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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/03/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #91: Mané Fernandes

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 29/03/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Mané Fernandes] ENTER THE sQUIGG / Clean Feed

Se nenhum outro aviso se tiver captado previamente – ou seja, e indo às “recuas”, a capa do disco, o seu título ou todo o singular percurso de Mané Fernandes –, então “Ode to the Mixtape” terá que imediatamente acionar os nossos sinais de alerta: a mixtape, conceito consagrado no hip hop, é uma complexa e multifacetada invenção que parte da aparentemente simples ideia de encadeamento de música alheia pelo DJ, por um lado, mas que também traduz, por outro, reclamação de identidade na forma como se impõe uma marca autoral sobre essa matéria através da sua manipulação, do seu re-enquadramento e até da “perturbação”, via scratch, alteração de pitch, etc, da sua estrutura original. Com ligeiras modificações, a frase anterior que procura descrever o pensamento do DJ na hora de criação da sua mixtape seria inteiramente apropriada para descrever o improvisador de jazz em palco num determinado momento da história pós swing: também ele parte da aparentemente simples ideia de encadeamento de música alheia – os standards, essa língua tão franca quanto, mais tarde, a dos breaks fundacionais da cultura nascida no Bronx – para depois reclamar a sua identidade através da forma que escolhe para impor a sua marca autoral ao intervir sobre essa matéria, assumindo uma voz tonal própria e desconstruindo estruturas melódicas, harmónicas e rítmicas enquanto busca a plena liberdade. A “ode à mixtape” de Mané Fernandes é, portanto, um manifesto: ele assume que pega em música que veio antes, assume que tem uma bagagem específica – recolhida, disse-nos ele em reveladora entrevista, no infinito terreno da Great Black American Music: “essa é a cultura à qual eu devo muito. Eu sou um discípulo. Os meus mentores, ou gurus, são ou pessoas dessa cultura ou pessoas que conhecem profundamente essa cultura. Eu quero ser uma pessoa que conhece profundamente essa cultura, porque a arte que mais me toca, espiritualmente, é essa” – e transforma ENTER THE sQUIGG na sua declaração autoral, partindo das lições combinadas do jazz, soul, r&b, hip hop, etc (a tal Great Black American Music) para encontrar o seu próprio lugar nesse hoje global continuum. E fá-lo a golpes de pura imaginação.

Fernandes conta neste álbum com a companhia certa: para começar há Simon Albersten na bateria e Luca Curcio no contrabaixo, a dupla a quem é entregue a missão, expressa logo na abertura com “Ode to the Mixtape”, de criar uma sólida base rítmica que se percebe claramente ter nascido em cima do pulsar próprio do hip hop. Afinal de contas, e como o ele mesmo nos confessou, no título do álbum essa ideia também se encontra explicita: não só há um óbvio paralelismo com o título da obra magna dos Wu-Tang Clan – Enter The Wu-Tang (36 Chambers) – como na palavra “squigg”, inventada a partir de “squiggle”, inglês para “rabisco”, se pode ler uma oblíqua (ou talvez nem tanto…) referência ao criativo acto do “scratch” por parte do DJ, uma forma de “rabiscar” com som. Foi com esses dois músicos que, explicou-nos o guitarrista na já mencionada entrevista, se estabeleceu uma base de entendimento fundada numa vivência comunal em Copenhaga (cidade onde Mané Fernandes aprofundou os seus estudos académicos) que certamente incluiu muitas horas de intensa partilha de música. Depois veio o estúdio, com o trio base a ser expandido com a presença de dois cúmplices do Porto, o saxofonista José Soares e o teclista José Diogo Martins, dois recursos expressivos que permitem dar outro tipo de colorações às composições de Mané Fernandes. E sabendo-se (afinal de contas há dois registos prévios que o confirmam: Root/Fruit, edição digital de 2016, e BounceLab, lançamento Carimbo Porta-Jazz de 2014) dos sólidos pergaminhos técnicos de Fernandes, facilmente se compreende que o calibre performativo da equipa que elegeu teria que ser igualmente pronunciado: todos estes músicos são capazes de, em igual medida, expressar elegância, imaginação ampla e musicalidade funda.

E, falando de sinais de alerta, quando nos deparamos com o título da segunda faixa, “Boom Boom Bap”, já não restam dúvidas: o “swing” a que Mané Fernandes aspira é o que nasceu de “Funky Drummer” e depois foi domado por gente como Large Professor, DJ Premier, RZA, J Dilla, Flying Lotus, etc. E isso significa que aqui não se temem cadências repetitivas e não se teme igualmente a micro-gestão da repetição que pode ser subtilmente perturbada por pequenas alterações, no pulsar ou nas camadas harmónicas que o groove suporta, que vão impondo a cada uma das peças uma tranquila mas evidente, estrutura elíptica: esta é música que se move permanentemente em direcção ao desconhecido, que não teme meter o pé sobre gelo fino, mesmo sabendo que por baixo se esconde um abissal desconhecido. Toda esta música nasceu de duas sessões de improviso que depois foram tratadas como matéria sonora para subsequente edição digital: “Fizemos esses 2 dias de estúdio, mas, depois, eu e o Luca estivemos 5 meses em co-produção. Estivemos, literalmente, a compor com o material gravado”, explica-nos Mané Fernandes, descrevendo um processo em tudo semelhante ao que Teo Macero usou com Miles Davis a partir de In A Silent Way e Bitches Brew. “Ora aí está. Corta e cola. Criar estrutura a partir do material gravado. Ou seja, nós fomos para estúdio com temas, composições minhas, mas acrescentámos bastante. Fizemos muitas dobragens e muita edição criativa. Foi um acto de criação e não de correcção”, reforça Fernandes, referindo-se a todo o trabalho de edição posterior às sessões de gravação.

É admirável como, por exemplo, em “PLRLT∞NFNT” (uma das mais longas peças, com perto de 8 minutos, de um alinhamento que se desenrola como uma longa suite, na verdade), é o break cadenciado “a la Dilla” que dá o mote para uma exposição harmónica repartida por guitarra e sopros, que depois cede passo à secção rítmica que assume um determinante carácter propulsivo, estabelecendo-se depois ciclos de estímulo e resposta entre as dimensões rítmica e harmónica da peça, estratégia que permite que o ouvinte se enrede num novelo de som em que depois desponta o criativo guitarrismo de Mané Fernandes que pacientemente tece um discurso por cima de leve base electrónica, sem que nunca no seu solo se soltem faíscas típicas de quem possa estar interessado em superar com os dedos a velocidade da luz. Mané não é, felizmente, esse tipo de guitarrista. E mais evidências dessa condição são expostas no lírico tríptico “pink_M”: guitarra em duelo/diálogo com o saxofone, na primeira parte, guitarra fragmentada em multipistas a evoluir sobre vincada cadência rítmica, na segunda, e guitarra reduzida a abstracto ruído mais baixo, bateria, piano e saxofone, na derradeira (quase se pede rima obtusa de NERVE em cima desta parte).

Em “The Move” há a participação de Flavia Huarachi na flauta e em “Makuma 79” e “Pentagram Ceremony Squiggle” de João Barradas no acordeão sintetizado, dois convidados distintos, mas igualmente certeiros no encaixe no “casting” deste “filme”. Flavia ensaia uníssono com a guitarra de Mané em belo efeito naquele que é o mais longo tema do álbum, mais um abstracto estudo harmónico em cima de cadência hip hop de pronunciado músculo a que José Soares adiciona um belo contributo, um solo que nasce de uma exposição em uníssono com a guitarra, mas que rapidamente se liberta para procurar as estrelas. O “boom bap” é de toada bem tranquila na homenagem ao irmão mais velho de Mané Fernandes, o também guitarrista António Fernandes, embora hoje mais devotado a outras actividades de bastidores no mundo da música: Barradas brilha intensamente nessa peça, com um solo que soa a luz de uma lanterna na escuridão de um bosque enquanto Mané se espraia em cordas acústicas e até arrisca adicionar a voz à guitarra. Já a conclusão “cerimonial” é uma mais breve declaração em que tanto Fernandes como Barradas têm oportunidade de brilhar, um tema de sabor “tradicional” talvez um pouco mais intenso, mas que ainda assim mantém o plano rítmico em derrapagem por terrenos mais modernos.

No final, uma certeza: Mané Fernandes está pronto para reclamar com esta sua “mixtape” um lugar de destaque no panorama da música criativa nacional contemporânea, oferecendo ao nosso agitado puzzle presente uma peça de profunda originalidade que contém dentro tantas ideias que certamente ainda vamos dela recolher dividendos durante muito tempo.



ENTER THE sQUIGG, como de resto muitas outras edições da Clean Feed, está disponível na Jazz Messengers Lisboa.

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