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Fotografia: Raphael Gimenes
Publicado a: 25/03/2022

Honestidade na pesquisa e na procura do groove.

Mané Fernandes: “Quem disser que hip hop e jazz são coisas diferentes, não sabe o que está a dizer. É um continuum

Fotografia: Raphael Gimenes
Publicado a: 25/03/2022

O ponto de encontro com Mané Fernandes foi a loja Jazz Messengers, na Lx Factory, em Lisboa. E no mesmo espaço, por coincidência, encontravam-se alguns dos membros dos Mazarin. Vicente Booth, o jovem guitarrista que se escuta em Interlúdio, não escondeu o ar starstruck quando reconheceu o músico do Porto, de visita a Lisboa num périplo promocional de apresentação de Enter the sQUIGG, o seu novo álbum que acaba de ser lançado pela Clean Feed. A oportunidade não foi perdida e Booth acabou a combinar algumas aulas com Fernandes: “vai ser incrível”, confidenciou-nos depois.

O episódio reflecte bem o respeito que Mané Fernandes comanda e que é sublinhado sempre que o seu nome surge em conversa com outros músicos. Apesar do seu ainda curto output como líder – lançou BounceLab na Carimbo Porta-Jazz em 2014 — não fazer jus à dimensão que a sua profunda, honesta e singular dedicação à arte lhe confere.

A conversa, tida num tranquilo restaurante na zona de Alcântara, percorreu todo o seu percurso de vida e de música, passou pelo basquete e pelo hip hop e demorou-se na dissecação de alguns conceitos — de ritmo, de harmonia — que são centrais na sua abordagem criativa.



Eu conheço bem o teu irmão. Tu és músico e ele não. E é sempre curiosa essa história de porque é que um segue uma coisa e o outro não. O teu irmão também acaba por estar envolvido com a música, mas de uma outra maneira. A primeira pergunta que te coloco é: o que é que te puxou para a música? Há tradição na família?

Há. Tenho um avô que pertenceu a uma banda marcial. Era obcecado por música, tocava muitos instrumentos e tinha muitos instrumentos. A minha mãe, filha desse avô, não é música. O meu pai toca um bom bocado de guitarra. Gosta muito.

A tua família é de onde?

Eu cresci na Maia, perto do Porto. A família do meu pai é de Lisboa e Viseu. A família da minha mãe é da Maia. Havia músicos na família. Havia sempre um grande respeito pela música. A música sempre foi uma coisa altamente valorizada. Mesmo pelos meus tios, que não têm tanto envolvimento com a música. Sempre foi música. Fala-se de música, admira-se música…

És da colheita de?

’90. Esse meu irmão, mais velho, de que estavas a falar, também toca guitarra. E muito bem. Não mostra é a ninguém. Mas ele toca guitarra muito bem. Mesmo. Eu cresci com a sorte de ter um irmão 10 anos mais velho. Não são 5. Não havia aquele conflito e competição. Era só muito mais velho, muito generoso e muito amigo. E tinha todos os discos fixes [risos].

Grande vantagem.

Todos os discos de bandas que ninguém conhece. As minhas bandas de adolescência são coisas que as pessoas descobrem aos 30. Há uma música neste disco que é para o meu irmão, o “Makuma ’79”. Eu lembro-me de ouvir D’Angelo pela primeira vez e passar-me, ao ponto de ser um dos músicos da minha vida. O meu irmão dizia, “já reparaste que a guitarra está sempre a mudar? Já viste os acordes, sempre diferentes?” Tinha eu 13 anos. Eu ouço aquilo… “Isto é absolutamente misterioso! Eu não sei nada do que está aqui a acontecer. Não percebo”. O irmão dava-me sempre dicas deste género. “Toma disto. Soulive, já ouviste falar? Uma banda de música instrumental”. Aquilo que os Led Zeppelin são para a maior parte dos guitarristas nas suas adolescências, é o que representam os Soulive para mim.

Em traço grosso, como é que foi o teu percurso académico musical?

Muito rápido: estudei música clássica até aos 13, no Conservatório de Música da Maia. Saio de lá muito frustrado com a música clássica e com a guitarra. Achava que não era nada para mim e odiava aquilo. Só queria andar de skate e jogar basquete [risos]. Na mesma altura já estou, também, a ouvir música muito seriamente. Já tenho discos meus, um discman e ouço muitos discos por dia. Lembro-me de estar a ouvir e pensar, “eu posso tocar isto com a guitarra? Eu acho que sim”. Esse foi o clique. Chegar a casa, ouvir o disco, pegar na guitarra clássica e ficar a tocar uns grooves de Soulive. Malhas pequeninas. Mas adorava. Passava-me. Isso foi um período entre os 13 e os 14 anos, em que estive sozinho, só na minha, a tocar por cima de discos. E feliz. A adorar. Eu curtia muito. Estava a ter pelo meu instrumento o amor que já tinha pela música. Sem academismos. Sem pensar em nada. Só tocar. Tenho a sorte de ter um pai muito fixe e lembro-me de, aos 14 anos, lhe ter falado numas jam sessions que aconteciam no antigo Uptown, no Porto. Um bar incrível e que teve uma altura muito importante. O meu pai: “eu levo-te lá!” Ele leva-me a uma jam session num bar onde nem era sequer legal eu entrar sozinho [risos]. É nessa jam session que eu toco pela primeira vez num palco, com uma guitarra eléctrica que era do meu irmão.

Como é que isso funcionava? Também tinhas de levar o teu próprio amplificador?

Eles tinham um palco de rock montado. Estava lá o amplificador e era só ligar. Falavas com o gajo que organizava, o Nuno Costa, e ele dizia-te, “entras a seguir”. Cheguei lá, “estou a começar. Achas que dá para tocar?” E ele, “claro, claro”. Era chavalo mas já tinha dedos. Sabia umas malhas de blues e mandei-me com toda a confiança. A reacção do público foi enorme. A reacção do Nuno Costa também. O feedback do mundo foi altamente. De repente, as coisas que eu gostava de fazer geravam boa reacção.

Ainda te lembras da t-shirt que levavas vestida quando mostraste esse teu “pedigree” rock?

Não era pedigree rock nenhum. Eu parecia um breakdancer. Eu vestia-me como um b-boy. Nessa altura, dançava breakdance, jogava basquete. Era do streetball. Era só cultura hip hop na minha cabeça. era tudo o que me interessava. Mas tinha uma guitarra eléctrica [risos].

Havia a cena do AND1

AND1 era a minha vida aos 14 anos! Tocar guitarra? Eu dava uns toques. Driblar? Passava horas por dia a driblar, para saber aqueles moves todos [risos]. E tinha a roupa… Era essa a vibe. Mas é nessa jam session que eu conheço o Peixe, dos Ornatos Violeta. O Peixe foi o único gajo que veio ter comigo. “Pá, tu até tens umas malhas fixes. Sabes que eu dou aulas na Escola de Jazz do Porto? Também dou aulas em casa. Se quiseres aulas…” Ele ofereceu-me aulas! Eu ouvi-o a tocar e passei-me. Isto porque eu não o conhecia. Eu nem conhecia Ornatos Violeta. Só queria saber de Soulive, D’Angelo, Erykah Badu e Wu-Tang Clan [risos]. Eu estava completamente desencaixado do perfil de guitarrista. Mas adorava guitarra e sabia tocar. Ter uma aula privada com o Peixe muda tudo. Ele explica-me, com dois ou três conceitos mínimos, e eu consigo, pela primeira vez, ver a teoria musical como algo com potencial criativo. “De facto, sabendo isto eu já consigo criar”. Ele fala-me de improvisação, de composição, de arte… De repente, “ESMAE? Curso superior de Jazz?” “Claro!” A minha vida ficou definida nesse momento. Vou tirar o curso na ESMAE, estou lá 4 ou 5 anos, depois fico uns 2 anos só a tocar e a fazer os meus discos. Depois, fui para Copenhaga tirar um mestrado, antes da pandemia.

Como é que foste parar a Copenhaga? Fechaste os olhos, apontaste para um mapa e calhou Copenhaga? [risos]

Foi meio assim [risos]. Tive colegas galegos, na ESMAE, que me disseram que a escola era inacreditável. Que era uma escola mesmo fora de série. Fui lá fazer um exame de admissão e o feedback que recebi deles fez-me perceber que aquilo era uma escola de arte que queria que eu encontrasse a minha voz e que não me ia meter dentro de tradições, de caixas ou formatos. Uma escola que quer que eu crie a minha cena é uma escola para mim. Houve muita desilusão com essa escola, depois, que por agora não interessa [risos]. Por isso, foi assim que eu escolhi. Não foi pela cidade mas pelo potencial de investigação artística da escola.



O disco que estás prestes a editar não é o teu primeiro. Como é que esse lado da carreira arrancou? 

A cena do Porto é uma cena pequena. Hoje, ainda mais. Quando eu comecei o curso, a Porta-Jazz ainda não existia — surgiu, se não me engano, em 2010/2011. Eu comecei o curso em 2008 e, por isso, nos dois primeiros anos, não tive grande ligação com as pessoas que faziam música há mais tempo que eu. Tudo o que eu tinha na vida, a a que me agarrei com tudo o que tinha, eram as jam sessions da ESMAE. As jam sessions da ESMAE, todas as terças-feiras, eram o ponto de encontro do jazz no Porto. Era onde os melhores improvisadores tocavam.

Onde é que isso funcionava?

Na cantina da ESMAE. Todas as terças-feiras estava lá batidíssimo. Aliás, um ano ou dois antes de ter entrado para a ESMAE, já lá ia tocar. Era onde as primeiras experiências transcendentes, do perder o “eu”, aconteciam. O que acabou por acontecer foi que, por não ter esse contacto com os músicos mais velhos e estar apenas em contacto com colegas, eu não tive trabalho praticamente nenhum até ter decidido ser líder.

Abordemos essas jam sessions de uma perspectiva mais filosófica: eu imagino que entrares com a tua guitarra numa jam session em que ninguém te conhece não será muito diferente de entrar num court, onde também ninguém te conhece, para mostrares os teus skills.

Ya, ya.

O que é que impele um miúdo a, de repente, “eu vou step in to the arena e vou mostrar o que é que valho”? Fala-me desse impulso, do ir para uma situação que se desconhece, sem qualquer mapa. E há ou não há pontos de contacto entre o que fazias com a guitarra, na jam session, e com a bola, no court?

Absolutamente. E acho que essa é uma coisa que só poderia ter acontecido naquela altura da minha vida. Hoje em dia, sou uma pessoa que não tem nada esse tipo de perfil e personalidade [risos]. Na altura, em plena adolescência…

Eras destemido?

Sim. Havia uma tremenda necessidade de afirmação e uma tremenda necessidade de descoberta, também. Há muito de negativo e positivo em absoluto paralelo: havia muito ego, uma bravura desmedida, mas também havia uma necessidade de conhecer, de querer experienciar e de ficar completamente viciado após a primeira experiência. A primeira que me meteu muito medo, foi uma trip tal… A cena de fazer música sem falar, sem sequer conhecer as pessoas com quem estás a tocar. A música aconteceu, eu gostei e as pessoas gostaram. Mas foi uma experiência que foi absolutamente atractiva. Hoje em dia, a parte que ainda me agrada imenso e com a qual eu ainda me identifico — porque acho que ninguém quer ser a mesma pessoa que era aos 15 anos [risos] — é o jogo, o teatro, de pessoas a conhecerem-se a tocar. A riqueza que é conhecer a personalidade de outra pessoa a jogar ou a tocar… São ambas a mesma coisa e ambas coisas imensuráveis.

Para alguém que anda há mais de 30 anos a entrevistar músicos de rock, esse discurso é diferente. Antes eram os colegas do bairro, que se conheciam do café, que decidiam, “vamos formar uma banda”. Há sempre uma história anterior. Tu estás a descrever-me um paradigma diferente, que é: “não há história nenhuma. Nós encontramo-nos ali, vamos fazer música e conhecemo-nos depois.”

Ya. Acho que tem muito a ver com a minha geração. Aos 15 anos, eu já tinha YouTube. Ao já ter YouTube…

Tinhas a história da música ao teu alcance.

Era uma riqueza cultural diferente da minha, com a qual eu conseguia criar uma intimidade muito única. Uma proximidade muito específica. Era o observar em detalhe sem fazer parte. Eu, que gostava de basquete e de skate, de repente… Tenho vídeos de basquete, tenho vídeos de skate, de música, dos rappers e cantores que eu curtia, dos guitarristas que eu curtia… Eu criei imagens das coisas que gostava e que não tinham nada a ver com o sítio onde estava. Foi um querer outra coisa, que não aquilo que eu tenho. Não foi essa cena das bandas de rock. Foi a cena de, “eu tenho de me preparar, porque um dia vou chegar àquele campo, onde está o pessoal que joga para caraças, e eu quero jogar com eles”. Foi esse mindset.

Quem lê entrevistas tuas, há-de já ter reparado nas variadíssimas menções ao hip hop que tu fazes. Uma das coisas que eu senti no teu discurso sobre o hip hop é que não o encaras como uma coisa menor. Tens uma relação séria com essa cultura. Como é que um miúdo branco da Maia desenvolve essa relação? O que é que essa cultura tinha para te puxar dessa maneira?

Nos dias que correm, com uma maior consciência política e social, eu pergunto-me imenso acerca disso. Penso muito sobre isso e não sei a certeza das respostas que tenho para dar acerca disso. Consigo, no entanto, dizer-te, muito honestamente, o que foi acontecendo. Eu consigo relatar-te o que aconteceu. Os porquês é que são mais difíceis. “Porque é que uma pessoa ama que o ama?” é uma pergunta extremamente difícil de responder. Eu tenho alguma família a viver nos Estados Unidos da América, com a qual tinha contacto todos os Verões. Por isso, o inglês tornou-se fácil para mim, desde criança. Da cultura americana com que nós fomos bombardeados em Portugal — todos levámos com a MTV, por exemplo — as expressões afro-americanas foram sempre as que mais me atraíam. Comecei a adorar hip hop muito cedo.

Lembras-te do primeiro som que te fez pensar, “o que é que é esta merda?!”

Wu-Tang Clan bateu-me muito, mesmo. Mais ou menos ao mesmo tempo, descobri também aquilo a que se chama neo-soul — e eu não gosto nada desse termo [risos]. Erykah Badu, Jill Scott, D’Angelo, por aí em diante. Descobri essas músicas mais ou menos ao mesmo tempo.

Tinhas 2 anos quando saiu o Enter the 36th Chamber.

Pois. É isso. Mas como é que eu chego lá? Através da AND1 Mixtape [risos]. O basquete atraiu-me pela expressão hip hop que existe nesse desporto. A brincar, a brincar, streetball é um movimento artístico e não um desporto. É mais dança do que desporto. Aquilo é lindo. É magnífico. Eu não queria saber da competição para nada [risos]. É dança, expressão, criatividade… É flow state. É estar aqui, a criar. Eu estou a ver AND1 Mixtape e estou a ser bombardeado com o melhor hip hop da East Coast. Música atrás de música, atrás de música… No skate, o meu skater favorito era o Kareem Campbell, que descobri através do Tony Hawk [risos].

É incrível. Essas tuas primeiras paixões musicais sérias estão associadas ao movimento. Ou é alguém em cima de um pedaço de madeira com rodas ou é alguém num court a saltar. É muito curioso.

Pois é. E é engraçado eu ter chegado a um sítio, na minha música, em que o foco principal é o groove progressivo. São formas novas, experimentais, de executar o groove e tem tem tudo a ver com movimento. Toda a minha teoria está à volta disso. O movimento tem, sem dúvida, um valor nuclear.

O teu primeiro disco sai pela Porta-Jazz, não é?

Exacto. Chama-se BounceLab. Saiu em 2014. Tinha 24 anos. Foi música que eu preparei com os meus 22/23, a acabar o curso da ESMAE. O disco foi gravado em 2014.

Foi o teu trabalho final de curso? [risos]

Basicamente. Todo o meu pensamento musical tinha sido violentamente abalado com a saída do Black Radio, do Robert Glasper. “Olhem esta forma de misturar hip hop com jazz!” Partiu-me todo [risos].

Ainda bem que falas nisso. Nos últimos anos, em entrevistas com o Ambrose Akinmusire ou com o Kassa Overall, sinto que há uma noção, que também já vi a ser ecoada por outros músicos incríveis, e que é: não há diferença entre jazz e hip hop. “Vocês é que inventam estas caixas, do jazz e do hip hop. Para nós, é igual”. E há até uma entrevista muito antiga, do Rakim, em que ele diz algo como, “eu estou a tentar fazer com palavras o que o Coltrane fez com notas musicais”. Para nós, na Europa, hip hop e jazz são coisas completamente separadas. Mas não são, pois não?

Não são e é desinformação estar a dizer isso. Quem disser que são coisas diferentes, não sabe o que está a dizer [risos]. É um continuum. E é um continuum muito simples. Há um músico chamado Nicholas Payton, que há uns anos selou o termo black american music. É um termo que eu, enquanto português branco, gosto de usar no hashtag, ao lado do jazz, que é a cultura onde eu estou. Não gosto de o usar sozinho porque não sou negro, nem americano. Mas essa é a cultura à qual eu devo. Eu sou um discípulo. Os meus mentores, ou gurus, são ou pessoas dessa cultura ou pessoas que conhecem profundamente essa cultura. Eu quero ser uma pessoa que conhece profundamente essa cultura, porque a arte que mais me toca, espiritualmente, é essa.

Também já me disseste que dançaste. Qual era o teu maior break move?

Na altura em que eu dançava, não tinha esse tipo de consciência, para te estar a dizer que movimento fazia. Consigo dizer-te os discos que me bateram mais. Eu era mais dos 70s, toprock, popping e locking. A nível de movimentos, estava próximo da cena do AND1. Tinham uma linguagem em comum.



Esse álbum pela Porta-Jazz é o primeiro e este aqui é o segundo. Porquê estes 8 anos para fazer outro disco?

Pois é… A vida é complicada [risos]. Logo a seguir a BounceLab, tive um projecto chamado The Mantra of the Phat Lotus. Esse nome é completamente absurdo. Não quer dizer nada. É só uma mistura entre o nome de três temas diferentes, tal como o meu disco de agora se chama Enter the sQUIGG. Tem uma história e a sua razão de ser.

Diz-me que o “enter”, de Enter the sQUIGG, é em homenagem aos Wu-Tang.

Enter the sQUIGG e Enter the 36th Chamber. Obviamente que quem sabe, sabe. E o Rui Miguel Abreu sabe! [risos] Mas “the sQUIGG” já não quer dizer nada. Vem da palavra “squiggle”, que quer dizer “rabisco”. Vem de uma conversa existencialista com um amigo, do quão absurdo é a música ser só ar a vibrar. É ar que está a fazer assim, rabisquinhos no ar, e chega aos nossos ouvidos e, de repente, estamos a chorar ou… É algo de absurdo. Mas a palavra “sQUIGG” não quer dizer nada. E eu adoro isso. Porque a minha música não são palavras, nem são ideias. São sons.

Há um par de temas que eu sinto que estão muito ausentes de boa parte do jazz nacional contemporâneo, mas que vejo muito presentes neste teu discurso: ritmo e groove.

Preach! [risos]

Parece que temos um jazz que tem medo da repetição, não te parece?

Muito, muito medo da repetição e que não entende o potencial para a transcendência que a repetição traz. Esta é a minha posição.

O gurus que estão lá, no topo do Tibete, a meditar, entendem que o mantra que os faz levitar tem a ver com a repetição.

A repetição tem um potencial incrível. E a repetição pode jogar contra ou a favor da repetição. É um jogo entre a repetição e a variação que cria a magia, a meu ver. Uma coisa que só varia e que não usa repetição, é uma seca descomunal. Tal como uma coisa que só repete e não varia, nunca, é uma seca descomunal. É esse jogo de nuances… É uma brincadeira. Para mim, isto é brincar com “b” maiúsculo. Um brincar que leva à transcendência. Espiritualmente falando. O aspecto de brincar, de jogo, é muito importante. Childlike energy. Qual é o jogo? O jogo é estarmos a fazer uma improvisação livre, estamos a usar sons e a tentar ao máximo evitar a repetição, com os nossos moods, uns com uns outros? Esse é um jogo possível. Se o jogo for haver um back beat e “bora ver o que conseguimos fazer com isto?” Esse é outro jogo possível. E se o jogo for “vamos tentar fazer que isto soe a hip hop mas não há back beat em lado nenhum?” Outro jogo. Há muitos jogos possíveis. Acima de tudo, eu quero ser honesto e fiel às minhas referências. Àquilo que, na música, me faz mesmo rir, gritar de alegria e chorar de emoção. Quero ser honesto com a minha pesquisa e com a minha procura.

Sabias que: as primeiras vezes que falei sobre J Dilla com gente do hip hop português, eles diziam-me, “mas os beats não estão certos. Eu começo a abanar a cabeça e, depois, perco-me”. Quando ouço o teu disco, sinto que há ali tanto da liberdade inventada não sei por quem — o Coltrane, talvez — como da liberdade em relação ao groove matemático, reclamada pelo Dilla.

É isso. Eu quero que essas duas coisas estejam a dançar, juntas. É isso que eu tento fazer. Uma das razões por eu ter ido para Copenhaga, foi o facto de ter lá estudado um músico chamado Petter Eldh. Ele é uma referência. Acho que o pessoal está sleeping on him. O pessoal ainda não percebeu. A quantidade de músicos a quem eu falo sobre ele e me dizem, “quem?” Ou só conhecem uma parte muito pequenina do trabalho dele, não conhecem o trabalho dele como produtor e compositor, que é onde a magia está a ser feita, a meu ver. Eu tive aulas com o Petter indirectamente através da escola. A escola é muito progressiva e tens aulas com quem quiseres, basicamente. Eu fui a Berlim, ter aulas no estúdio dele. Ele abriu-me muito a cabeça para conceitos rítmicos bastante avançados e tecnicamente complexos. Tem como funcionalidade, na música, aproximá-la a esse tipo de texturas que tu vês na música do Dilla, do Flying Lotus, do Dibia$e… Toda essa cena de L.A., embora o Dilla seja de Detroit, mas pronto.

Há qualquer coisa na água de lá.

Há qualquer cena, sim [risos]. Tem a ver com a forma de swingar. Há muitas formas de swingar e essa malta descobriu umas quantas muito fixes. E com máquinas! Uns com MPC, outros com software.

Tu não imaginas o quão apaixonado eu sou por esse termo, “swing”. Vamos falar sobre isto. Eu entendo o swing como um conceito cultural. Ou seja: “picante” em Portugal não significa o mesmo que “picante” no México, em Angola ou na Tailândia. Tudo é picante. As nuances é que dão ou não cabo do estômago.

Exacto [risos].

Eu vejo o swing de igual maneira. Lembro-me de a certa altura, quando comecei a ler sobre música, haver um discurso transversal na crítica de jazz portuguesa, em que o swing era um dogma. Mas o swing, na América, tem a ver com a experiência negra americana, tem a ver com Nova Orleães, com aquela religião e aquela cultura. O swing em Portugal, no Brasil ou na China deveria ser outra coisa completamente diferente. O swing não é um diamante que está num museu, num sítio específico. É uma coisa muito vasta, não é?

É absolutamente gigantesco.

Somos nós, em Portugal, que não sabemos?

O pessoal acha que swing é um estilo musical americano dos anos 30/40. Um pequeno à parte, que penso ser super relevante: a partir da próxima segunda-feira vou ter um workshop de ritmo, no Porto, e em princípio, vou chamar-lhe “Aulas de Bateria Para Não Bateristas e Não Só.” [risos] Vou reunir uma turma de 20 pessoas que vai falar semanalmente sobre swing e ritmo comigo, incluindo muitos bateristas.



Qual é o teu break favorito?

Aqueles que foram dar ao drum & bass. Gosto muito desse padrão.

O “Amen Break“?

Esse. Se tivesse de escolher, acho que sim.

Mas vamos ao teu disco: fala-me de coisas técnicas e de como foi gravado.

Foi diferente daquilo que é costume, no jazz português. Estivemos os 2 típicos dias no estúdio, com uma banda de jazz. Mas não foi aquela sessão clássica. Não foi um disco que foi feito ao vivo, exclusivamente. Nesses dois dias fizemos 20 horas de estúdio.

Qual foi o estúdio?

Um estúdio chamado Sauna Studios, em Copenhaga. Eu vivia com o meu trio. O contrabaixista e o baterista da banda eram meus housemates. Vivíamos em colectivo, em Copenhaga. O contrabaixista é um italiano chamado Luca Curcio. O baterista é norueguês e chama-se Simon Albertsen. Temos todos um amor profundo por estas coisas todas que eu estou a falar contigo. Foi um cruzamento de amores. Fomos para estúdio com o José Soares, no saxofone, e o José Diogo Martins, no sintetizador. Fizemos esses 2 dias de estúdio mas, depois, eu e o Luca estivemos 5 meses em co-produção. Estivemos, literalmente, a compor com o material gravado.

Teo Macero. Bitches Brew.

Ora aí está. Corta e cola. Criar estrutura a partir do material gravado. Ou seja, nós fomos para estúdio com temas, composições minhas, mas acrescentámos bastante. Fizemos muitas dobragens e muita edição criativa. Foi um acto de criação e não de correcção.

“Fomos para estúdio com composições minhas”. O que é que isso significa? Levas a coisa escrita na pauta? Assobias?

Eu compus bastante e são músicas com ideias muito concretas. Diria que o papel representa 10%. É mesmo uma parcela muito pequenina.

O resto é iPhone?

Sim [risos]. Mandei voice memos. Em estúdio estava toda a gente a tocar de cor. Havia coisas muito específicas de guitarra, harmonias. Ritmos muito complexos e muito específicos. Trabalhámos muitos meses para os atingir.

Disseste uma palavra que eu utilizo muito nas minhas críticas da coluna Notas Azuis. Explica, por favor, aos leitores do Rimas e Batidas: o que é harmonia?

Harmonia é o estudo da coexistência de notas. É só isso.

Harmonia é o universo, não é? 

Eu diria que é o estudo curioso do sabor de todas as diferentes formas de harmonizar.

Tu prestas muita atenção a isso na tua música.

Profundamente. Como instrumentista e improvisador de jazz, essa tradição vem dos músicos que eu admiro. John Coltrane, Alice Coltrane, McCoy Tyner, Charlie Parker, Wes Montgomery…

Ahmad Jamal?

Ahmad Jamal! Harmonia! Há uma quantidade de instrumentistas que têm uma ligação profunda e íntima com a harmonia e com o potencial que o estudo desta traz à música. Uma harmonia é capaz de recontextualizar uma melodia. Uma melodia super banal com a harmonia certa por baixo faz-te chorar. Ou faz-te ficar muito energizado, zangado ou com medo. A harmonia está por trás. É o background emocional das coisas, para mim. A melodia é muito importante mas a harmonia acaba por ter muito, muito poder na nossa percepção da música. Eu diria.

O disco é gravado em Copenhaga e retrabalhado a posteriori num processo digital?

Sim.



Eu escrevo muitas vezes de impulso. De rajada. Depois, tenho esse trabalho de revisão e edição do que escrevi. É um trabalho complexo: olhar para aquilo que foi a nossa produção repentina e perceber, “eu podia mudar isto.”

Completamente. Há uma expressão que é, “kill your darlings” [risos]. Há temas do quais eu gosto muito mas que tiveram de ficar de fora do disco. Em primeiro lugar, eu quis que o disco coubesse no vinil. Era muito importante que este disco pudesse ser consumido como um lado A e lado B. “Toma 20 minutos e picos de música. Agora levanta-te, vai virar o disco e consome mais 20 minutos de música. E acabou”. Queria que este disco fosse assim, até pela ligação e homenagem à cultura do hip hop e à cultura do vinil, que tanto informam estas decisões e esta estética. Como queria muito isso, tive de cortar imensa coisa. E pronto. Foi o processo de afinar baterias, como se faz no hip hop. No jazz, pelo menos em Portugal, não é tão costume, por ser uma música mais acústica. A minha música é totalmente processada. Não sei se toda a gente vai gostar do som do disco, mas uma coisa que não me podem dizer é que eu não quis saber. É, claramente e inquestionavelmente, um statement. Um statement de som, de procura. Este tipo de som de bateria ou de baixo. Percebes o que eu te estou a dizer?

Percebo perfeitamente.

É uma procura que é mais comum na música electrónica e no hip hop.

O teu disco — e isto não é nem um elogio ao teu trabalho, nem uma crítica à Clean Feed — nasce de um “casamento” estranho, não é?

É. E foi de propósito. Quando eu faço a proposta ao Pedro Costa, “vou-te mandar um disco e gostava de o editar pela Clean Feed. Diz-me o que é que tu achas.” [risos]

E porquê?

Porque a separação que eu vejo, expressa na cultura, não acho que seja real. Então, quero contribuir para o desfazer dessas fronteiras.

Então, a pergunta seguinte é: temos ou não temos um conservadorismo estranho na cena jazz portuguesa?

Diria — com esperança e leveza — que sim. Acho que é uma questão de anos. Com a minha geração e com a que veio a seguir a mim… Não há hipótese!

Vai mudar?

Inquestionavelmente. Não há como. Porque as coisas começam a tornar-se inquestionáveis. Quando eu, em 2013, dizia que era apaixonado por improvisação, pelo legado que a tradição jazzística me trouxe, por música experimental e por hip hop… Quando eu digo que estas quatro coisas podem coexistir e estou a receber “grilos”… [risos] Recebo pessoas que não concordam com esta visão e que não querem tocar comigo ou saber da minha música. Passados estes anos, está este disco a sair. E nos próximos 10 anos só vão sair discos destes. Os miúdos de 15 anos, que vêem o meu disco a sair, esta é a realidade deles.

Não existiria Mané Fernandes em 2022 sem que referências nacionais e internacionais? Podes dar-me três de cada.

Petter Eldh, como compositor, produtor, instrumentista e como improvisador; como pensador de ritmo, acima de tudo. John Coltrane, como modelo de ser humano [risos]. É alguém que, como músico, quebrou fronteiras em todos os parâmetros da música. Alguém que esteve sempre a cavar e a procurar. Para terminar os internacionais, vou ter de dizer um MC: Busta Rhymes!

Woo Hah!

“Got you all in check”. Tem de ser. É preciso estar nesta lista alguém que atingiu aquele nível de profundidade discursiva em ritmo. Eu preciso disso. Busta Rhymes, para mim, é undefeated. Os primeiros dois discos dele têm tratados rítmicos que eu ainda não vi… Quem me dera, algum dia, tocar com um baterista que saiba fazer aquilo.

Lindo! E nacionais?

Susana Santos Silva, como improvisadora impiedosa e sem medo. Ela é sempre a abrir. Pesquisas super corajosas e super específicas, num mundo que quer dizer que não a toda a gente que tem coragem para fazer o que quer fazer. As procuras artísticas dela são espectaculares. As pessoas com quem ela trabalha também. O que ela atingiu é inquestionável. O André Fernandes, como pessoa com quem eu procurei aulas, quando tinha os meus 17 anos. Ele sempre foi muito generoso.

E é um dos primeiros homens do jazz, naquele tempo, a abrir os seus ouvidos ao hip hop.

Ao hip hop, à electrónica… Ele até teve um DJ português num disco dele, o Imaginário. Um disco de jazz com scratch, estás a ver? Ele teve os Spill, que tocavam drum & bass. Ele é uma pessoa muito aberta, muito criativa, mas também muito rock & roll e punk, a nível de espírito. Eu admiro-o imenso. “Fuck it. I’ll do it my way“. Podia ficar aqui a falar do André e da gratidão que tenho por ele durante horas. Sem dúvida. Outro músico nacional?

Queres escolher alguém do hip hop? Desculpa, não devia de ter dito isto [risos].

Mas foi bem jogado. Por uma questão de equilíbrio, tenho de dizer os Mind da Gap. A minha entrada no hip hop português foi através deles. Antes de conhecer o Halloween e toda a gente de Lisboa. Quando ouvia Mind da Gap ainda usava calças largas e tentava fazer kickflips [risos].



Quando e como é que vamos ver o teu Enter the sQUIGG ao vivo?

Estamos nessa procura. Este ano, por razões políticas e sociais, está a ser muito complicado para marcar coisas.

E o teu ensemble é economicamente complicado, não é?

É economicamente complicado porque envolve trazer para cá duas pessoas, que vêm de fora do país. Uma delas, ainda por cima, vive num país… As agendas portuguesas e norueguesas são um bocado incompatíveis [risos]. É difícil. Há essa dificuldade. Felizmente, eu tenho o privilégio de não estar numa situação só de negócio. Esta malta não está disponível para fazer isto só com estas condições e este cachê. Isto é malta que adora toda esta música. Eles sentem que a música também é deles. Estão para o que for preciso, para fazer esta música acontecer. Já tenho algumas coisas para o Verão e, com sorte, mais virão.

O teu disco sai também em vinil. Imagina que, daqui a 10 anos, passas por um DJ que está a “riscar” com o teu disco. O que é que pensas? “I made it“?

Vamos embora! Façam os remixes! Qualquer pessoa interessada em fazer um remix para passar num DJ set, é só falarem comigo. Tenho todo o interesse de dar esse contributo. Eu tenho de repetir isto, outra vez: a diferença entre jazz e hip hop, jazz e r&b ou jazz e soul é ilusória. Foi criada pela indústria e não pelos músicos ou pelos consumidores.

Achas que vamos chegar a um ponto em que vamos poder dizer a mesma coisa em relação à diferença entre jazz e funaná ou jazz e, sei lá, fandango?

Claro que sim. São palavras. E eu até tenho muitos problemas com a palavra “jazz”… Não sou fã, de modo algum. Eu prefiro o termo black american music ou algo mais amplo. Se encararmos o jazz menos como uma tradição estética e mais como uma tradição de metodologias… O Bill Evans dizia isto, “o jazz é uma forma de fazer música. Não é uma música”. Por isso, porque não funaná e porque não kuduro? Vamos embora!

Que bacalhau usas?

Bacalhau?!

Bacalhau, guitarra, ferramenta [risos].

Eu tenho uma relação curiosa com a minha ferramenta. É uma guitarra que eu herdei do meu irmão António.

Que guitarra é? Tem alguma história?

O meu irmão e o meu pai tocam guitarra desde sempre. Eu cresci com guitarras nos sofás. Eu chegava à sala e tinha uma guitarra. Sentava-me no sofá, em frente à televisão, e havia sempre uma guitarra ao lado. Eu pegava na guitarra e começava a tocar. Era a coisa mais informal e mais cheia de amor do mundo, para mim, o pegar na guitarra. Tive umas duas ou três. Houve um dia em que o meu irmão ia estudar jazz com o Carlos Mendes, uma grande figura do jazz em Portugal, guitarrista cabo-verdiano, mas que pouca gente conhece.

No Porto?

No Porto. Ele é — agora não me lembro do cargo específico — a maior autor autoridade do jazz no Conservatório de Música da Jobra. Um grande professor e alguém que liga o jazz à música cabo-verdiana. Eu gostava que ele se mostrasse mais. Mas o meu irmão, naquela altura, teve aulas com ele. Como temos família nos EUA, a minha prima trouxe-lhe uma guitarra dos states.

De que marca?

Gibson. Uma ES-135. É muito pouco comum no jazz, porque está entre a 175 e a 335, que são os dois grandes modelos Gibson para guitarra jazz. Tem um som muito peculiar. Essa guitarra chega-me a casa quando eu tenho 13 anos. Eu nunca tinha tocado numa guitarra eléctrica. Lentamente, está o meu irmão — que foi fazer outras procuras na vida dele e emigrou — estou eu a pegar mais e mais na eléctrica. Ele diz-me, “vou emigrar para Brighton. Fica tu com esta guitarra, que eu levo a tua clássica”. Eu tinha uma Ramírez. Lembro-me da primeira vez que toquei de pé com ela, de strap. “Hey! Isto é outra cena!” [risos] O poder… A sensação… É outra cena.

É a mesma guitarra que usas nas gravações?

Eu nunca tive outra guitarra. Eu sou um guitarrista que não tem guitarras. Eu compro muitos, muitos, pedais de guitarra. Muita tecnologia e efeitos malucos. Essa é a minha cena. Guitarra só tenho uma. E cresci à volta dela! Eu tinha um metro e meio quando comecei a tocar com ela.

E o teu amplificador, qual é?

Agora tenho um Henriksen. É um amplificador com um som muito clean. É muito jazz. Toda a minha sujidade vem dos pedais. Agora tenho um gajo, em Copenhaga, a construir-me uma guitarra. Vou tê-la em Novembro. A partir de Novembro tenho uma guitarra feita para mim. Isso sim, é um bacalhau [risos].


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