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Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
[Tiago] Untitled / No Label
Este lançamento já data do passado dia 28 de Fevereiro, mas só ontem o descobri, graças ao mail que regularmente recebo do Bandcamp a dar conta das compras que vão sendo feitas por pessoas que prezo e sigo nesta plataforma (e obrigado pelo “
heads up”,
Trol2000). São meia dúzia de faixas que apontam noutras tantas direcções mantendo todas elas, no entanto, a distinta marca de liberdade de que Tiago Miranda não parece ser capaz de abdicar em nenhuma das suas discretas aventuras. De facto, Tiago é provavelmente um dos mais livres criadores do último par de décadas, tendo explorado as zonas mais remotas do jazz, do rock, da livre improvisação e da electrónica centrada na pista. Neste registo sem título, Tiago percorre a longa distância que separa um abstracto e nervoso pulsar 8-bit que anima a primeira faixa, da funcional cadência house orgulhosa do seu passado disco (segundo andamento), as colorações techno vintage de analógica sofisticação (faixa # 3) do iluminado pedaço de jazz-funk de fusão guitarrística que bem ficaria repetida até ao infinito em “118.2” (o único tema que aqui merece título e que ocupa o quarto lugar do alinhamento), o loop quase-hip hop de hipnótica reincidência sustentado por uma bateria de orgulhosa identidade orgânica (entrada número 5) do disco filtrado de displicente carácter lúdico que encerra o alinhamento. A atitude “
anything goes” de Tiago é especialmente refrescante num tempo em que tantos procuram um qualquer “encaixe” numa qualquer cena que possa estar a garantir atenções e a verdade é que nestas seis propostas há quase tantos sólidos argumentos para sets que vivam bem sem a tentação de alinhamento com o que as
trends ditam para o momento presente (que, diga-se, nunca foi tão estranho, certo?).
[Legowelt] Tips for Life / Nightwind Records
Fui contar e já são mais de 50 títulos que o vasto output de Legowelt depositou nas prateleiras cá de casa (e que se alargam das edições em CD-R da sua já extinta
Strange Life Records ao catálogo integral da
Nightwind que se desmultiplica em edições em vinil, cassete, CD-R ou digitais passando ainda por lançamentos pontuais em selos como a
Clone ou, como sucedeu recentemente, em micro-operações como a
Mystic & Quantum). Ontem, aproveitando a campanha do Bandcamp, Legowelt ofereceu (base “name your price”) mais um dos seus ultra-personalizados delírios: techno “full on” se por “full on” entendermos música criada com equipamento analógico datado, aberta ao absurdo (“e se Detroit fosse uma aldeia da costa mediterrânica?” ou “e se todas as pistas de dança estivessem instaladas em abrigos anti-nucleares”) e contaminada por electro cinemático (“The Sinister Never Deceives”, “Your Life Goals Are Slowly Slipping Away”), abstractos pulsares hip hop (“Arcade Breeze (Living in the Rain)” é Miami Bass tocado por robots, “Buying ZIPdisks in Memphis” é southern bounce visto à distância do Mar do Norte) ou italo travestido de electronic body music (“Dune is a Great Movie No Matter What People Say”). A irredutível teimosia do senhor Danny Wolfers que não cede um milímetro que seja na sua obtusa visão da música electrónica é, de facto, viciante. E quando os discos já valem só pelos incríveis títulos das suas faixas, pouco mais há a dizer: “We Shampoo Your Dreams”? Techno para bunkers, lá está…
[Benge] FORMS 9 – Transformation Machine / Memetune Science Fiction
Benge é um fascinante e extraordinário criador que, um pouco como Legowelt diga-se (embora sem a sua vertente fantasiosa/absurdista), nunca se cansou de procurar o
espírito da máquina. Neste álbum ontem lançado, a premissa parece ter sido desenhada para satisfazer várias das minhas obsessões, devo confessar: “Buscando inspiração na ficção científica televisiva dos anos 70 e em bandas sonoras para cinema de gente como
Malcolm Clarke (
Dr Who – The Sea Devils) e Gil Melle (
The Andromeda Strain), Benge convoca o poder dos seus preciosos sintetizadores SEM para compor uma suite de vinhetas musicais perfeitas para um drama televisivo imaginário”. E é isso… Benge explica que se impôs limitações, gravando exclusivamente com equipamento analógico criado pela
EMS nos anos 60 e 70 (o fetichismo pela máquina manifesta-se, claro, numa lista capaz de gerar suores frios em qualquer
synth head: VCS3 Mk1 – The Putney, DK1 Keyboard – The Cricklewood, EMS TK1 Sequencer, Polysynthi Polyphonic Keyboard, EMS Random Voltage Generator, EMS 8 Octave Filter Bank, EMS Pitch-Voltage-Converter) e, obviamente, isso remete-o para a esfera do Radiophonic Workshop levando a que este volume 9 na série FORMS soe como algo que poderia perfeitamente encaixar-se no catálogo da Ghost Box: o peso da memória é evidente e assumido, mas o resultado não é mero mimetismo, antes válido salto no tempo até uma era em que os bleeps e os bloops e a magia da voltagem a circular entre díodos e resistências traduziam uma fome de um futuro que, se calhar, não chegou a acontecer tal qual estava prometido…
[Vasco Completo] Desligado / Edição independente
Aviso prévio: o Vasco é um amigo, cúmplice e colaborador frequente do Rimas e Batidas (onde, aliás, tem feito um
notável trabalho de mapeamento da nossa electrónica mais desalinhada). O Vasco também é músico e produtor e nunca, mas nunca mesmo, me fez chegar um link que fosse ou usou a proximidade que existe entre nós para me chamar a atenção para o seu próprio trabalho (e não que o mundo desabasse se o fizesse, entenda-se). Ora, ontem mesmo, o Vasco lançou um absolutamente delicioso
single no seu Bandcamp. “Desligado” (faz sentido…) e “Conexão” (harmonia dos contrários, certo?…) são dois pedaços de electrónica baleárica guiados pela sua guitarra atmosférica, com o primeiro tema a acomodar fraseados de índole jazzística que nos remetem para o que de mais interessante gente como
John Tropea ou
John McLaughlin fez ali entre finais dos anos 70 e inícios dos anos 80 e o segundo a soar um pouco mais abrasivo, angular e cinemático. E tudo muito bem embrulhado por uma sofisticada manta electrónica de tons crepusculares que leva a que estes dois deliciosos exercícios nos remetam para um outro lugar onde suspeito que há palmeiras, areias brancas e águas habitadas por peixinhos multicolores. Está-se tão bem dentro das nossas cabeças, não está?…