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Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 31/07/2023

Impulsos sonoros que se sentem na pele.

Julia Reidy e Hedvig Mollestad’s Ekhidna no Jazz em Agosto’23: jazz hands, decibéis e mulheres na frente? Confere, confere e confere

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 31/07/2023

Muito se cobra a quem recorre à palavra “jazz” para nomear festivais que programam ora a montante, ora a jusante do género (e que será o “género” neste presente tão difuso quanto múltiplo?), mas nunca se questiona quando um festival com o justo e claro nome Jazz em Agosto inclui nos seus cartazes música que já pouca ou mesmo nenhuma ligação possui com essa origem. Serão, para já, esses os casos das apresentações a solo de Susana Santos Silva (de que falámos aqui) ou, no dia de ontem, quarta etapa deste programa, de Julia Reidy. Não que haja algum problema quer num caso quer noutro: o lugar do jazz na história é muito claro e as relações que o presente estabelece com essa invenção serão as que as pessoas quiserem. Liberdade, antes de mais nada. Não vale a pena prender palavras a conceitos com cadeados conceptuais ou ideológicos. E, por isso mesmo, sigamos em frente.

Fez, por isso mesmo, pleno sentido incluir neste cartaz a apresentação de uma guitarrista australiana que encontrou casa em Berlim (não deve ser fácil…) que pega na folk guitarrística de John Fahey e nos ecos académicos dos blues para desenhar uma música ultra-pessoal que encontra espaço para a sua guitarra eléctrica, para a voz e para alguma manipulação electrónica.

A voz de Reidy sussurra sobretudo, carregando palavras quase imperceptíveis (mais importante a sua sugestão e textura do que o seu significado, talvez) que depois se desfazem através do processamento. A guitarra igualmente esculpida por efeitos começa em terrenos ambientais, vai evoluindo para motivos folk mais sugeridos do que plenamente afirmados, sempre com a transparência por marca — e mesmo a afinação do instrumento é integrada como elemento da actuação —, até tudo se resolver numa espécie de blues depurado e desconstruído em que até uma harmónica se junta ao dedilhar das seis cordas. Tudo muito leve, talvez demasiado leve, e distante de qualquer lugar imediatamente reconhecível no mapa dos géneros, o que não é necessariamente mau — ir para lá dos limites cartografados pode conduzir a descobertas interessantes. Mas talvez Julia Reidy ainda não tenha chegado a esse lugar.



Bem diferente foi a enérgica e musculada apresentação do projecto Ekhidna comandado pela guitarrista norueguesa Hedvig Mollestad. Percorrer, às vezes no espaço de um único solo, a considerável distância entre o rock e o jazz parece ter sido o conceito de base para esta aventura de Mollestad que tem no disco Ekhidna editado em 2020 pela Rune Grammofon o seu principal manifesto.

E, à semelhança do que sucedia nesse referido álbum, ao seu lado no palco Mollestad teve a trompetista Susana Santos Silva — que assim cumpriu a sua segunda apresentação neste cartaz, depois do solo no dia anterior —, os bateristas Ole Mofjell e Torstein Lofthus e a teclista Marte Eberson (no álbum, também em teclados, escutava-se ainda Erlend Slettevoll). A banda foi apresentada por Hedvig em divertida leitura de uma nota escrita em português, tendo a líder até desafiado produtores de espectáculos eventualmente presentes para falarem com ela no final já que faz questão de voltar a tocar neste “belo país”. Recursos (sobre)humanos mais do que suficientes para que se tenha projectado a partir do palco uma impressionante massa sonora. Todos a puderam sentir, certamente, embora nem todos a conseguissem escutar.

Na última fila do anfiteatro dava nas vistas um conjunto de pessoas que pareciam equipadas com uma espécie de exo-esqueleto que pulsava de luzes e em que era visível uma antena. Uma indagação rápida permitiu perceber que era um grupo de pessoas surdas agremiadas pela plataforma Access Lab que, precisamente, trabalha em prol do acesso de pessoas surdas e portadoras de deficiência à cultura e ao entretenimento. O tal “exo-esqueleto” era, na verdade, um colete equipado com um receptor e motores que traduzem em vibração os impulsos sonoros, algo que permite a essas pessoas surdas sentirem a música. Uma experiência que se pode comparar aos efeitos físicos de quem possa estar colado a um subwoofer num clube, por exemplo. A música é som, pois claro, mas é igualmente física vibração provocada pela deslocação do ar e essa é outra válida forma de a sentir. Algumas exclamações de alegria vindas daquele sector específico da plateia, sobretudo durante momentos de maior explosão, deixaram claro que esta é uma missão vencedora e meritória. De facto, a experiência que já tinha acontecido na jornada inaugural do festival tinha tudo para resultar quando aplicada à música de Hedvig Mollestad que se faz de coragem, nervo, decibéis em debandada, algum humor em estado lúdico e sérios chops técnicos dos membros da banda.

É importante notar como há algo de novo no facto deste Ekhidna colocar três mulheres na linha da frente do palco, ainda por cima três solistas de gabarito, cada uma em domínio técnico absoluto do seu respectivo instrumento. Num terreno tradicionalmente dominado por homens, é impossível não ver este deliberado stage plot como uma afirmação ideológica. Palmas para elas, pois claro (ou jazz hands, mas já lá iremos…).

Conjurando num mesmo espaço musical as tremendas energias de projectos como Return to Forever de Chick Corea, Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin, os Soft Machine de meados dos anos 70 ou até o Miles Davis da era Bitches Brew, por um lado, e, por outro, a força eléctrica de Black Sabbath — que Hedvig já assumiu ser influência — ou até (loucura minha, certamente) o lado mais planante dos Pink Floyd, estes Ekhdina são realmente dignos de serem vistos. Escutados. E até simplesmente sentidos através de impulsos que nos chegam aos ossos (eu sei: experimentei o tal colete!).

A interacção entre as duas baterias é complexa e eficaz, gerando poli-ritmos de intensidade pronunciada, mas também de intrincada sofisticação — um dos kits é expansivo, lembra-nos até os setups do senhor Carl (o mesmo que cedeu o seu apelido ao power-trio Emerson, Lake & Palmer) com demasiados gongos para tão sucinta utilização no arranque do concerto. Mas o trabalho de Ole Mofjell nas congas e bongós é de refinado valor, embora de recorte bem menos proggy

E sobre essa vigorosa (quando necessário) base estendeu-se com generoso espaço o trabalho das solistas: Hedvig não se coíbe de exibir pose de guitar hero e linguagem corporal de rocker enquanto desfere riff após riff e solos que obrigam os seus amplificadores Orange a puxarem pelas válvulas; a teclista Marte, em synths e sobretudo no Fender Rhodes, sabe ser exploratória e funky em igual medida, mostrando ter lido atentamente o grande livro da fusão prog; e Susana, claro, só sabe ser Susana — versátil, conseguindo solar em qualquer contexto, sempre com algo capaz de simultaneamente surpreender e de traduzir o seu profundo conhecimento da história. Quando quer, a trompetista sabe puxar do jazz que sempre teve dentro de si.

Os efusivos aplausos no final de uma enérgica actuação deram conta da natural satisfação geral. Só um muito específico conjunto de pessoas não aplaudiu: as pessoas surdas preferem agitar as mãos, fazendo uma espécie de jazz hands (ultra-apropriado, obviamente) como forma de mostrar o seu contentamento. A música faz-se de muitas formas, afinal de contas. Não é preciso, portanto, ser sentida sempre da mesma maneira. #jazzhands


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