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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2024

Esperança musicada.

Masego: “Eu pego nas histórias e pessoas que conheci e crio estes mundos”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2024

Em primeiro lugar, cabe-me deixar uma advertência geral: perdi o áudio desta entrevista no abismo digital. Isso significa que daqui para a frente, tudo aquilo que tenho para vos dar será, essencialmente, tudo aquilo com que Masego me deixou: o desafio de encapsular a nossa interação através de fragmentos de memória que persistem. O convite está feito: querendo, o prazer é todo meu de que se juntem a mim neste labirinto da recordação.



Algures num tempo distante, nas ruas de Virginia, nos Estados Unidos da América, os sonhos de um adolescente estavam contidos em 14 dólares na carteira, o asfalto como primeiro palco e um leque de possibilidades que se abriam diante si. O nome do jovem em questão é Micah Davis, também conhecido como Masego, responsável por êxitos como “Tadow” e “Navajo”, que atuará no Campo Pequeno, em Lisboa, no dia 8 de Fevereiro.


O que se sucede pode ser chamado de magia, sorte, resiliência ou destino. O que é certo é que os dólares se transformaram em mais do que meros elementos de transação monetária e foram convertidos numa odisseia musical que nos presenteou com Micah Davis como o conhecemos hoje: multi-instrumentista e maestro da fusão musical e cultural.


A era em que vivemos é marcada por divisões que se fazem ouvir mais alto do que conexões e a música de Masego assume uma posição de quase zelo ao conectar os pontos dispersos daquela que é a nossa humanidade partilhada, seja ela no Gana ou no Brasil, nos Estados Unidos da América ou na Jamaica — onde nasceu. Trata-se de um passaporte sonoro que transcende fronteiras geográficas e as dota de significado.



Desafiar clichés e virar as costas a expectativas está impregnado na natureza rebelde de Masego. Repare-se em como no videoclip do remix de “You Never Visit Me” com ENNY e Wale decidiram quebrar a barreira entre quem cria e quem consome ao convidar verdadeiros fãs para uma inversão de papéis. Um reconhecimento de que música não é só sobre ondas sonoras mas também sobre benefícios mútuos.



Para Masego, a música é algo que faz parte da informação genética da qual é feito. Dito isto não será de estranhar que esta entrevista tenha tido início num ponto de encontro situado entre o expectável e o inesperado: numa loja de guitarras onde Masego se encontrava à procura de alguma que se encaixasse nas suas medidas. A mim, naquele instante, foi delegado somente o papel de ser uma mera espectadora virtual, a quem foi dada a oportunidade de testemunhar uma parcela de um universo que, não sendo meu, me aproximava de alguém com uma paixão em comum: a música. 


Antes da aclamação global, a sua melodia tem como primeira influência a Igreja, uma vez que os pais eram ambos pastores. Tendo o gospel como fonte de inspiração, a comunidade religiosa e a religião em si revelam-se como elementos ainda presentes no seu dia-a-dia e, inclusive, mencionou ter rezado na manhã da entrevista, o que sugere uma conexão contínua e pessoal com a espiritualidade que, por sua vez, influencia a sua expressão artística. 
O nome Masego significa “benção” em Setswana, uma língua bantu falada, principalmente, em Botsuana, na África Austral. E, curiosamente, era a alcunha de Masego na igreja. 

O ciclo cumpre-se quando visualizamos a figura de Masego e entendemos que a irreverência no modo de se apresentar advém da herança afro-caribenha. Constata, com orgulho nas suas raízes, que se pensarmos em grandes marcas, é muito provável que consigamos identificar padrões cujas origens remontem a povos autóctones africanos — e assim o faz, vai direto à fonte e transforma o seu estilo numa tela que pinta com a panóplia de inspirações que o formam. Seguindo uma lógica semelhante à de Sam The Kid, na música “Hereditário”, quando diz “não te esqueças de onde vens ou és esquecido então.”

E se tudo o que vai, volta, não é descabido que o multi-instrumentista funcione como agente de coesão entre a América do Sul, a América do Norte e África; e, revisitando o EP Studying Abroad (2020), a Ásia, em músicas como “Passport”, que conta com sinos japoneses, ou “Silver Tongue Devil”, com vislumbres de afropop.
 Escreve sempre com um olhar direcionado ao amanhã, como nos mostrou em “Black Anime”, a sua música preferida do seu mais recente álbum pois, parafraseando-o, “num mundo onde não existem personagens de anime negras suficientes, é inspirador pensar nestas perspectivas. Tu queres ver-te naquilo que consomes e, no meu caso, na música que faço. Basicamente eu pego nas histórias e pessoas que conheci e crio estes mundos.”

A noção de Trap House Jazz veio descansar quem estava preocupado em encaixar a sonoridade de Masego numa só caixa. É que as opções são inúmeras. Reparem que, segundo ele, a playlist onde menos esperava encontrar a sua música foi uma tântrica. Mas o seu contributo é fulcral e expande-se para lá de gavetas que se fecham sobre si. Vem inverter uma tendência de parte das gerações mais novas de olhar para o jazz como algo exclusivamente destinado a uma classe média branca, de meia-idade e elitista, é uma reclamação de uma tentativa errónea que existiu de aligeirar a presença negra na fundação do jazz. Caso precisem de mais provas, façam um favor a vocês próprios e vão ouvir a “Marching Band” com o Yussef Dayes, a quem Masego apelidou de génio. 



O modo como o saxofonista olha para o saxofone mudou também com esta noção, ciente de que de onde veio não era comum que assim fosse. Pedindo-lhe as palavras de empréstimo, esta inovação musical que introduz o jazz na bossa nova mete-o de braço dado com o R&B e hip hop: “Surge como uma alquimia musical única, que mistura géneros e elementos culturais. Essa inovação não apenas visa preencher lacunas entre estilos musicais, mas também conectar culturas distintas por meio de uma origem negra compartilhada.”



Mas Masego vai mais longe, tal e qual um profeta que espalha a boa-nova pelos quatro cantos do mundo. Informado pela sua vivência na dualidade de ter crescido entre a comunidade negra e a comunidade branca, a procura pela sua identidade sempre se situou num limbo entre estes dois mundos. O que daí resultou foram inúmeras viagens nas quais se apercebeu estar, acima de tudo, à procura de si, da sua comunidade. O Brasil é um dos primeiros exemplos dos quais nos fala com um brilho nos olhos, quer seja por ter a maior população negra fora de África, quer seja porque se apaixonou por Salvador, na Bahia, e reconheceu a diversidade dentro da comunidade negra, tal como, ainda assim, eram tão semelhantes a ele e aos seus relativos como mencionou. Desde estar a aprender a falar português e ter exibido as suas conquistas, às menções a grandes nomes da música brasileira como Djavan ou Gilberto Gil, não vos deixará surpresos que vos diga que está a construir um café no Brasil — exatamente para colmatar a falha da agenda dos artistas que nem sempre conseguem emergir nas culturas do modo que querem, é uma forma de prolongar a sua presença. 

É certo que a influência africana se desdobra um pouco por toda a parte, no caso de Masego relembra-o dos tempos a ouvir Fela Kuti. Ao questionar-me sobre as minhas origens e ao descobrir que são angolanas, manifestou o interesse em conhecer e colaborar com mais artistas do continente africano como um todo e em experimentar a comida angolana em particular, fazer parte de algo maior. Puxando a brasa à minha sardinha, deixei-lhe logo a recomendação de que ouvisse Toty Sa’med e experimentasse moamba.



Com o álbum Lady Lady (2018) provou-nos como a sua masculinidade é redefinida através do olhar feminino. Como partilhou connosco, se hoje consegue aceitar a vulnerabilidade, muito se deve às interações que teve com mulheres, começando na sua mãe até àquelas com quem se deparou ao longo da sua vida, a quem lhes reconhece uma inteligência emocional da qual ele próprio necessitava para lidar consigo e expandir a sua veia artística. Quer seja porque cresceu numa cultura onde ser um homem negro e sensível não era uma realidade, quer seja porque também ele teve de aprender a aceitar-se como vulnerável. E só temos a agradecer a estas mulheres. 


O seu mais recente álbum, Masego (2023), apresenta-nos um homem que se confronta com as frustrações inerentes à indústria musical: o confronto entre autenticidade vs. pressão da indústria; paixão pelo que se faz e como isso entra em conflito com o que se tem de fazer por dinheiro. Embora nos admita que o panorama das mudanças a surgir na indústria musical não seja fácil, também reconhece que adotar uma postura de quem as abraça com um olhar de criança e a seriedade de um adulto pode ser o caminho a seguir. Tendo em conta que ele próprio surgiu na internet, em particular no SoundCloud, alegra-o ver a quantidade de talento que por aí anda no oásis digital.
 

Por outro lado, já o incomoda mais a pressão que recai sobre artistas de se posicionarem sobre tudo e sobre nada. Prefere passar somente uma mensagem de positividade e distanciar-se. Tal como o próprio afirma é, acima de tudo, um artista, um pensador.
 Prefere ajudar as pessoas com base na esperança, fazendo-nos crer, quiçá, que a luz ao fundo do túnel é a serenidade, a tranquilidade ou o auto-cuidado durante tempos desconcertantes; talvez, nesse contexto, elas também se revelem como verdadeiros instrumentos transformadores. Dum spiro spero — enquanto há vida, há esperança!


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