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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 01/09/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #106: Especial José Lencastre

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 01/09/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Ernesto Rodrigues, José Lencastre, Miguel Mira, Hernâni Faustino, João Lencastre] Affinity Suite / Creative Sources Recordings

Gravada ao vivo na SMUP em Outubro passado, esta “suite de afinidade” foi executada por Ernesto Rodrigues na viola de arco, José Lencastre no saxofone alto, Miguel Mira no violoncelo, Hernâni Faustino no contrabaixo e João Lencastre na bateria. E é a profusão de cordas que primeiro se sente, um intrincado entrelaçado de vibrações que compõem a reverberante teia tecida neste registo.

Num luminoso limbo algures entre as dinâmicas da música livre e improvisada e a abstracção de uma certa composição erudita e contemporânea, evolui esta suite tripartida que se estende por mais de 50 minutos de vigorosa interacção instrumental. A primeira peça denota uma certa urgência parecendo propulsionada pelo diálogo do violoncelo e da viola de arco, com o contrabaixo em registo pontilhado e a bateria, inicialmente muito discreta, a oferecer sombreados via escovas, antes de se fragmentar numa mais incandescente fase do tema. Sobre tudo isso, o saxofone vai largando curtos arremedos, frases soltas, como pingos de cor pollockianos em tela disposta no chão. A primeira – e mais longa – parte da suite vive de avanço e recuo em espiral de intensidade, um verdadeiro vórtice que nos atrai para o seu centro. 

São as cordas vibradas com arco que introduzem e dominam a segunda parte – a mais “breve” (ainda assim com quase 12 minutos) –, feita de contenção sobre a qual o saxofone desenrola figuras circulares. A última secção da suite arranca com pulsar de contrabaixo, um quase drone da viola e sopro lento que emana do silêncio e produz uma suave brisa a partir do saxofone. Um “nevoeiro” textural que nos envolve como um manto e se vai tornando mais denso, oferecendo a Lencastre a dianteira durante boa parte do tema que depois desagua no quase silêncio apenas entrecortado pelas abstractas figuras com que as cordas resolvem a suite. 

Esta música é sempre excitante porque imprevisível, porque rica texturalmente, porque executada por um conjunto de músicos que se entendem e se escutam mutuamente, procurando sempre um lugar discreto num quadro mais vasto. Bonito.



[Felipe Zenícola, José Lencastre, João Valinho] Magma / FMR Records

Felipe Zenícola no baixo, João Valinho na bateria e José Lencastre em saxofones alto e tenor. Power trio, sem dúvida, com o brasileiro Zenícola a assumir peso metálico no seu dedilhado insistente, Valinho a ser motor de alta cilindrada e Lencastre uma autêntica fornalha. Magma é título mais do que adequado, não apenas porque traz à memória a banda francesa de rock progressivo em que o baterista Christian Vander reuniu tantos improvisadores, mas também porque é de incandescência que aqui se trata.

Este trio já se conhece bem, já que gravou – juntamente com o guitarrista Jorge Nuno – o belíssimo Anthropic Neglect dado à estampa pela Clean Feed em 2020. E essa sintonia está bem patente neste registo feito em vésperas do Natal de 2019, no Namouche, em Lisboa, por Joaquim Monte. Jazz livremente improvisado, intenso, mas capaz de acomodar momentos de maior lirismo, característica bem patente nalguns dos solos do cada vez mais estratosférico José Lencastre, músico em pleno domínio de amplas capacidades técnicas e expressivas, capaz de surpreender em cada volta, com um tom fundo e ressoante, seguro e absolutamente musculado.

Os dois temas finais – “Margem” e “Marga II” – são particularmente intensos, embora providos de andamentos acentuadamente diferentes. Em ambos a soldadura dos três elementos – bateria, baixo e saxofone – é absolutamente perfeita e capaz de resistir às mais elevadas pressões e tensões, mas é na peça que fecha o alinhamento que o trio expele todo o seu poder revelando uma força capaz de mover – ou de criar – montanhas, com Lencastre a soar, ainda assim, introspectivo e quase poético (escutar a parte central do tema), revelando uma espécie de calma após trovejante tempestade. Valente.



[José Lencastre] Innver Voices / Burning Ambulance

José Lencastre a solo, em dialogantes saxes alto e tenor, com carimbo da norte-americana Burning Ambulance, selo de Phil Freeman (autor de Ugly Beauty). Uma maravilha absoluta, garanta-se desde já. Na verdade, o co-fundador da Phonogram Unit não toca apenas saxofones neste álbum, mas também o próprio estúdio em que gravou – o Toolate Studio do músico electrónico Ary que colabora aqui nas duas peças finais do disco que são igualmente as mais longas e complexas.

Usando imaginativamente as possibilidades que a gravação em multipistas permite, Lencastre gravou diferentes partes construindo polifonias intrincadas que por vezes remetem para o particular universo do World Saxophone Quartet de Julius Hemphill, Oliver Lake, David Murray e Hamiet Bluiett (sobretudo para as primeiras gravações lançadas na Black Saint entre finais dos anos 70 e inícios dos anos 80 do século passado), mas que podem igualmente fazer pensar nas minimais e repetitivas obras de Philip Glass – escute-se o início de “The Universe is Calling” ou de “Magic Light”, por exemplo.

Não se trata aqui, no entanto, apenas da construção de harmónicas ou atonais passagens. Usando de forma subtil diferentes efeitos – reverb, eco – mas também recorrendo à equalização para acentuar diferentes tonalidades nas várias pistas gravadas e até deixando a “fita” correr em sentido contrário, Lencastre consegue manter as suas peças compostas (ou instantaneamente compostas) sempre interessantes, enredando-nos nos seus solos e discursos com uma eloquência absoluta enquanto aponta em diferentes direcções musicais. Em “Coltrane Steps”, por exemplo, sente-se uma certa solenidade, com Lencastre a transformar o estúdio numa catedral reverberante que lhe permite dialogar com o seu próprio eco. Mas o que aí é solene, mais adiante poderá ser lúdico, lírico ou tumultuoso. A panóplia de emoções aqui disposta é vasta e contribui para a fluidez da experiência de escuta.

A tour de force deste trabalho é, sem dúvida, “Whale Talk”, peça de quase 16 minutos em que os saxofones de Lencastre se cruzam com os bleeps e bloops da abstracta electrónica de Ary que a espaços soa, de facto, como se tivesse sido captada com hidrofones submersos para registarem o “canto” de grandes cetáceos, criando uma hipnótica peça que bem poderia ilustrar um qualquer documentário oceanográfico do canal National Geographic. Interessante notar que quando a derradeira peça, “Moonlit Meadows” – em que a electrónica de Ary se faz, uma vez mais, notar -, chega ao fim, a sensação que permanece é a de que acabou de escutar uma intrépida viagem ao centro de um mundo muito particular, uma viagem dinâmica, que se desenrolou através de diferentes “territórios” de paisagens muito diversas, algo extraordinário tendo em conta que se trata de um registo solo de um saxofonista. O criativo uso do estúdio como instrumento adicional permite criar essa variedade, de tonalidades musicais e de texturas, de andamentos rítmicos e de abordagens ao instrumento. Juntando tudo o que Inner Voices nos oferece, conclui-se que José Lencastre é um músico de fundos atributos, técnicos e conceptuais, que aqui assina um incrível registo que certamente reencontraremos quando dentro de alguns meses fizermos as contas a 2022.

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