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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/10/2023

Da clássica à electrónica.

Maya Shenfeld a caminho do Semibreve: a ressonância da natureza humana

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 26/10/2023

Em vésperas do Semibreve (em Braga, entre os dias 26 e 29 de Outubro), damos a conhecer o trabalho de Maya Shenfeld. Em entrevista ao Rimas e Batidas, a artista lança um olhar sobre os seus dois discos — um editado (In Free Fall) e outro a sê-lo em 2024, Under the Sun, que servirá de base para o concerto que irá apresentar —, a colaboração com Pedro Maia, as gravações de campo nas pedreiras de mármore do Alentejo, o entusiasmo com um coro juvenil, o seu percurso no conservatório ou a passagem por uma banda punk até chegar a produtora na área da música electrónica, alguns dos aspectos de um percurso multifacetado. Um denominador comum: as questões existenciais — a linearidade vs. a circularidade do tempo, a repetição vs. transformação.



[UMA CHEGADA ANTECIPADA]

“Em Braga farei uma residência no âmbito do Semibreve. É extraordinário, uma vez que eu e o Pedro Maia teremos acesso ao Theatro Circo antecipadamente, onde ensaiaremos no palco. O que é realmente invulgar. Estou também a preparar a workshop [Performing Electronic Music – Workshop with Maya Shenfeld], sábado de manhã. Aproveitei a minha estadia no Porto para visitar a exposição Allora & Calzadilla Entelechy e a peça sonora que David Lang realizou para a mesma. Uma instalação admirável que está relacionada com as alterações climáticas. Um excelente trabalho a nível sonoro.”

[ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS]

“São várias as razões que me levaram a trabalhar este tema. No final da pandemia deparei-me com uma interpretação contemporânea do livro Kohelet (Ecclesiastes). Uma leitura muito crítica. Há uma frase bastante conhecida — ‘and there is no new thing under the sun.’ Não concordo, mas foi o que me levou a questionar sobre o que se repete e o que se transforma. As alterações climáticas levaram-me à conclusão que o tempo é linear, não circular. O nosso planeta está a mudar. Abordar estes assuntos é urgente. Foi muito impactante, enquanto estávamos a captar imagens para o vídeo, no último Verão, saber que no Alentejo estavam perto de 50 graus. É muito tangível. Já não é algo que as pessoas pensam que está a acontecer distante delas. O clima está a mudar. Como isto nos afecta.

Nalguns sectores da sociedade já há um entendimento profundo que existe somente uma fracção reduzida de tempo para se poder actuar. No entanto, há actores económicos e políticos, que pretendem alterar esta narrativa. Há a tendência para colocar a responsabilidade das alterações climáticas nos sujeitos individuais. Levando a pensar que se não tiver filhos, se for 100% vegetariana e se me recusar a utilizar o avião como meio de transporte, que tal contribuirá para uma solução. Evidentemente que se nos recusarmos a voar isso ajudará. Mas, há questões muito mais prementes e com maior impacto: Porque é que as pessoas têm aviões privados? Qual o papel das grandes empresas? Estes sectores da sociedade não estão a pensar de uma forma humilde. Não se comportam como um pequeníssimo elemento nesta longa história universal. São estes organismos e as grandes companhias que têm o poder de actuar no sentido de alterar esta situação. Mais que os indivíduos isoladamente.”

[UNDER THE SUN: O CONCERTO E O DISCO]

“Pode ser a música um meio de reflexão para um tema específico? Sinceramente não tenho uma resposta. No meu caso, o disco Under the Sun partiu de gravações de campo nas pedreiras de mármore no Alentejo, onde se vê claramente o impacto na natureza da extracção deste material. A dimensão destas crateras é verdadeiramente assombrosa. Comecei com a experiência sonora. Como se estivesse na barriga da Terra. Entramos nas profundezas. Outra questão foi o Sol. A ideia de transformação e repetição que induzem a questões como a linearidade do tempo ou, se pelo contrário, ele se repete na sua circularidade. Também o facto de enquanto seres humanos sermos uma ínfima fracção no tempo. Que impacto temos com as nossas acções, tanto a nível político como no nosso bem-estar? Trabalho todos estes níveis, das gravações no exterior, a noções como linearidade/repetição. Estes conceitos estão subjacentes no disco e no concerto que apresentaremos no Semibreve [27 de Outubro – 21:30 – Theatro Circo], que segue uma forma em que a música ajuda a organizar as ideias. O concerto abre com um drone longo, que funciona como uma espécie de ouverture, que convida os espectadores a aproximarem-se, a entrarem. A parte seguinte é mais noisy, com base nas gravações de campo. Como que a reforçar este sentimento de transitoriedade. A partir daqui como que ascendemos, num movimento que designámos como ‘Geist’. Dá-se a introdução do coro. Estamos que a flutuar. Dá-se uma espécie de clímax. A seguir um momento em que se assemelha a uma aventura. Como que empurrando o espectador. A seguir um lado mais sombrio, um pouco mais repetitivo, que termina, novamente, com um lado mais efémero com a introdução do coro juvenil, com quem foi muito interessante trabalhar. Dos 8 aos 20 anos, e embora soe um pouco piroso dizê-lo, são as ‘vozes do futuro’. Termino com um movimento repetitivo, como que um ‘grande coro’, que me dá o sentimento de esperança.”

[GRAVAÇÕES DE CAMPO]

“Quando gravámos no Alentejo, já tinha alguns esboços do que pretendíamos fazer. Um quarto do que queríamos já estava produzido. Trabalho muito com sintetizadores e instrumentos de sopro. Os sintetizadores como uma espécie de retro futurismo ou futurismo tecnológico em contraponto com os sopros que me ligam ao Sol, ao meio ambiente. Este era o sentido sonoro. Quando eu e o Pedro passámos uma semana no Alentejo, estava extremamente quente e tivemos que descer até ao fundo das pedreiras, muitas delas activas. Foi muito físico — comer lá, gravar, filmar. E também de vertigens, como descer um arranha-céus. Essa semana foi extremamente intensa. Estes sentimentos estiveram muito presentes quando regressei a Berlim para terminar o trabalho de composição.”



[A COLABORAÇÃO COM O PEDRO MAIA]

“O Pedro já vive em Berlim há bastantes anos. Começámos a trabalhar juntos desde o primeiro disco [In Free Fall]. Ele produziu o vídeo para um dos temas [‘Body, Electric]. Há uma ligação entre o In Free Fall e este projecto, uma vez que em In Free Fall abordo questões relacionadas com a perda dos horizontes. Induz como que a uma sensação de vertigem. O seu sentido estético, as imagens lo-fi que trabalha, a abordagem analógica complementa a minha abordagem com os sintetizadores analógicos, o meu som, também ele lo-fi e mais texturado. A partir deste momento, os nossos encontros foram mais frequentes e comecei a falhar-lhe desta questão de que ‘não haverá nada de novo debaixo do sol’. O Pedro também pretendia filmar nesta área concreta do Alentejo há muito tempo.

Especificamente para este projecto, tudo começou com intensas e frequentes conversas. O facto de termos tido de preparar uma candidatura para obter apoio financeiro do governo alemão contribuiu para que estruturássemos o conceito. Numa segunda fase, começámos a trocar um conjunto de esboços, da minha parte — ‘Isto pode ser um movimento, uma ideia, pode ser o padrão sonoro que queremos trabalhar.’ O mesmo aconteceu com o Pedro — ‘Isto é o meu imaginário, estas são as ideias que tenho em mente.’ Houve sempre este permanente diálogo antes de virmos para Portugal. Depois de aqui termos estado foi um pouco mais independente, no sentido em que cada um foi para os seus estúdios e usou as experiências da semana no Alentejo para criar o objecto do concerto e, no meu caso, do disco. Durante o concerto do Semibreve o Pedro irá trabalhar as imagens ao vivo. É uma dinâmica que se irá estabelecer no momento entre as imagens e a música.”

[IN FREE FALL e UNDER THE SUN]

“Ambos são construídos um sob o outro. Não penso que se encontrem sonoramente tão afastados assim. Levei muitos anos para encontrar o que considero ser a minha linguagem musical. Poderá eventualmente mudar em breve, mas pelo menos para estes dois discos, digo. Em termos de abordagem e processo. No primeiro disco [In Free Fall] há o uso de sintetizadores analógicos, sopros e elementos electro acústicos, e no caso do Under the Sun há uma extensão do uso destes instrumentos e também uma maior convicação da minha parte no que diz respeito à tomada de certas decisões. Neste caso, também usei um sintetizador modular, que montei especificamente para o efeito. Há o recurso ao coro de jovens e das gravações de campo no caso do último disco.”

[O CORO]

“O coro sempre faz parte do que considero como a minha comunidade musical em Berlim. Em termos conceptuais já havia os sintetizadores, gostaria de explorar o lado orquestral e a fragilidade de um grupo de pessoas, que não são músicos profissionais. Confere um corpo mais humano, num certo sentido. Não falo de um solista, com uma voz extraordinária, antes de um grupo de pessoas. Em termos conceptuais não é somente interessante gravar. É a voz de uma consciência comum, do conhecimento que podemos ter. Foi muito divertido trabalhar com eles. Foram maravilhosos, sendo o Christian Mayer o maestro. Ocasionalmente ensaiei com eles. É muito raro encontrar um coro tão aberto para trabalhar de uma maneira tão experimental em conjunto e que depositasse tanta confiança nas indicações que ia transmitindo, uma vez que não se trata de canções, como eles estão tão habituados a trabalhar. Gravámos numa igreja, em locais com estruturas em betão. Foi um grupo de aproximadamente vinte pessoas que adorou participar activamente neste processo. A maior parte dos músicos da área da electrónica trabalham de uma forma muito isolada.”

[OS SONS DAS PEDREIRAS]

“O que me ocorre imediatamente à memória em matéria sonora são as ressonâncias do lugar. O comprimento dessa mesma ressonância, motivado pela profundidade que estas pedreiras têm. Não medi, mas é completamente de loucos. Deixa-se cair uma moeda e imediatamente ganha uma ressonância abesbílica que pode durar mais de 10 segundos. É uma sensação tão forte estar num lugar assim. Gostaria muito de poder ter levado o coro para cantar lá. Seria demasiado complicado. Não foi possível. Ainda há o som das máquinas enormes a extrair as pedras — a ressonância que produzem é como se fossem animais de proporções gigantescas. Há um momento no disco em que é bem audível o ruído que essas máquinas produzem. Por volta das 4/5 horas da tarde terminam de escavar e só se ouve a natureza — pássaros; eles como contraponto.”



[O CONCERTO]

“Trabalhei, em primeiro lugar, esta apresentação ao vivo e só posteriormente a edição do disco. Para o concerto, pretendo que as coisas sejam mais ou menos flexíveis. Há um conjunto muito vasto de elementos — as gravações de campo, uma linha do sintetizador, as vozes. É necessária esta flexibilidade para determinar quanto tempo devem durar, para definir as transições, o quanto posso improvisar no que respeita ao uso das electrónicas. É muito fluído. No disco, foi exactamente o oposto. Responder a: ‘Agora como organizo toda esta matéria com a duração de um disco de aproximadamente 40 minutos, numa estrutura de canções?’ Foi como que trabalhar na direcção oposta da apresentação ao vivo.”

[A CONVERSA E A WORKSHOP]

“A conversa será com o Pedro [27 de Outubro | 15:30 | Museu Nogueira da Silva] onde falaremos sobre o nosso processo de trabalho. A workshop que tem por título ‘Performing Electronic Music – Workshop with Maya Shenfeld’ [28 de Outubro | 10:00 | Conservatório de Música Calouste Gulbenkian]. Fico muito feliz por regressar a um conservatório. Há muito tempo que não acontecia. É a tentativa de desmistificar uma performance no campo da música electrónica. Como preparar um concerto de música electrónica, como se materializa essa experiência, como se estabelece o contacto com o público. Gostaria também de falar sobre os aspectos da cenografia, luzes. Aspectos técnicos, mas igualmente sobre a experiência do que as pessoas sentem quando tocam ao vivo. O espaço, a presença do músico. Estou em digressão mais ou menos há dois anos. Falarei sobre o meu set-up, mas também vi muitos outros. É sempre interessante esta partilha de experiências e como podemos chegar a ideias comuns, para serem trabalhadas por cada um dos participantes. Por exemplo, comecei a tocar guitarra e, de certo modo, é mais fácil do que estar em frente a um computador no palco. Quero falar de como pode ser mais efectivo fechar um filtro ou abrir um reverb, pequenas coisas como estas. Mas, igualmente, sobre as apresentações ao vivo, como os aspectos das luzes, por exemplo. Falar sobre um pouco do que se passa por detrás dos concertos. É muito difícil para alguns dos músicos entender o que se passa para lá dos aspectos mais funcionais das máquinas.”

[DA CLÁSSICA À ELECTRÓNICA]

“A minha educação musical começou no conservatório no campo da música clássica. Quando me mudei para Berlim, quando tinha vinte anos, continuei os meus estudos no conservatório. Estudei guitarra, composição e um pouco de direcção de orquestra. Penso que a educação no conservatório é ainda muito conservadora. Sempre me senti muito limitada e não encontrava a liberdade para fazer o que mais me entusiasmava. Assim deixei a academia e toquei em bandas punk durante três anos. Viajei até à Índia. Entretanto, aceito cada vez mais trabalhos comissionados na área das instalações sonoras, peças para ensembles, integrei um coro. Estava a tentar encontrar um caminho onde pudesse incorporar todas estas experiências. Demorei três anos e meio a editar o primeiro álbum, que saiu há um ano e meio. Integro os conhecimentos da música clássica na escrita, nas orquestrações, mas adoro o poder que a música electrónica tem. Nesse sentido, sinto-me muito mais realizada. Tento materializar todas estas experiências no que se define como ‘encontrar uma voz própria’. “

[DESENHO E SUBLINHADO, NOTAS FINAIS]

“Os meus objectos primários, como alguém que vem da clássica, são o papel e o lápis. Não tanto para desenhar, na família essa parte pertence à minha irmã, mas sobretudo para definir ideias. Tenho a sorte de ter tantos anos de música na minha vida, que por vezes admito que a mesma assuma certos contornos visuais quando penso e trabalho nela. É fácil, para mim, imaginar conceitos e ideias, e espero que assim se mantenha ao longo destes anos. O lápis e o papel para esquissos, mas sou terrível a desenhar.

Gostaria muito de ver o concerto de Eiko Ishibashi [27 de Outubro | 22:50 | Theatro Circo]. É muito entusiasmante estar numa cidade mais remota do que as que habitualmente estou. Há um conjunto de músicos que gostaria de conhecer e sobretudo a forma como o Luís [Fernandes] programa todo o festival.”


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