ideia da pista de dança, mais cinemático e exploratório, rende sempre interessantes obras no cânone de Legowelt e esta não é excepção. Mesmo no final, quase a tocar nos 15 minutos, surgem então os animais ocultos de Silicon Valley, aves exóticas, a julgar pelo som, talvez as únicas testemunhas do caso que o tal detective não chegou a resolver…



[Sammy Osmo] Schaduw Horizon / Utter

Schaduw Horizon, trabalho creditado a Sammy Osmo (um dos incontáveis alter-egos de Danny Wolfers), vai já na sua terceira vida: foi originalmente editado em 2008 na Strange Life Records, o primeiro selo de Legowelt, que entre 2006 e 2010 lançou mais de quatro dezenas de títulos, sobretudo em CDr; depois, em 2018, foi relançado como uma cassete na Nightwind Records, etiqueta que o produtor criou em 2014 para preencher o espaço deixado vazio pelo desaparecimento da Strange Life e que se mantém activa até hoje (o lançamento mais recente, Pancakes With Mist, tratado mais acima, ainda não completou duas semanas…); finalmente, a banda sonora fictícia – o título original era De Originele Filmmuziek Van Schaduw Horizon… – vai agora conhecer edição em vinil através da britânica Utter, editora com um curto mas excelentemente curado catálogo que inclui contribuições de Jack Latham, Trevor Jackson, O Yuki Conjugate, Jorge Velez e DMX Krew.

Como se garantia a propósito de The Occult Animals of Silicon Valley, o tal modo, em que Wolfers tantas vezes mergulha, de criação de bandas sonoras fictícias (e a que ele tantas, mas tantas vezes mesmo recorreu na fase em que manteve activa a Strange Life Records), rende resultados invariavelmente fascinantes e este Schaduw Horizon não é diferente. Descrito como um “cult spywave álbum”, este é mais um registo em que as intrigas típicas dos tempos da Guerra Fria, a ameaça de iminente colapso nuclear e os jogos de poder nas mais altas esferas políticas rendiam cinema feito de nervo e atenção (The Ipcress File, Smiley’s People, Topaz, 3 Days of the Condor) que é precisamente a atmosfera que Wolfers, aqui na sua única incursão na identidade Sammy Osmo, procura explorar.

Arpégios de tons menores, utilização esparsa de elementos percussivos, floreados melódicos fugazes, texturas graves e uma mestria considerável nos arranjos que denotam um apurado sentido orquestral, apesar da economia extrema das ferramentas disponíveis – como John Carpenter, que assinava as suas próprias bandas sonoras recorrendo a um ultra-limitado arsenal de sintetizadores, também Wolfers parece seguir à risca a ideia de criação com budget muito curto, erguendo os temas a partir de uma paleta tímbrica reduzida, mas tratando cada peça como se fosse possível transpor os arranjos para o espectro de uma grande orquestra: Carpenter nos meios, certamente, mas John Williams na intenção (imaginem, por exemplo, “Moord Op De Kagerplas”, “Assassinato no Kagerplas”, a décima faixa no alinhamento, tratada com os mesmos recursos orquestrais que Williams teve à disposição em Encontros Imediatos do Terceiro Grau…).

A capacidade de Danny Wolfers em assumir estas molduras conceptuais para os seus diferentes trabalhos é de facto extraordinária e quando se partilha o mesmo universo de referências literárias, cinematográficas e musicais, tudo parece fazer muito mais sentido (e é essa, afinal de contas, a maravilha no caso da hauntologia: quando se fala a mesma linguagem por se possuir um qualquer alinhamento geracional que permite extrair sentido do tecido de referências culturais, o alcance da música aumenta exponencialmente). E ainda que o filme Schaduw Horizon possa existir apenas num qualquer remoto recanto da imaginação de Danny Wolfers é quase impossível terminar a audição imersiva de um álbum destes sem reter as imagens que a música e a atmosfera criada com os títulos imprimem no nosso pensamento. 

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