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Kai Whiston

Kai Whiston Bitch

Gloo / 2018

Texto de Vasco Completo

Publicado a: 13/12/2018

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Kai Whiston Bitch soa a um álbum feito por alguém que não costumava estar no centro das atenções mas, quando estava, era sempre pelas piores razões. Depois de passar algum tempo na prisão, o produtor lança o seu trabalho mais amadurecido até hoje. Aos 19 (!) anos, o artista demonstra uma capacidade cognitiva incomum no que toca a noção de timing e de evolução artística. Não é qualquer um que se atira “sem espinhas” para o formato LP. Álbuns que podiam perfeitamente ser mixtapes ou “reduzidos” a EP são uma constante. Não dizemos isto com a intenção de desprezar os formatos: a ideia é reforçar que o álbum deve ser mais ambicioso, e que é preciso ter argumentos mais convincentes quando o criamos.

Antes do longa-duração, Kai Whiston já tinha dois EPs em que explorava estes caminhos, mas foi neste conjunto de canções que melhor conseguiu conjugar o caos com a componente harmónica e instrumental da sua música. Se em Fissure Price ou Houndstooth há uma maior procura pelo ruído e pela experimentação, Kai Whiston Bitch demonstra que a equação está bem estudada: de uma forma igualmente radical, o produtor tenta minimizar o que é desnecessário e dar espaço ao que precisa de ser ouvido, o que não impede que a sensação claustrofóbica da sua música desapareça, antes pelo contrário. Foi delineada com régua e esquadro de modo a que entendamos a direcção que toma, ouçamos os samples e a forma como eles se deitam sobre beats estrondosos e teclados aconchegantes.

Paradoxalmente é um disco que necessita de múltiplas audições para a compreensão da narrativa e do que cada faixa tem para nos dar, mas a que também conseguimos ficar colados à primeira audição. A identidade sonora do produtor inglês é cativante; agressiva e “destruidora”, mas também chamativa. Além da atenção ao detalhe, Kai pretende que, mantendo uma narrativa coesa ao longo do disco, cada faixa tenha um carácter ou personalidade individual, sem ser completamente óbvio ou comum na forma como o faz.

O som surrealista de Kai Whiston não se expressa na capa, que é bastante mais comedida e sóbria. Ao restringir o caos que pretendia inicialmente transpor para os temas, o produtor criou músicas “humanamente consumíveis” – como referiu na reveladora entrevista à Paper Magazine – e isso sente-se em todos os aspectos. Influenciado por Sam Rolfes, com quem já colaborou, Kai sempre se interessou pelas artes visuais. O produtor inglês criou todo o artwork do disco – que alterou completamente duas semanas antes do lançamento –, admitindo ser um control freak no processo criativo. E deixou a promessa que existem mais camadas suas que saem da esfera musical, e que o lado visual será bastante mais trabalhado no futuro.

É inteligente e dotado de um sentido de humor nocivo, algo perceptível nos seus tweets e nas suas entrevistas, mas também por alguns dos samples de voz que vão aparecendo entre faixas ou pelos títulos das músicas ou até do próprio disco. Como usava “Kai Whiston Bitch” como producer tag nos DJ sets, a alcunha acabou por ficar essa. Passou de um álbum self-titled para Kai Whiston Bitch porque achou mais “engraçado”, como confessou à Paper Magazine. E acrescentou: “As pessoas adoram gritar-me isso”. Tanto pelo lado cómico como por muito do que podemos ouvir — a coerência e qualidade ou os ambientes sonoros tão distintos –, olhamos para o produtor de Dorset como um dos principais herdeiros da linhagem iniciada por Aphex Twin.

O seu som mete-o também na linha de sucessão de produtores como Hudson Mohawke, Iglooghost – seu amigo e colaborador –, Arca ou até Death Grips. Injusto é ter de comparar o som de Kai Whiston com os seus colegas de profissão, já que emana uma individualidade e personalidade tão vincada. A aglutinação de influências do artista definem, de certa forma, a geração millenial, conjugando géneros como o baile funk, dubstep, nu-metal, industrial, drum and bass, ambiente e noise. O trabalho experimental com sampling, electrónica e instrumentos reais confirmam-no como parte relevante no futuro da música electrónica.

A diversidade de Kai sente-se facilmente, sem que pareça que estamos a ouvir discos diferentes. Podíamos ouvir uma adaptação de “Lux” com a voz de FKA twigs. “For Fuck Sake” é um instrumental incrível de sete minutos com beat-switches, samples e guitarra incrivelmente bem trabalhados para compor um bonito momento ambient. “Passarela”, “Your Secrets” ou “Mushy Seize” podiam ser produções de Sango ou Kaytranada em ácidos. Sentimos a dureza de Hudson Mohawke (“I See It But I Don’t Believe It” tem ali qualquer coisa…), Aphex Twin ou Arca ao longo do disco, ou os drops do dubstep de Mohawke ou Skrillex. Menção honrosa para “All Is Fair in Love And Kai Whiston” e “I See It But I Don’t Believe It”, que reforçam a qualidade de groove e de produção do inglês. Kai apresenta-se como um produtor multifacetado, capaz de criar em vários moldes para diferentes referências e múltiplos ambientes sonoros ao longo das 11 faixas e dos 40 minutos do disco lançado pela GLOO, editora criada pelo próprio em parceria com Iglooghost.

Apresentando-se com mais samples de voz e maior coesão no seu registo agressivo, Kai trouxe um universo obscuro que não se pinta apenas com preto e branco. “Este é o fim do tempo linear” e “os millenials estão tão tramados” são duas frases diferentes, ambas ditas pelo autor de Kai Whiston Bitch em conversa com a Paper Magazine, que resumem a sua obra e os tempos que vivemos. Em terra de loucos, quem tem lucidez é rei…


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