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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/05/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #95: Mazam / ZUL ZELUB

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 04/05/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Mazam] Pilgrimage / Clean Feed

Em Julho de 2020, no remate da recensão ao anterior registo de Mazam, Land, gravado para a Carimbo Porta-Jazz, manifestava um desejo: “Entre o nervo firme aprendido a escutar atentamente as lições do mestre Coltrane (‘Sereno’) ou a busca da liberdade que se pressente em ‘Caos e Ordem’, este disco deixa entrever, enfim, mais uma marca de identidade igualmente basculante, assumindo-se um lugar entre a história clássica e o presente mais modernista, entre o mainstream e os subterrâneos mais exploratórios, entre a acção e a reflexão. É uma ‘terra’ deveras interessante, esta a que os Mazam aqui habitam. Resta agora esperar que possam nessa ‘terra’ florescer mais projectos discográficos porque a promessa desta estreia é demasiado entusiasmante para que o quarteto se quede por aqui”.

Não terá sido, certamente, para satisfazer o desejo de quem assina estas linhas que João Mortágua (saxes alto e soprano), Carlos Azevedo (piano), Miguel Ângelo (contrabaixo) e Mário Costa (bateria) se voltaram a reunir (desta vez em Matosinhos, no estúdio CARA, em sessão registada por João Bessa em Setembro de 2020) para congeminarem o material que agora se apresenta neste Pilgrimage (desta feita ostentando carimbo Clean Feed), mas é impossível não começar por saudar que o tenham feito: é sempre entusiasmante acompanhar o percurso de uma banda nestes domínios, ir percebendo como a linguagem que adoptam vai evoluindo e como o seu som se vai firmando e ganhando identidade própria.

Há uma diferença formal nítida entre as peças de Land e do novo Pilgrimage: no álbum anterior apresentaram-se 11 temas, dois deles com mais de 7 minutos e apenas outros dois a quedarem-se abaixo da marca dos 3 minutos; por outro lado, no alinhamento do novo registo apresentam-se 15 peças, duas delas acima da marca dos 6 minutos, mas com 6 outras a não chegarem aos 2 minutos, com a mais breve a conter-se apenas em 38 escassos segundos. Pode parecer um simples pormenor, mas nestas coisas nunca é.

As notas de capa referenciam uma ideia do violinista e pensador Stephen Nachmanovitch (e a palavra “play”, usada na formulação original, pode ter diferentes interpretações): “Os músicos jogam/brincam com o som e o silêncio. Eros joga/brinca com os amantes. Os Deuses jogam/brincam com o universo. As crianças jogam/brincam com tudo a que consigam deitar as mãos”. Essa ideia de uma lúdica busca, de um jogo – de encaixe e desencaixe – guia o quarteto nesta caminhada ou peregrinação, se quisermos seguir o título à letra. Acontece que os peregrinos sabem que a caminhada importa tanto quanto a chegada ao destino e que é nesse caminho que se encontram todas as respostas. Os Mazam parecem aqui imbuídos do mesmo espírito: é no jogo, e não no seu resultado ou na sua conclusão, que as respostas se encontram. Umas com 38 segundos, outras com mais de 8 minutos.

É o som de Mortágua que começa por se impor: inquisitivo, pleno de nervo e força, aproveitando sempre ao máximo a matéria harmónica sabiamente atirada para o “tabuleiro” pelas mãos de Carlos Azevedo. Miguel Ângelo e Mário Costa, por sua vez, soam mais livres e abstractos, abdicando bastas vezes da condução do tempo rítmico em favor de uma mais exploratória marcação. Em “Stubble”, a tal breve peça de apenas 38 segundos, evoca-se a concentrada complexidade zorniana numa espiral estonteante com Ângelo e Azevedo a olharem o “jogo” fora das 4 linhas, ao passo que no momento seguinte, a peça que dá título ao álbum, “Pilgrimage”, Mortágua começa por se expressar em solo absoluto, com o seu tom a apresentar-se em traço carregado, fundo como um abismo, com os companheiros a juntarem-se depois em “stabs” uníssonos que depressa se desligam para cada um seguir por ali a fora como se fossem carros numa perseguição em filme policial, com a fuga do saxofonista a ser acompanhada de perto pelos restantes companheiros. O solo de Azevedo é depois angular, cinemático, todo ele tensão, com os ritmistas a definirem a velocidade e Ângelo em modo “not-walking-but-running-bass”. Toda uma história por aqui. 

E é esse, enfim, o tom do álbum: há quatro cabeças que pensam e pelo menos 8 mãos, dois pés (talvez deva escrever três, já que o uso do pedal de sustain por Carlos Azevedo parece ser parcimonioso, embora se faça sentir bem no arranque e no final de “Stubborn”…) e um par de pulmões que executam uma música que é realmente lúdica, com os jogos de encaixe e desencaixe a traduzirem-se em belíssimos resultados que nos deixam de ouvidos escancarados a todas as possibilidades enunciadas. Importante, também, ver e ouvir isto a acontecer num palco (o quarteto andou na estrada, em peregrinação, certamente, em Março último, mas espera-se que haja outras oportunidades para os apanhar).



[ZUL ZELUB (Jorge Lima Barreto, Jonas Runa)] ULTIMATON / Plancton Music

Editado originalmente em 2012, Ultimaton mereceu agora “reedição” (limitada a escassas 12 unidades), com o CD original a ser reenquadrado com nova capa de folha simples impressa e numerada (a mim coube-me o exemplar número 6). Esta é música criada por Jorge Lima Barreto (músico falecido em 2011) e João Marques Carrilho, aka Jonas Runa, em piano e computador, respectivamente. E é o próprio Jonas Runa, no seu site oficial, quem explica a “natureza” do projecto: “O CD Ultimaton, de Zul Zelub, é um dos exemplos mais relevantes da aplicação da energia musical irrealizada à criação musical, resultado de muitos meses de trabalho. O objectivo nunca foi a criação de entidades fixas, ou ‘composições’ potencialmente repetíveis. Ao invés, o processo consistiu numa miríade de descobertas: a descoberta do outro, a descoberta da escuta, a descoberta duma mediação intratextual capaz de articular um discurso duplo, incluindo piano e música informática…”

E isso significa uma música densa, feita de flashes-em-quarto-escuro, altamente conceptual e exploratória na verdadeira acepção da palavra, irrequieta, indeterminada, urgente e sináptica, com piano e ruídos resultantes do seu processamento, a enredarem-se em elipses electro-acústicas altamente fragmentadas e estranhamente fascinantes. Explica ainda Runa, ecoando o desafiante e provocador esoterismo de Lima Barreto, que “este CD tem raízes no misterioso Livro de Urântia, de onde resultam os nomes das várias faixas. Como se afirma no manifesto da energia musical irrealizada: ‘No misterioso Livro de Urântia, nome dado ao nosso Planeta e ao primeiro humano que se adivinhou a si mesmo, a Música, entendida como vida, evoluiu da vasta diversificação da energia-matéria ao reino do irrealizado’. Da Teosofia à parapsicologia, procurou-se uma ‘telepatia’ musical criativa e uma ‘telecinésia’ do material sonoro”. E o que é que isso significa? Não importa, na verdade, porque esta música não idiomática exige também um compromisso de quem a escuta: os seus “autores” subjugaram-se ao momento, ao pulsar da descoberta instantânea, acção que, sublinha a Flur nas suas sempre atentas notas de apresentação dos títulos que vai disponibilizando, “é sempre informada pela experiência e antecedentes”; e nós, os ouvintes, não somos parte passiva nesta equação, carregamos para dentro da fruição desta música a nossa própria história, a nossa “experiência e antecedentes”, dispensando qualquer pré-sugestão conceptual. Porque se esta música não se faz, como sublinhava Runas, de “’composições’ potencialmente repetíveis”, também não admite audições potencialmente idênticas e estáticas.

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