pub

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 20/01/2023

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #113: os 10 melhores álbuns nacionais de 2022

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 20/01/2023

Desta lista de dez títulos – organizados, uma vez mais, por ordem alfabética dos seus autores – resulta uma evidência: esta é apenas uma amostra de um ano múltiplo e variado, uma amostra contida a 10 títulos só porque sim, porque poderia ter 20 ou 30 e ainda assim ser insuficiente para dar conta de todos os caminhos que artistas nacionais trilharam dentro e fora de portas, em selos nacionais e internacionais, em palcos de todo o lado. Da primeira parte da lista já de deu conta radiofónica aqui, a segunda parte aguardava pela publicação desta lista e fica, portanto, reservada para a emissão do próximo domingo na Antena 3, que posteriormente será arquivada na RTP Play.


[Rodrigo Amado] Refraction Solo

O que se escreveu (no Expresso): “O que espanta, no entanto, é a incrível capacidade de equilíbrio que em cada momento Amado expõe: conseguir afirmar uma linguagem altamente personalizada enquanto vai ziguezagueando no meio dos ecos ancestrais é facto digno de relevo. E talvez em nenhum outro registo isso se torne tão evidente quanto em Refraction Solo, álbum que resultou de solitária demanda pandémica e que foi gravado no verão de 2021 na Igreja do Espírito Santo, nas Caldas da Rainha. Partindo do estudo atento de peças clássicas de Sonny Rollins ou John Coltrane, da sua desmontagem e ‘refracção’, Amado alcança um plano de absoluta magnificência.”


[GUME] DOBRA (Facada Records)

O que se escreveu: “É verdade que as tags no Bandcamp funcionam sobretudo como ferramentas de “localização” que ajudam quem possa de repente cruzar-se com uma edição de um artista que não conheça previamente a saber onde, afinal de contas, se ‘encontra’. Mas, mesmo que se concorde que boa parte dos classificativos limitam mais do que esclarecem, é, ainda assim, possível ler algo nas escolhas de quem, no momento de carregar um novo trabalho para a mencionada plataforma, aponta coordenadas como ‘afrobeat’, ‘experimental’, ‘jazz’, ‘jazz fusion’, ‘latin’, ‘spoken word’, ‘afrofuturism’, ‘folk jazz’, ‘psychedelic’, ‘slam poetry’ e ‘Lisbon’.

Em boa verdade, na entrevista que nos concedeu a propósito da recente edição de DOBRA, segundo álbum dos GUME depois de Pedra Papel que já data de 2017, o trompetista, compositor e líder Yaw Tembe é o primeiro a manifestar-se criticamente sobre os tais classificativos escolhidos: «Há duas palavras problemáticas que surgem nas nossas tags [risos]. Uma delas é ‘afrofuturismo’, a outra o ‘afrobeat’, embora considere esta menos problemática», admitiu Tembe que, no entanto, e talvez até paradoxalmente, não manifestou as mesmas reservas em relação à que será, eventualmente, a mais problemática das palavras usadas na secção de tags que ajudam a encontrar DOBRA – ‘jazz’, um termo que vários dos mais reconhecidos protagonistas contemporâneos do género refutam com alguma veemência…


[Mané Fernandes] Enter the sQUIGG (Clean Feed)

O que se escreveu: “Fernandes conta neste álbum com a companhia certa: para começar há Simon Albersten na bateria e Luca Curcio no contrabaixo, a dupla a quem é entregue a missão, expressa logo na abertura com ‘Ode to the Mixtape’, de criar uma sólida base rítmica que se percebe claramente ter nascido em cima do pulsar próprio do hip hop. Afinal de contas, e como o ele mesmo nos confessou, no título do álbum essa ideia também se encontra explicita: não só há um óbvio paralelismo com o título da obra magna dos Wu-Tang Clan – Enter The Wu-Tang (36 Chambers) – como na palavra ‘squigg’, inventada a partir de ‘squiggle’, inglês para ‘rabisco’, se pode ler uma oblíqua (ou talvez nem tanto…) referência ao criativo acto do ‘scratch’ por parte do DJ, uma forma de ‘rabiscar’ com som. Foi com esses dois músicos que, explicou-nos o guitarrista na já mencionada entrevista, se estabeleceu uma base de entendimento fundada numa vivência comunal em Copenhaga (cidade onde Mané Fernandes aprofundou os seus estudos académicos) que certamente incluiu muitas horas de intensa partilha de música. Depois veio o estúdio, com o trio base a ser expandido com a presença de dois cúmplices do Porto, o saxofonista José Soares e o teclista José Diogo Martins, dois recursos expressivos que permitem dar outro tipo de colorações às composições de Mané Fernandes. E sabendo-se (afinal de contas há dois registos prévios que o confirmam: Root/Fruit, edição digital de 2016, e BounceLab, lançamento Carimbo Porta-Jazz de 2014) dos sólidos pergaminhos técnicos de Fernandes, facilmente se compreende que o calibre performativo da equipa que elegeu teria que ser igualmente pronunciado: todos estes músicos são capazes de, em igual medida, expressar elegância, imaginação ampla e musicalidade funda.”


[Mário Laginha] Jangada (Editions Records)

O quer se escreveu (no Expresso): “Desta vez, e por oposição ao disco anterior, o trio interpreta composições do próprio Mário Laginha que, ainda assim, faz questão de dar crédito aos seus companheiros de aventura, ressalvando que ambos possuem uma vincada identidade própria: ‘eles são improvisadores e autores, são pessoas que têm ideias que ajudaram a que os temas crescessem’. Laginha fala dos momentos ‘abertos’ nas diferentes composições, aproveitados para voos e derivas por todos os membros do trio. «Por Exemplo, em ‘The Stone Raft’, que é um tema com 17 minutos – e já há muito tempo que não tinha um tema tão longo num dos meus discos – nasceu de um desafio lançado pela Fundação José Saramago e tenta traduzir aquela viagem que o livro conta, da Peninsula Ibérica que se separa do resto da Europa para ir avançando pelo Atlântico. Ainda pensei condensar o tema, mas iria retirar-lhe alguma verdade: ou se aceita entrar na viagem ou não». Outra inspiração literária marca ‘Disquiet’, peça que arranca com passo apressado imposto pelos pratos de Frazão e que depois Laginha trata de colorir imaginando com as suas notas outra vida para as palavras de Fernando Pessoa. Um outro livro, mais científico e ainda assim talvez igualmente poético, inspirou outros títulos, entretanto descartados: «O tema de abertura do álbum tem por título ‘Short Shore’, mas começou por se chamar ‘Marapuama’, que é nome de uma planta medicinal que encontrei ao folhear um livro de botânica da Gulbenkian», revela Mário Laginha. «Achei graça ao nome, mas quando fui ler sobre os benefícios da planta descobri que é muito usada para tratar a disfunção eréctil e pensei: ‘bem, se calhar as pessoas vão pensar que nós já não vamos para novos e que andamos para aqui a tomar uns chazinhos’», diz, por entre risos, o pianista. Logo depois, vem a explicação prática de como o tema ganhou novo título, procurando de alguma forma descrever o que a música transmite, com Laginha a sentar-se ao piano para exemplificar como em ‘Short Shore’ entrega à mão direita a função de acompanhamento enquanto a esquerda desenha a melodia em uníssono com o contrabaixo – «já muitos o fizeram antes, devo dizer, não é nada de novo – aliás, na música parece mesmo que já tudo foi inventado».


[José Lencastre] Inner Voices (Burning Ambulance)

O que se escreveu: “tour de force deste trabalho é, sem dúvida, ‘Whale Talk’, peça de quase 16 minutos em que os saxofones de Lencastre se cruzam com os bleeps e bloops da abstracta electrónica de Ary que a espaços soa, de facto, como se tivesse sido captada com hidrofones submersos para registarem o ‘canto’ de grandes cetáceos, criando uma hipnótica peça que bem poderia ilustrar um qualquer documentário oceanográfico do canal National Geographic. Interessante notar que quando a derradeira peça, ‘Moonlit Meadows’ – em que a electrónica de Ary se faz, uma vez mais, notar -, chega ao fim, a sensação que permanece é a de que acabou de escutar uma intrépida viagem ao centro de um mundo muito particular, uma viagem dinâmica, que se desenrolou através de diferentes ‘territórios’ de paisagens muito diversas, algo extraordinário tendo em conta que se trata de um registo solo de um saxofonista. O criativo uso do estúdio como instrumento adicional permite criar essa variedade, de tonalidades musicais e de texturas, de andamentos rítmicos e de abordagens ao instrumento. Juntando tudo o que Inner Voices nos oferece, conclui-se que José Lencastre é um músico de fundos atributos, técnicos e conceptuais, que aqui assina um incrível registo que certamente reencontraremos quando dentro de alguns meses fizermos as contas a 2022.”


[Mazam] Pilgramage (Clean Feed)

O que se escreveu: “É o som de Mortágua que começa por se impor: inquisitivo, pleno de nervo e força, aproveitando sempre ao máximo a matéria harmónica sabiamente atirada para o ‘tabuleiro’ pelas mãos de Carlos Azevedo. Miguel Ângelo e Mário Costa, por sua vez, soam mais livres e abstractos, abdicando bastas vezes da condução do tempo rítmico em favor de uma mais exploratória marcação. Em ‘Stubble’, a tal breve peça de apenas 38 segundos, evoca-se a concentrada complexidade zorniana numa espiral estonteante com Ângelo e Azevedo a olharem o ‘jogo’ fora das 4 linhas, ao passo que no momento seguinte, a peça que dá título ao álbum, ‘Pilgrimage’, Mortágua começa por se expressar em solo absoluto, com o seu tom a apresentar-se em traço carregado, fundo como um abismo, com os companheiros a juntarem-se depois em ‘stabs‘ uníssonos que depressa se desligam para cada um seguir por ali a fora como se fossem carros numa perseguição em filme policial, com a fuga do saxofonista a ser acompanhada de perto pelos restantes companheiros. O solo de Azevedo é depois angular, cinemático, todo ele tensão, com os ritmistas a definirem a velocidade e Ângelo em modo ‘not-walking-but-running-bass’. Toda uma história por aqui.

E é esse, enfim, o tom do álbum: há quatro cabeças que pensam e pelo menos 8 mãos, dois pés (talvez deva escrever três, já que o uso do pedal de sustain por Carlos Azevedo parece ser parcimonioso, embora se faça sentir bem no arranque e no final de ‘Stubborn’…) e um par de pulmões que executam uma música que é realmente lúdica, com os jogos de encaixe e desencaixe a traduzirem-se em belíssimos resultados que nos deixam de ouvidos escancarados a todas as possibilidades enunciadas. Importante, também, ver e ouvir isto a acontecer num palco (o quarteto andou na estrada, em peregrinação, certamente, em Março último, mas espera-se que haja outras oportunidades para os apanhar).”


[Susana Santos Silva & Kaja Draksler] GROW (Intakt)

Das notas de capa de Guy Peters: “Kaja Draksler e Susana Santos Silva estão entre as vozes mais originais e articuladas da inovação do jazz europeu. A sua arte funde composição e improvisação livre com estruturas, lógica musical e técnicas avançadas. Ambas desafiam as fronteiras estilísticas e históricas e encontraram uma expressão altamente pessoal tanto nas suas composições como no seu jogo improvisado, que é colorido, intrincado e abstracto. A forma como se atraem e se dirigem um ao outro em território ainda não descoberto é testemunho da sua interminável busca por significado e (auto)descoberta através do som. Ao baixarem as suas defesas, estão a criar novos contextos, paradoxos e desafios, baseados no conteúdo humano e na respiração expressiva. É exactamente este sentido de renovação e crescimento que vem à tona aqui.”


[Bernardo Tinoco & Tom Maciel] Nomad Nenufar (Clean Feed)

O que se escreveu: “Cinco peças ao todo com Bernardo Tinoco (saxofones alto e tenor, duduk, flauta) e Tom Maciel (piano, sintetizadores, caixa de ritmos) a procurarem adaptar-se aos tempos correntes partindo em busca de uma funcional (no sentido ‘palco’ do termo), mas ainda assim distinta, voz em duo. João Pereira junta-se-lhes na bateria em três das peças, mas a sua discreta presença parece indicar que os temas possuem argumentos para resultarem igualmente em duo. Claro que Tinoco e Maciel, acabados de sair de um sério e sólido percurso académico, têm os diferentes cânones bem presentes e hão-de ter estudado as duplas que, antes deles, exploraram as possibilidades de encaixe existentes entre piano e saxofone, mas há igualmente por aqui uma nítida modernidade que não passa apenas pela integração de electrónica nas composições, expandido possibilidades texturais, harmónicas e discursivas, mas que se sente também na forma desenvolta como cruzam linguagens integrando nas suas composições ecos (mais discretos ou mais presentes) de jazz, música contemporânea, tradicional e de géneros mais comprometidos com o grande oceano pop contemporâneo. E há também um refrescante e subtil humor, não apenas expresso nos títulos – ‘Desculpa o incómodo’, ‘Provisoriamente sem título’, ‘Este comboio já para em Arroios’ e até ‘5 Minutos’ (tem 7 e 24 segundos, na verdade…) – mas também na forma lúdica como os dois instrumentistas ‘brincam’ com os seus instrumentos, levando-os a serem ferramentas de expressão emocional tanto quanto musical: ‘5 Minutos’ é disso bom exemplo, com delicada introdução pianística de Maciel, que na forma como ataca as notas parece enamorado da reverberação do instrumento, a que depois se junta o sopro de Tinoco, todo ele contenção até que um som mais electronicamente recortado o inspira a partir para uma meditação que melodicamente parece carregar ecos de alguma clássica do século XX (Prokofiev?…), enquanto Maciel, por baixo, gera trovoada com fagulhas sintetizadas a que adiciona piano para boa medida. Podia ser peça de banda sonora de mistério de espionagem… Super interessante.”


[Ricardo Toscano Trio] Chasing Contradictions (Clean Feed)

O que se escreveu (no Expresso): “Gravado ao vivo – sem público – no Teatro São Luiz, em Lisboa, em Março do ano passado, este novo trabalho apresenta um repertório híbrido: duas composições do próprio líder (o tema título e ainda ‘Orange Blossom’), uma do seu baterista (‘Totem’), um standard de Thelonious Monk (‘Played Twice’) e uma tocante reinvenção de um fado (‘Súplica/Vagas Paixões’). Contas feitas a todas essas parcelas, o resultado que se obtém no final é uma das mais belas obras lançadas este ano em Portugal: um disco em que Ricardo Toscano assume a plenitude da sua voz, mostrando que o tom que foi moldando no seu alto é único, o verdadeiro pilar da sua distinta voz autoral. Mas Ricardo não é apenas um grande músico, é igualmente, como mais uma vez demonstra, um compositor de mão cheia. ‘Orange Blossom’, confessa-nos, foi escrita ao piano, num repente: «Não sou grande pianista, toco, vá lá, ao nível de um compositor», explica ele, soltando uma gargalhada que traduz a plena consciência do que acabou de dizer. «E gosto de escrever temas de acto único. Começas a escrever e acabas no dia. Ou no momento». Depois da confissão, não se chega exactamente à contricção, mas arranja-se espaço para um desabafo que parece indicar que há uma hierarquia clara estabelecida entre o músico e o compositor: «Nós passamos muito mais tempo a discutir a linguagem que temos em comum do que a impingir a nossa própria».

Em 2018, o álbum sem título que Ricardo Toscano editou com o seu quarteto – o trio presente mais o pianista João Pedro Coelho – valeu-lhe amplos elogios, confirmando as grandes expectativas que vinha de alguns anos a essa parte alimentando junto de quem o escutava ao vivo nos mais diferentes contextos. O ‘sucesso’ desse empreendimento justifica que se encare com alguma surpresa a adopção do formato de trio para esta nova etapa da sua carreira discográfica. Para Toscano, tocar com um pianista significa apenas, e muito simplesmente, ter mais uma pessoa «na conversa». E depois elabora: «Toda a gente, a partir de uma certa idade, tem de se tornar independente. Não é um pianista que me vai ajudar a tocar melhor um tema. Ele pode é fazer-me soar melhor. Mas não me vai ajudar. Eu não vou estar perdido numa estrutura, a precisar que me dêem a mão para atravessar a rua». Nada disso. E bastam as primeiras notas da sua exposição sem amparo rítmico no tema que dá título ao novo álbum, o primeiro do alinhamento, para se entender que ainda que possa estar a seguir em múltiplas direcções ao mesmo tempo, perseguindo as suas contradições, Ricardo Toscano conhece suficientemente bem o caminho para lá chegar até de olhos fechados, transformando ar em arte, emoção em melodia, pensamento em discurso e silêncio em maravilhamento.”


[Vários] Granito (Jazzego)

O que se escreveu: “Há um duplo sentido óbvio escondido no título – Granito – da primeira compilação da portuense Jazzego: os lugares — as terras, vilas e cidades — não se fazem das pedras que pavimentam as suas ruas ou que se empilham nas suas torres, muros e muralhas, antes das gentes que por aí se fixam, que nelas circulam, vivem e criam. Que nelas criam – ideia importante. Porque nesses lugares mencionados faz-se muita coisa: vive-se e morre-se, claro, sobrevive-se e luta-se, também, trabalha-se e, há que sublinhar mesmo esta ideia, CRIA-SE. E no Porto tanto de musicalmente relevante se tem desde há muito criado. O retrato que Granito, no entanto, propõe é o de um presente vibrante, feito de gente criativa que se move na sombra gentrificada da cidade, oferecendo-lhe um novo pulsar.

São ao todo nove faixas assinadas por alguns nomes já nossos conhecidos – como AZAR AZAR, Bardino, Minus & MRDolly ou Johnny Virtus e SaiR – e outros que não serão assim tão familiares, pelo menos de repente – os de Pedro Ricardo, Hugo Danin, Geodudes e Klin Klop. Há por aqui, como revela a ficha de créditos do disco, nomes recorrentes que vão dando à Jazzego aquela dimensão de família que tanto contribui para a definição de um som próprio: desde logo o do percussionista Manu Idhra, o do pianista e teclista Sérgio Alves (que quando está na dianteira assina AZAR AZAR), o do baterista Hugo Danin, do produtor e engenheiro Hugo Oliveira (aka Minus & MRDolly) ou, por exemplo, do saxofonista Fábio Almeida – todos aplicam os seus respectivos talentos em múltiplas sessões em que vão despontando diferentes líderes. Cena boa, claro.

pub

Últimos da categoria: Longas

RBTV

Últimos artigos