Pelo segundo ano consecutivo, a Lisboa Criola ocupou os jardins da Fundação Calouste Gulbenkian para uma celebração da música de artistas racializados e, muitas vezes, das periferias da (so)ci(e)dade. O Jardim de Verão, que terminou este domingo, 9 de Julho, tem vários efeitos. Por um lado, tem um papel de validar perante parte da sociedade a música e cultura destes artistas, sendo a Gulbenkian um espaço cultural tão importante, institucional e erudito em Portugal.
Por outro, o ciclo de performances e conversas cumpre o objectivo maior de concretizar a Nova Lisboa que Dino D’Santiago profetizou em 2018. Essa ideia de uma Lisboa misturada, vazia de tensões e em paz consigo mesmo pode ser utópica, mas todos os passos nessa direção são essenciais e têm de continuar a ser feitos. Nos jardins da fundação, pessoas de muitas origens, tons de pele, géneros, sotaques e contextos sociais dançaram lado a lado durante 9 dias, em profunda comunhão.
Tal como diz o autor de Mundu Nôbu, que é o principal curador do evento, “só depende de nós sermos um pouco deste jardim por onde passarmos”, já que “continuamos a ser as mesmas pessoas lá fora”. Só por suscitar estes sentimentos e servir de exemplo àquilo que a sociedade deveria ser em todos os seus planos, o Jardim de Verão afigura-se facilmente como um dos eventos culturais mais importantes do ano. Religiosidade à parte, é um autêntico (e esperançoso) jardim do Éden de que todos precisávamos.
No último dia do ciclo, houve uma tremenda enchente para assistir às atuações que preencheram a Gulbenkian durante a tarde e o início da noite. Umafricana e Berlok, os DJ residentes desta edição, foram fulcrais para incitar ao espírito de celebração com sets bem-dispostos que passaram por muitas facetas da música negra. Aliás, todo o propósito do Jardim de Verão era esse: ouviu-se r&b mas também música tradicional cabo-verdiana ou guineense, rap e afrobeat, música popular brasileira ou afrohouse, jazz, soul, pop, kuduro e fado. Se é para misturar, que não faltem ingredientes saborosos no tacho.
Também houve concertos de Jota.pê e Aline Frazão, além do DJ set que encerrou as celebrações deste ano, daquele que é um dos mais importantes músicos e agitadores culturais lisboetas e que dá pelo nome de Marfox. Ele próprio também foi parte activa na curadoria deste ano do Jardim de Verão e tem-se vindo a afirmar como alguém cada vez mais essencial na democratização da música das periferias, programando artistas no Lux Frágil ou, claro, nas icónicas Noite Príncipe do Musicbox.
A multidão para assistir ao DJ set de Marfox — um dos pioneiros da chamada batida de Lisboa, dos “sons do gueto” da capital portuguesa — era tão vasta que mais de metade ficou à sua retaguarda, não havendo espaço diante do palco para acolher tamanha plateia. E que bom sinal. Kuduro, afrohouse, batida ou tarraxo à maneira de Marlon Silva, produtor sediado na Quinta do Mocho que possui uma enorme identidade e que anda, aos poucos, a preparar o seu próximo disco.
No final, ao cair do pano, a música desvaneceu-se e o palco começou rapidamente a ser desmontado. Certamente, aguardamos pela terceira edição. Mais importante: o sentido de harmonia permaneceu para lá da música, enquanto milhares de pessoas continuaram a confraternizar descontraidamente. Como já se provou inúmeras vezes ao longo dos anos, a música pode ser uma ferramenta fundamental de transformação social. Oxalá que a “Nova Lisboa” seja cada vez mais um retrato real do país que temos. No mínimo, temos todos de nos continuar a esforçar para isso.