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Ilustração: Riça
Publicado a: 21/07/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #21: MAZAM / Nuno Campos / Miguel Moreira

Ilustração: Riça
Publicado a: 21/07/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Mazam] Land / Carimbo Porta-Jazz

Mazam é um quarteto que se apresenta sob a direcção do saxofonista João Mortágua. Ao seu lado encontram-se o o pianista Carlos Azevedo, o contrabaixista Miguel Ângelo e o baterista Mário Costa, equipa de luxo que representa bem o vigor da cena jazzística da Invicta. Em Land, trabalho dado à estampa pela Carimbo Porta-Jazz em Março último, o quarteto evolui entre peças firmadas por Mortágua e “improvisações espontâneas” e, de certa forma, esse parece ser o fio condutor do álbum: um ziguezague, como o que se apresenta na imagem da capa, entre as duas margens de um caminho (de um rio?) que é, afinal de contas, o do próprio jazz. A um zigue de material previamente composto, segue-se o inevitável zague que, estando o quarteto bem oleado com essas peças estruturadas, resulta da invenção livre que nasce da interacção de quatro pensadores que se conhecem muito bem.

Gravado de forma cristalina pelo próprio Miguel Ângelo de forma a tornar o estúdio “invisível” (não há, ou não são perceptíveis, edições ou efeitos que interfiram com a identidade tímbrica dos diferentes instrumentos), Land é, como de resto também legível no artwork, um território composto por diferentes topografias, com melodias sólidas que permitem a cada um dos protagonistas a exibição dos seus consideráveis atributos técnicos (o pianismo de Azevedo é carregado de alma, os pulmões de Mortágua parecem não ter fim, o pulso de Costa é elegante e firme ao mesmo tempo, ao passo que o balanço de Ângelo é de uma expressividade imensa) sem que – detalhe importante, no entanto – isso alguma vez se sobreponha ao som colectivo. E essa é outra característica definidora deste trabalho: se por um lado o grupo se desafia encarando de frente tanto material previamente escrito como agarrando o que o momento lhe deposita à frente quando se largam os mapas e se avança a direito por terreno desconhecido, por outro, percebe-se que se procura aqui uma “voz” colectiva, aquele som que é bem mais do que a soma das partes e que se consegue quando todas as peças se encaixam e não é possível alterar nem um dos elementos da equação sem que se comprometa o equilíbrio entretanto alcançado.

Entre o nervo firme aprendido a escutar atentamente as lições do mestre Coltrane (“Sereno”) ou a busca da liberdade que se pressente em “Caos e Ordem”, este disco deixa entrever, enfim, mais uma marca de identidade igualmente basculante, assumindo-se um lugar entre a história clássica e o presente mais modernista, entre o mainstream e os subterrâneos mais exploratórios, entre a acção e a reflexão. É uma “terra” deveras interessante, esta a que os Mazam aqui habitam. Resta agora esperar que possam nessa “terra” florescer mais projectos discográficos porque a promessa desta estreia é demasiado entusiasmante para que o quarteto se quede por aqui.



[Nuno Campos 4Tet] TaCatarinaTen / Carimbo Porta-Jazz

Os “recursos humanos”, em primeiro lugar: Nuno Campos, contrabaixista e compositor de serviço, aponta aqui o caminho que é trilhado em conjunto com o saxofonista tenor José Pedro Coelho, o pianista Miguel Meirinhos e o baterista Ricardo Coelho. Nas notas que acompanham o lançamento, o líder faz saber que TaCatarinaTen “é um disco repleto de emoções e experiências vividas numa década preenchida de mudanças”. E essa é a década que separa o trabalho presente dessoutro, My Debut For The Ones Close to Me, lançado pela catalã Fresh Sounds em 2009.

É inevitável comparar os dois registos, sobretudo porque são os únicos que Campos assinou como líder. E o que se percebe quando se escuta a abertura de “Godfather’s Gift”, do álbum de estreia, ou um tema como “Recomeçar”, do trabalho mais recente, ambos com o contrabaixo a assumir a dianteira em certas passagens, é que Nuno Campos evoluiu como músico: o seu toque será porventura mais subtil, mais elegante e, de certa maneira, mais livre, mais espontâneo e personalizado. Entende-se que trata a melodia como matéria preciosa, que gosta do rigor do tempo rítmico, da régua e do esquadro usados nas composições. Talvez seja mais difícil afirmar uma personalidade nessas condições de maior “descrição” a que o seu instrumento pode obrigar, sempre a percorrer a sombra imposta pelo brilho dos instrumentos solistas, mas esse “sombreado” que Nuno Campos proporciona aos companheiros é determinante para a riqueza de TaCatarinaTen.

Como o próprio explica em reveladora entrevista a António Branco para a jazz.pt, os companheiros eleitos para esta viagem são todos especiais: “José Pedro Coelho é um grande amigo e uma grande influência musical. Sem dúvida, um dos grandes do nosso país (…). Miguel Meirinhos é uma grande promessa no piano. Já o conheço há bastantes anos, pois chegou, inclusive, a ser meu aluno. É uma excelente pessoa pela qual nutro muita simpatia e amizade e está dotado de uma grande sensibilidade musical, lirismo e som de piano (…). Ricardo Coelho é um vibrafonista excelente e um bom músico. Na bateria demonstra musicalidade e muito bom tempo (algo de que eu não consigo abdicar). Temos elementos musicais comuns que não sei verbalizar e uma grande empatia”. Percebe-se, nas entrelinhas do discurso de Nuno Campos, nas notas escritas a propósito do novo álbum e, sobretudo, nas diferentes composições, que o lado emocional e sentimental da música é central em TaCatarinaTen. O tom é por isso mesmo poético e melancólico (“Catarina”, tema em que o saxofone baladeiro de José Pedro Coelho brilha de forma intensa, é um óptimo exemplo), ainda que, a espaços, se entenda que a paixão e a exaltação que podem existir também à flor da pele sejam igualmente recursos não descartados na hora da escrita (e aí encaixa, por exemplo, “A ridícula proibição de conviver com o Vasco” – e quem não gostaria de conhecer a história por trás de tal título?… –, peça em que Campos, uma vez mais, exibe uma incrível capacidade discursiva).

Uma década separou os dois discos de Nuno Campos, mas seria um enorme desperdício aguardar outro tanto para escutar nova investida do contrabaixista e compositor em nome próprio até porque, cumprido o assumido objectivo terapêutico deste álbum que olha para esse período, será bom ouvir também o que o futuro lhe reserva. Venha isso.



[Miguel Moreira] The Darkness of the Unknown / Carimbo Porta-Jazz

A escuridão do desconhecido a que o guitarrista Miguel Moreira aqui se refere decorrerá mais da falta de um “mapa” que, mesmo não sendo o território, oriente quem por esses lados se aventure do que uma metáfora de contornos para ou sobrenaturais. Este recente lançamento da Carimbo Porta-Jazz (data já deste mês de Julho pós-pandémico) resulta de uma residência no âmbito do Guimarães Jazz em 2019 que colocou o guitarrista na dianteira de um ensemble com o contributo do clarinetista baixo suíço Lucien Dubuis, do percussionista Rui Rodrigues (ligado ao Drumming GP) e do baterista Mário Costa em conjunto, como é recorrente neste convite que o festival todos os anos endereça a diferentes criadores, com um artista de outra área, no caso o bailarino Valter Fernandes, procurando-se assim, como sublinhado nas notas de capa, “um princípio de intersecção e influência mútua entre diferentes linguagens artísticas”.

O espectáculo, exemplarmente gravado por Sérgio Valmont, tem agora a sua componente musical editada. E em boa hora, ressalve-se: a música aqui apresentada faz jus ao mote proposto e busca o desconhecido, revelando-se altamente abstracta, vibrante, pulsante de ideias e de nervo expressivo. Em guitarras eléctricas de 6 e 12 cordas e fretless, Miguel Moreira explora uma panóplia de técnicas, extraindo de cada um dos seus instrumentos um som que oscila entre o abrasivo, com óbvias ligações ao rock mais exploratório e atonal, e detalhes mais contidos, feitos de filigrana voltaica, com a amplificação a funcionar como uma lupa que nos permite observar de perto o tecido harmónico do seu discurso (é escutar o painel de “quatro corpos” “The Monster” para se perceber tudo isso)..

E a este jogo respondem todos os músicos convidados para a aventura: as percussões de Rui Rodrigues são flora exuberante no ecossistema aural que floresceu na Blackbox do Centro Cultural Vila Flor, o clarinete de Lucien Dubuis é uma fera desconhecida, grave e funda, totalmente surpreendente, e a bateria de Mário Costa, descartando o tempo rítmico firme que tão bem segura noutros registos, é mais uma fonte de pequenos assombros de brilhos metálicos ou de ecos exóticos de madeira e pele. No maravilhoso “Drumming Water” tudo isso se sente, com a música a envolver-nos, como uma densa neblina que nada deixa ver, mas que, ao mesmo tempo, amplifica cada som, cada ruído, sublinhando dessa forma ainda mais o mistério em relação ao que nos rodeia.

Resumindo: The Darkness of The Unknown é, ao fim e ao cabo, luz nos ouvidos de quem aprecia o improviso colectivo como eficaz forma de agarrar o futuro, convertendo-o em matéria artística sonante e surpreendente. E Miguel Moreira consegue-o de forma brilhante.

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