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Ilustração: Riça
Publicado a: 22/05/2018

Esta lista inclui 39 vinis, desde o crioulo comovente de Karlon, às mixtapes de Bomberjack, ao pop rap dos Expensive Soul e ao hip hop instrumental de Minus & MRDolly, Rocky Marsiano e Roger Plexico.

Hip hop português em vinil: Um guia para coleccionadores e DJs

Ilustração: Riça
Publicado a: 22/05/2018

O vinil sempre foi o formato de eleição do hip hop, não fosse uma significativa parte da cultura desenvolvida em torno do DJing, desde as festas no Bronx até aos campeonatos mundiais de scratch e aos álbuns conceptuais de autores como Shadow ou Q-Bert.

Em Portugal, o formato não foi tão usado como o CD, mas houve espaço para vários artistas imprimirem em cera os seus talentos no microfone ou na caixa de ritmos.

Esta lista inclui 39 vinis, desde o crioulo comovente de Karlon, às mixtapes de Bomberjack, ao pop rap dos Expensive Soul e ao hip hop instrumental de Minus & MRDolly, Rocky Marsiano e Roger Plexico. Uma colheita ecléctica, surpreendente e interessante. Para DJs, coleccionadores ou simplesmente interessados. A ordem de entrada em “cena” é, obviamente, cronológica.


[Black Company] Nadar Remixes [Columbia, 1995]

O disco que inaugura esta lista inclui três remisturas de “Nadar”, dos Black Company, um dos primeiros grupos a fazer rap em Portugal. Um dos singles mais conhecidos do hip hop português, e um dos seus primeiros êxitos comerciais, “Nadar” catapultou o rap para o estrelato, em plenos anos 90, e ajudou a cimentar a sua sonoridade nos ouvidos dos portugueses: uma batida repetitiva e insistente a tempo médio, frases musicais simples em loop, e letras em verso, que rimam, cantadas em português, num estilo informal, descontraído e urbano.

“Nadar” é um som de festa, e por isso, naturalmente, é disso que se fala nas letras: do apetite insaciável por “desbunda” dos rapazes, que só se querem divertir, e estão dispostos a tudo para o fazer, menos nadar, aludindo ao conhecido estereótipo africano num tom jocoso.

Os ritmos do original sofrem aqui vários tratamentos, em três remisturas diferentes: uma versão de música de dança, com uma batida techno pulsante e um toque de jazz (muito em voga nos 90s) cortesia de um saxofone tenor mui melífluo, uma versão dub e uma versão de jazz-funk, com batidas mais lentas e um baixo de mel, a cargo de Tó Ricciardi e André Roquete, dos A/A Airlines.

O lado B oferece-nos ainda a música “Psyca Style”, de letras hardcore temperadas por um refrão pop cantado em cima de uma produção minimal rica em baixo, incluída, juntamente com “Nadar”, na mítica compilação Rapública. Cantada inteiramente em inglês, é um símbolo da imaturidade do hip hop português, que ainda estava a decidir se o rap era música americana, portuguesa ou africana, e, por isso, se devia ser cantada em inglês, português ou crioulo.


[Arkham Hi-Fi] The Out There EP [Kami Khazz, 1998]

O segundo disco desta lista é um EP dos primórdios do hip hop português e provavelmente o primeiro registo nacional de hip hop instrumental, antes de a Loop:Recordings ter investido no género nos anos dourados do rap nacional), lançado pela Kami Khazz, criada por Rui Miguel Abreu e Pedro Tenreiro nos anos 90 como um selo afiliado da mesma NorteSul que lançou Mind da Gap ou Boss AC.

Os Arkham Hi-Fi, cujo nome era uma referência ao universo dos comics de Batman, eram um duo formado pelo próprio Rui Miguel Abreu e por DJ Jaws-T, o homem dos pratos dos pioneiros Líderes da Nova Mensagem, uma das bandas de Rapública. Inspirados por DJ Shadow e pelas mais abstractas paisagens do hip hop, os Arkham Hi-Fi ensaiavam neste EP uma aproximação a um estado mais puro do diggin’, desenterrando obscuros samples orquestrais, breaks pesados e ecos de jazz e easy listening, de bandas sonoras e de trabalhos esquecidos do universo da electrónica. Com loops carregados de drama e programações imaginativas de bateria, esta foi uma auspiciosa estreia para uma estética particular que haveria de dar passos de gigante no nosso país.


[Bomberjack] Colisão Ibérica [Es Tao Chun Go, 1999]

Colisão Ibérica é o antecessor de Bomba Relógio, de 2002. O conceito, como o próprio nome indica, é uma mixtape em formato de disco duplo em que o primeiro lado conta apenas com emcees portugueses, e o segundo com emcees espanhóis.

As letras são uma mistura de egotripping e dicas de battle, em cortes curtos que por vezes são terminados de forma abrupta, fazendo lembrar as batalhas de 8 Mile, em que cada emcee tinha cerca de dois minutos para mostrar o que vale ao microfone.

Nem sempre o talento dos vocalistas está à altura dos seus egos, mas os seus flows são suficientemente variados para manterem as coisas interessantes. E é curioso ver alguns emcees que mais tarde viriam a alcançar maior reconhecimento, ainda num estado mais verde, como Sam The Kid ou Tekilla.

A música é um boom bap clássico e pesado a tempo médio que enfatiza tensão e ameaça através de loops sinistros de piano, órgão e violino.

Propositadamente ou não, o melhor está guardado para o fim: destaques incluem a excelente dose de horrorcore de Fuse (que abre com um dos seus mais famosos versos, “A mais poderosa máquina do século é o nosso segredo, o cérebro é o mecanismo de ataque não temos medo”, bem como a brilhante dica “Não sou sócio de Deus e não pago quotas a nenhuma santidade”), o som de intervenção anti-violência urbana “Nexo”, a rouquidão agressiva de Mundo em “Dealema”, o reggae dos Family e o flow nasalado e mui confiante de Valete.

Quanto aos nuestros hermanos, mantêm-se no mesmo modo de battle rap urbano dos seus colegas portugueses (e ancorados no mesmo boom bap pesado de recorte clássico), e impressionam sobretudo pela estilização dos seus flows, como a métrica acelerada e imparável de Sone, a “musica de guerra” de Agrezion Verbal, e Nach Scratch, ainda novo e verde mas com muita atitude (“Rimar debe ser mas que solo peleas de estilo”).

Tudo isto é temperado por muito scratch cortesia de Bomberjack (que também rima, na primeira faixa), que tempera a receita com excertos de rap americano da velha escola cortados em interlúdios instrumentais.

O álbum serve sobretudo como panorama do cenário hip hop underground na altura do virar do milénio (bem como um antever de futuras colaborações entre rappers lusitanos e espanhóis, como a profícua parceria entre Dealema e Mind da Gap e os La Coka Nostra), e veículo para divulgar artistas que mais tarde se tornariam mais conhecidos, como Sam The Kid e Fuse, bem como outros que nunca viriam a sair do underground, mas que tiveram aqui o seu momento, como J-Cap e Shaheen. Todos eles desdobram-se em metáforas, comparações, jogos de palavras e demais figuras de estilo, sem esquecer, claro, as óbvias punchlines. Sendo assim, é um interessante documento para historiadores do hip hop português.


[Arkham Hi-Fi] Early Fuck Ups 95*96 [Número, 2000]

Este pequeno 7’’ veio com o sexto volume da revista Número, do Verão de 2000, e compila duas faixas produzidas entre 1995 e 1996. Em “The Test” há uma aproximação ao drum n’bass, com um breakbeat mais rápido que ainda assim não se afasta do universo b-boying, com a voz de William Burroughs a questionar primeiro — “is this machine recording?” — e a responder depois — “this is a test”. Já “Deep Space Dub” trata-se de uma versão alternativa de “Cosmic Dust”, tema incluído em The Out There Ep que aqui surge “temperado” por uma harmónica subtraída ao universo cinemático de Ennio Morricone. Os Arkham Hi-Fi, percebe-se aliás, procuram sempre contar histórias em cada um dos seus temas, criando atmosferas e alinhando samples com alguma tendência narrativa. Mais uma curiosa peça instrumental a cargo da dupla de Buddah, aka Rui Miguel Abreu, e DJ Jaws-T, ou seja Cristiano Cunha.

Se existe uma pré-história para o terreno inaugurado mais tarde por Sam The Kid, Bulllet, Fuse e Rocky Marsiano com os seus lançamentos instrumentais na Loop:Recordings, é aqui que a encontramos.


[Micro] Rimassassinas (Dee-Nasty Rmx) [Microlandia, 2000]

Um dos primeiros discos de hip hop português em vinil a serem editados em Portugal, de um dos grupos de maior longevidade, este 12’’ contém uma remistura de “Rimassassinas”, de Microestática, o primeiro álbum dos Micro, da autoria de um dos pioneiros do hip hop francês, o pai do hip hop parisiense, DJ Dee-Nasty, conhecido por produzir o primeiro disco do rap francófono.

De sabor bem clássico, a complementar as sensibilidades da velha escola do original, rica em scratch, ritmos boom bap e baixo proeminente, este remix é construído em torno de um break bem familiar (sobretudo para aqueles que ouviram Brainfreeze, famosa mix de alquimia musical/orgia funkadélica entre DJ Shadow e Cut Chemist), o lick de guitarra de “Jason Pew Mosso”, que substitui a batida de “Funky Drummer” do original.

As letras, um egotripping repleto de comparações e jogos de palavras (fica a engraçada dica de Sagas: “Mic é o meu irmão com o qual pratico incesto”), e um refrão memorável (“Assassinas, como a morte / Agarra no mic, quem é o mais forte?”), mostram bem os dotes de battle de Sagas e D-Mars, fazendo lembrar grupos do rap alternativo americano como Dilated Peoples.

Nota: “Rimassassinas” inclui ainda o instrumental e o acapella. A mesma remistura viria a ser incluída na edição especial dupla de Microestática, lançada pela Loop:Recordings em 2004, no segundo disco, Rimas Perdidas.


[Vários Artistas] TPC [Edel, 2000]

Esta compilação lançada em 2000 reúne dez faixas soltas de estilos variados, desde o hino ao hip hop por amor à camisola de Sam The Kid e GQ, “100” (fica a dica de Sam, “Hip hop é mesmo assim, é uma arte sem sucesso/Como a heroína é uma viagem sem regresso”), ao som de festa “Até de Manhã” dos pioneiros do hip hop tuga Family com Carla Moreira, a posse cuts como “Apocalipse” e “4 Ases”, e ao manifesto anti-racismo “Ser Negro”, de Gutto dos Black Company, que fecha o disco.

Os registos dos vocalistas de serviço são igualmente variados, desde a suprema confiança pejada de estrangeirismos de Super Shor, à métrica acelerada de Sam The Kid e o crioulo de Jazzy J e Lord G.

Quanto à produção, esta é marcadamente lo-fi, um boom bap simples de velha escola, suplantado por alguma electrónica rudimentar, mas há espaço para momentos surpreendentes de sonoplastia. Destaca-se o riff de guitarra musculado de “Apocalipse” e “4 Ases”, a sample de Tony de Matos de “Lado a Lado (Hip Hop)”, a fusão entre gaita de foles e rock pesado de “Doutros Tipos” e as cordas sinistras de “Narcisismo”.

TPC é um interessante documento de um movimento artístico ainda a começar, que o situa algures entre a sua infância (no início dos 90s com Rapública) e os seus tempos áureos, de 2002 a 2005. Como diz D-Mars numa das Dicas da versão em CD, “nós estamos muito verdes ainda, aqui em Portugal”.

Curiosamente, partilha várias afinidades com a compilação pioneira supracitada: é tão ecléctico como Rapública (contém a mesma mistura de sons de festa, exibicionismo e intervenção, e até uma faixa cantada em crioulo), denota as mesmas sensibilidades de velha escola, e a mesma sonoridade pouco polida (e até conta com alguns dos mesmos intervenientes, como os Family, Boss AC e D-Mars, que seis anos antes tinham ajudado a iniciar o movimento, ao lado de nomes mais recentes). Mas demonstra uma vontade em progredir, que viria a dar frutos a meio da primeira década do milénio, sobretudo com o aparecimento da Loop:Recordings, da Kombate, Horizontal e Footmovin’ e da edição de vários clássicos como Educação Visual, Informação ao Núcleo, Beats Vol. 1 – Amor e The Pyramid Sessions.


[Chullage] Red Eyes G. [Edel / Lisafonia, 2001]

Este maxi-single inclui duas faixas tiradas do álbum de estreia de Chullage, Rapresálias – Sangue, Lágrimas, Suor (a primeira edição independente de rap português a ultrapassar três mil discos), “Mulher da Minha Vida” e “Rapresálias”, com os respectivos instrumentais e um acapella, e são um bom exemplo do rap consciente que sempre definiu a sua obra e o tornou conhecido.

A primeira, “Mulher da Minha Vida”, é uma canção de amor dedicada à sua mãe (e a todas as mães pobres que criam os seus filhos no gueto, como nos diz no final), “rainha africana, mulher da sua vida”, que labutou arduamente para sustentar o seu filho, enquanto combatia um cancro e vivia na pobreza, semelhante ao “Dear Mama” de 2Pac. E que também honra as suas raízes cabo-verdianas, cantando metade dos versos em crioulo. O relato, num tom marcadamente confessional, impressiona pelo seu detalhe e pela sua lhaneza, que o impede de cair no sentimentalismo. Tudo isto em cima de uma batida de Sam The Kid que conta com um suavíssimo loop de flauta, cortesia de Isaac Hayes, que a insere no chamado “soulful hip hop”.

O lado B, “Rapresálias”, semelhante ao clássico “Rhymeshit Ke Abala”, é a habitual combinação do rap consciente e interventivo de Chullage (“Discriminados em tudo, só nos querem para o desporto, construção e serviço militar obrigatório”) com dicas de battle, egotrip e muitas punchlines, em cima de uma produção minimalista de teclas agudas cortesia de Cruzfader. Para os fãs de hip hop tuga, é de notar que vem daqui o verso samplado em “Ninguém Escapa”, a participação de Fuse no Bomba Relógio de Bomberjack.


[Guardiões do Movimento Sagrado] Guerrilheiros do Hip-Hop [Edel, 2002]

Este 12’’ contém o singleUnderground” (bem como o instrumental e o acapella), juntamente com três outras faixas, “Fábulas Perigosas”, “Sofrimento Humano” e “Eclipse do Inferno”, tiradas do álbum de estreia homónimo da crew da linha de Sintra composta por Darkface, Biggy e DJ Link.

Todas elas são bons exemplos do hip hop militante, masculino, beligerante e interventivo típico de grupos como Dead Prez ou Public Enemy, cuja sonoridade minimalista e rude, um boom bap pesado com alguns apontamentos de electrónica na forma de sintetizadores ominosos, reflecte a crueza das letras, um misto de battle rap, egotripping e crítica social. Como seria de esperar, os emcees não estão para brincadeiras, e a atitude é agressiva, um assalto sonoro e verbal vociferado aos ouvidos de quem os escuta com o auxílio de uma miríade de punchlines, comparações e jogos de palavras. A mensagem aqui é a da adesão incontestável à facção underground de um movimento, como se de um exército ou de uma nação se tratasse.

Destaque ainda para a remistura de “Sofrimento Humano”, que leva o tratamento drum’n’bass, cujas polirritmias irrequietas típicas do jungle contrastam com a batida melancólica e downtempo do original, e o pesar das letras, espécie de inventário sobre os males do mundo, sobretudo os que se abatem sobre o continente africano, e as suas repercussões na humanidade.


[Bomberjack] Bomba Relógio [Es Tao Chun Go, 2002]

A sequela a Colisão Ibérica (lançada pela mesma editora, a espanhola Es Tao Chun Go) Bomba Relógio é uma mixtape que honra os grandes DJs americanos, como Tony Touch e DJ Premier, que difere do seu antecessor ao privilegiar músicas mais longas e estruturadas, com refrões, em detrimento de cortes mais curtos de um minuto e pouco. Mas o objectivo continua o mesmo: mostrar os dotes líricos dos emcees em destaque. A suprema confiança nas suas capacidades verbais e a vontade de destronar os adversários está na ordem do dia de todos os protagonistas, à medida que dilaceram os seus rivais com um arsenal de metáforas, comparações e punchlines ao longo de 21 faixas.

Esta mixtape é um quem é quem do hip hop nacional (só faltam aqui os Mind da Gap e Boss AC, praticamente), com toda a gente a ter direito de antena desde nomes grandes como Sam The Kid e Fuse até outros que entretanto desapareceram do mapa, como Mente Kapta ou J-Cap (e um dos raros momentos femininos no rap nacional, com a presença de Shaheen e Telma), bem como o regresso de emcees espanhóis como Due Kie e Dobleache e os vetustos Family e a sua fusão reggae-rap.

De resto, há muito scratch, e bom gosto na escolha de samples de soul e jazz, desde o piano de Thelonious Monk na faixa de Fuse “Ninguém Escapa” ao soul dos Delfonics em “Quem Tem Tem”, ao suave vibrafone à Roy Ayers na faixa de Dobleache, numa produção substancialmente mais polida que Colisão Ibérica, que reflecte um amor ao boom bap minimalista da velha escola de que toda a gente gosta.

Também se nota a evolução de alguns emcees, nomeadamente Samuel Mira, que em “Trabalha” está muito mais confiante, fluido e desenvolto que no seu álbum de estreia ou na sua participação em Colisão Ibérica.

Destaques incluem “Ninguém Escapa”, delirante (e hilariante) compilação de metáforas porno de Fuse, que oferece “detonação de vaginas como ogivas” e “minetes ao domicílio”, e intercepta “conas de alto calibre”, o uber-cool “É Preciso Avançar”, de Melo D, e alguns clássicos do hip hop tuga underground, como “A Diferença”, manifesto anti-wack emcees (“Não se nasce grande emcee, torna-se grande emcee”), e “Trabalha”.

Considerando a época em que foi lançado, em plena época áurea do rap nacional (início do milénio), Bomba Relógio, tal como TPC ou Colisão Ibérica, pode ser encarado como um importante documento histórico do rap feito em terras lusas.


[NBC] Pela Arte [Kombate / Footmovin’, 2003]

Este 12’’ contém três músicas retiradas do álbum de estreia de NBC, Afro-Disíaco, de 2003, numa parceria entre a Kombate e a Footmovin’.

Pela Arte”, o single mais conhecido, mostra-nos NBC num dos seus momentos altos, em plena posse das suas capacidades de emcee e cantor, funcionando tanto em modo r&b como rap. Em cima de uma produção muito melada de Sam The Kid com toques de jazz e soul (e um delicioso loop de trompete), NBC fala-nos de tópicos tão díspares como o racismo, a nostalgia, o seu início de carreira com Bomberjack, o amadurecimento (é daqui que vem a célebre letra do rap português “Putos querem ser velhos, velhos querem ser novos, continua a pergunta da galinha que mete os ovos”) e o valor da amizade, com muitas punchlines e comparações, bem como um name drop a todas as figuras do rap nacional activas em 2003, e termina a demonstrar os seus dotes de cantor, com muita alma e coração. E teve direito a vídeo, em que acompanhamos NBC na sua rotina diária, desde acordar até ir gravar no estúdio, misturadas com imagens ao vivo do próprio.

Eu”, também produzido por Sam The Kid, mostra-nos NBC, um dos vocalistas de entrega mais emocional do rap português, de registo algures entre o rap e a soul/o r&b, mais uma vez em modo ultra-confiante, cuspindo rimas sobre a sua educação, a sua infância e a construção da sua identidade (“Eu sou, a verdadeira definição da liberdade de expressão”), num estilo de associação livre, em cima de um loop de piano e voz de música romântica da América Latina.

Finalmente, “É Diferente Quando Se Faz Por Amor”, dueto com XEG, com refrão cantado por NBC, e produzido por Bomberjack, é um hino à resiliência e ao amor pela música, em cima de uma batida de baixo e piano bem descontraída e downtempo a fazer lembrar uma das “Special Herbs” de MF DOOM.

Nota: Este disco inclui ainda o instrumental e o acapella de “Pela Arte”, e o instrumental de “Eu”.


[Da Weasel] Re-Tratamento [Virgin, 2004]

Porventura o single mais comercial e um dos mais memoráveis dos Da Weasel, Re-Tratamento é uma canção de amor misturada com canção de engate, e funciona baseado nesse contraste, representado por dois alter-egos: a postura lasciva de Pacman (que quer “esgotar o stock nacional de Viagra”) opõe-se à gentileza e ao carinho de Virgul (que só quer tratar bem dela), tudo em cima de uma batida em tempo médio, um baixo insistente e uma suave guitarra acústica.

Além da versão do álbum, este raro single, de tiragem limitada a 500 cópias, inclui ainda uma remistura cortesia dos Cooltrain Crew, “colectivo pioneiro do drum and bass em Portugal”. Após uns melódicos licks de Rhodes e harpa, começa por realçar a qualidade reggae do original, usando a voz de Virgul como leitmotif para a faixa, cortando-a aos pedaços e colocando-a em loop, antes de entrarem as polirritmias frenéticas características do jungle e os versos de Pacman.


[Vários Artistas] Footmovin’ Records [Footmovin’, 2005]

O primeiro da série de três volumes de EPs da Footmovin’ oferece-nos uma mistura entre rap comercial e interventivo. “So Beautiful”, dueto dos portugueses SP & Wilson com o nova-iorquino Afu-Ra (tirado do seu álbum de estreia Barulho!), é pop rap de engate: promessas de sexo quente em cima de produção bling bling com toques de reggae, para abanar as ancas no clube, a fazer lembrar “Ms. Fat Booty” de Mos Def (aliás, um dos versos – “Ass so fat that you can see it from the front” – é directamente repescado ao original).

O lado A ainda tem duas músicas dos M.A.C. – tiradas do seu álbum de estreia Missão a Cumprir. “Deve Ser da Guita” é um manifesto anti-rap comercial temperado com muito exibicionismo verbal em cima de um loop de guitarra acústica plangente, enquanto “Tempo de Antena”, um corte inegavelmente superior, oferece-nos críticas mordazes e incendiárias e lamentações sobre o estado do mundo e a forma como este é transmitido pela comunicação social (“Infelizmente, a igualdade nunca fez parte do plano”), em cima de uma produção mais polida, um boom bap pesado sobre um loop de piano melancólico e nostálgico.

O lado B tem um dos singles mais conhecidos de Sir Scratch, “Nada a Perder” (tirado do seu álbum de estreia Cinema: Entre o Coração e o Realismo), com produção de Sam The Kid (um dos raros momentos em que optou pela electrónica em vez da soul ou do jazz). Um hino à resiliência cantado com a confiança de quem já passou os seus tempos de amador, conta ainda com o curiosamente memorável verso “Melhor bem acompanhado do que sozinho com vocês”. Ainda há espaço para “Lotação Esgotada”, dose de egotripping com Regula no mais alto nível em cima de sopros vitoriosos, e “Silêncio”, proclamação do estoicismo como atitude face à solidão e a tempos difíceis.

O EP fecha com “Arrebenta”, colaboração de SP & Wilson com o emcee moçambicano Raptor, som de festa de batida pesada e baixos gordos e intensos que impressiona pela métrica veloz de Raptor no último verso (sobretudo a rima “Assente, sente o indecente consente, puto sente, concentro no centro sem ser o centro”), a fazer lembrar Sam The Kid no seu auge.


[Vários Artistas] Footmovin EP Vol.2 [Footmovin’, 2006]

O segundo volume na série de EPs da Footmovin’ começa com dois cortes de SP & Wilson: “Beatbox”, fábula moral de SP sobre os perigos de ser seduzido por groupies menores de idade, em cima de ritmos beatbox minimalistas, quase como se fosse apenas acapella, e “SP & Wilson”, som de festa com a habitual sonoridade do dueto, feita de bombos pesados e baixos espessos, e letras rápidas quase em modo trap.

Continuamos com “Chora Comigo”, som melancólico de Bob da Rage Sense sobre o poder da amizade, bem como “Bu Podi Bem”, corte beligerante de egotripping em crioulo de Núcleo com Del Tó.

Mas o melhor está guardado para o fim: o grosso deste EP é dedicado a promover o segundo álbum de Valete, Serviço Público. Rapper de intervenção por excelência, conhecido pelo seu ideário de extrema esquerda (“trotskista belicista”, nas palavras do próprio), começa por nos apresentar um manifesto das suas convicções políticas em “Anti-Herói”, em que se expõe como rebelde, incendiário, “o filho bastardo da vossa opressão”, “Malcolm X de microfone na mão”, afiliando-o com todas os revolucionários da cartola, desde Lenine a Gandhi, desde Arafat a King, numa voz agressiva e autoritária, em cima de um beat electrónico minimalista de Sam The Kid e Conductor. E a julgar pelas letras, não será uma revolução pacífica.

Canal 115” é uma posse cut com os seus dois amigos de infância, Adamastor e Bónus, repleto de metáforas e punchlines como “Usas mãos quando rimas és mudo não dizes nada/Uso mãos quando rimo porque eu sou um punchliner/Somos a espécie rara que o hip hop reivindicara/Tu queres bling bling toma 112 barras” ou “D’ouro como o rio que divide Porto e Gaia/Nós somos ghostbusters avisa o teu ghostwriter”, sobre uma batida minimal de sons sintetizados que mostra STK de novo a brincar com a electrónica como fez em “Nada a Perder” ou “Anti-Herói”.

Subúrbios” é mais um som de intervenção, desta vez uma crónica do quotidiano nos bairros periféricos das cidades, semelhante a “Nossos Tempos” e “À Noite”. Valete volta a abrir o seu “olho de repórter” (o mesmo de “Nossos Tempos”), e fala-nos de vários problemas que grassam nas áreas limítrofes dos centros urbanos, como a gravidez adolescente, a negligência parental, a violência doméstica, a pobreza e o racismo, a promiscuidade e a doença, num tom despojado e honesto, em cima de sintetizadores ominosos.

Finalmente, “Roleta Russa” é a história de um encontro romântico que acaba mal, alegoria moral sobre os riscos do sexo desprotegido, ao som de uma batida lenta de Conductor ancorada num riff de guitarra eléctrica que sugere tensão a cada bater do bombo e da tarola.

Como habitualmente, a Footmovin’ aposta no ecletismo, juntando rap consciente a sons de festa.


[Black Mastah] Krónikas de um Mestre [Footmovin’, 2006]

Depois de NBC se estrear a solo com Afro-Disíaco, em 2003, foi a vez do seu irmão, Black Mastah, a outra metade dos Filhos de um Deus Menor, ter a sua vez, com Krónikas de um Mestre. Os dois álbuns são semelhantes, na medida em que são ambos solarengos, dançáveis e cheios de soul e mensagem positiva, nas letras e na sonoridade.

Este white label inclui dois singles (com instrumentais e acapella), uma remistura e dois sons tirados da versão completa em CD.

“Vamos Brindar”, “Toda A Gente Quer Mais” e “Flawless Radio” são três singles de inegável apelo comercial, feitos para passar nas rádios (aliás, “Flawless” chegou a ser usado pela Antena 3 como jingle de auto-promoção, ironia quando na própria música é dito “E a regra nº 1 – não há sons comerciais”), com refrões veranis e sacarinos e sonoridades bem funky. “Flawless”, em particular, é construído em torno de um melífluo loop de guitarra acústica do sempre fiável e uber-samplado Bob James com Earl Klugh. A rádio de que fala o título é uma estação utópica, idealizada, em que toda a gente pode pedir o que quiser, desde disco a funk e hip hop e sons da velha escola, e que tanto serve para animar festas no parque, viagens de carro ou tardes preguiçosas de domingo.

Para servir de contraste a estes três sons de festa, temos “Desabafos”, música de batida mais calma e melancólica sobre como lidar com as vicissitudes mais negativas da vida, a procura do sentido da existência e a insatisfação perante tudo. E a remistura de “Respeitem os Arquitectos”, com a participação de Martinez, um corte tradicional de egotripping e exibicionismo lírico, misturado com nostalgia pelos bons velhos tempos, que acaba com Black Mastah e Martinez a trocarem histórias sobre os tempos das maquetes do “Repto” e de antigos concertos, em cima do clássico break de Tom Scott and The L.A. Express, “Sneakin’ In The Back”, o mesmo samplado por DJ Cam em “Dieu Reconnaîtra Les Siens”.


[Bezegol] Roots of Evil / Plant [Gumalaka, 2006]

Este 7’’ tem duas músicas que viriam a integrar o primeiro álbum a solo de Bezegol, Rude Bwoy Stand, editado pela Matarroa no ano seguinte, dois exemplos da sua típica fusão entre reggae e hip hop (que por vezes se chama de ragga hip hop).

A primeira, de ritmo mais brando, é mais melancólica, com o músico portuense a apontar as raízes do mal do título com a sua habitual rouquidão plangente e flow lento, que acentuam o pesar das letras, sobre terrorismo, ganância dos grandes líderes e belicismo mundial, o que faz de “Roots of Evil” um clássico hino pacifista, semelhante ao que ouviríamos de Bob Marley.

Embora o silvo do vinil audível no início da faixa não adivinhe o que se vai seguir, “Plant” é bem mais dançável, funky e positivo, o oposto de “Roots of Evil”, cujas letras falam sobre paz interior, indiferença à opinião dos outros, independência e respeito mútuo como raízes para uma vida de rectidão.

Ou seja, esta parelha de faixas acaba por nos apresentar uma dicotomia interessante (sendo uma o inverso da outra), que nos é dada pelos seus títulos, baseada na metáfora do crescimento das plantas aqui transformada em parábola moral: enquanto a ganância e o belicismo são as “Roots of Evil” que fazem crescer o mal, o respeito, a independência e a indiferença ao que os outros pensam são as raízes que levam a uma vida de paz interior e integridade.


[Vários Artistas] Footmovin’ EP Vol.3 [Footmovin’, 2007]

O terceiro e último EP da Footmovin’ abre com luz, mostrando-nos o brilhante single “Segunda Pele”, de NBC, o primeiro tirado do seu álbum Maturidade, de 2008. Explorando ainda mais o lado soul que havia mostrado em Afro-Disíaco, nesta música NBC canta sobre a sua enorme paixão, a música, numa comovente carta de amor com versos que alternam entre o metafórico (“Se a minha vida pudesse ter uma banda sonora/O dia e a hora seria como o bombo e a tarola”) e o autobiográfico (“O único dedo que meti no gatilho foi na viola”, “Mãe acorda o menino que vai para a escola/Não leva a mochila, só leva cassetes do Solaar”), em cima de uma produção luxuriante (a cargo de New Max dos Expensive Soul e DJ Link) feita de cordas românticas soul e licks de guitarra disco funk.

Seguimos para “Imagina”, do mesmo álbum, som de intervenção em que NBC denuncia os males da África contemporânea, desde a mortalidade infantil à violência e à exploração laboral, apelando à dignidade do povo africano, em cima de uma simples batida com lick de guitarra funk.

Hora de Mudança”, de Bob da Rage Sense, é um som de mensagem positiva apelando à evolução pessoal e à construção de um novo mundo.

O lado B começa por “Puxa Lá”, o primeiro single do álbum de estreia dos Philharmonic Weed, Primeiro Mundo, com a colaboração de Prince Wadada. Um bom exemplo da fusão entre o reggae e o rap (semelhante ao de Bezegol), oferece um refrão altamente viciante e uma batida jamaicana reforçada por bombos fortes do hip hop.

Continuamos com “Hall of Fame”, dedicação de Valete aos maiores nomes da história do hip hop português, sobretudo os da escola dos 90, pioneiros e obreiros do movimento. Nenhum nome é esquecido nesta autêntica lição de história, desde Gabriel o Pensador (conhecida influência para muitos rappers portugueses), até aos Micro, Dealema, Mind da Gap, Boss AC, Nigga Poison e Chullage, e álbuns históricos como Expresso do Submundo e Rapública, bem como nenhuma zona do país, desde a proverbial Margem Sul ao Norte.

O EP ainda inclui “Verbalizo”, de Sanryse, tirado do seu álbum V.I.D.A., de 2007, produção uber-melancólica de violinos plangentes com cortes de Nel’Assassin e letras de auto-afirmação, e “Royalflush”, de Royalistick, dose de egotripping em cima de beat bling bling.


[DJ Ride] 180 Gr [Red Bull Homegroove, 2008]

Como afirmou em entrevista ao Bodyspace, 180 Gr (o peso do vinil considerado de qualidade superior) é uma scratch tool (a primeira em Portugal), uma ferramenta para DJs, destinada a ser usada por profissionais do ramo.

“(…) o 180 GR Scratch Tool (Red Bull Homegroove) foi uma ideia que tive há uns tempos atrás e que decidi apresentar-lhes. Para mim, era um sonho ter o meu próprio vinil de scratch. Decidi fazer um vinil que tivesse notas e escalas musicais, sons de teclados vintage, sons da rua (andei por Lisboa a captar sons da baixa/metro/eléctrico/etc), e instrumentais quer para scratch quer simplesmente para passar num set.”

São, ao todo, 28 faixas num disco que é muito mais uma ferramenta para gira-disquistas do que uma amostra de novos trabalhos do DJ das Caldas da Rainha que no ano anterior se tinha estreado com Turntable Food. Não deixa, ainda assim, de ser um histórico documento, com Ride a extrair argumentos de sintetizadores e da sua colecção de discos e até da própria cidade de Lisboa — há field recordings por aqui – para futuras criações.


[Koalas Desperados, Bezegol e Korbo] Tempu [Rootdown, 2009]

Este 7’’ lançado pela alemã Rootdown contém o primeiro single do álbum de estreia homónimo dos Koalas Desperados, duo fusionista de reggae, hip hop e demais sons urbanos baseado em Colónia, e conta com os talentos vocais de Bezegol e Korbo. “Tempu”, cantado em português, é uma reflexão sobre a inexorabilidade do tempo, cujas letras falam sobre lidar com o passado, o livre arbítrio, a falibilidade humana e a procura do equilíbrio e da sanidade, em cima de ritmos reggae tradicionais, caminhando o território da parábola moral já calcorreado por Bezegol em músicas como “Roots of Evil” e “Plant”. E nenhuma voz é melhor para este tipo de temáticas que a do músico portuense, que parece albergar em si toda a dor do mundo – a sua rouquidão plangente empresta uma mui lusitana melancolia às palavras.

Este single teve direito a um vídeo de Rodrigo Areias, que mostra uma criança que rouba uma maçã (a fazer lembrar o título da música dos Dead Combo) e passa o resto do vídeo a correr pela vida dele, até obter a sua recompensa, podendo finalmente comê-la em paz.



[Orelha Negra] Orelha Negra [ArtHouse, 2010]

Os Orelha Negra são um projecto de música instrumental formado por Samuel Mira na MPC, João Gomes nas teclas, Francisco Rebelo no baixo e guitarra, Fred Ferreira na bateria e DJ Cruzfader nos pratos (ou seja, estamos perante o que na música se costuma chamar de supergrupo, composto por músicos de sobeja reputação e talento), cuja missão é um tributo à música negra do passado, nomeadamente o jazz, o funk e a soul, a qual vão minar em busca da perfeita repetição.

O seu primeiro álbum é uma colecção de canções instrumentais que privilegiam a melodia, o ritmo e a groove acima de tudo, navegando as águas do jazz funk melado, com alguns momentos de hip hop. O resultado é uma dose de “hip funk orgânico”, nas palavras de Rui Miguel Abreu.

Sendo uma obra de reconstrução sonora, pertencente ao género que John Oswald apelidou de plunderphonics, as músicas partem de melodias que são sugeridas pelas samples, que vão desde a soul de Marvin Gaye e Betty Lavette ao funk de Curtis Mayfield e ao rock de Ozzy Osbourne, mas usam-nas apenas como base, expandindo-as em músicas longas e estruturadas.

E embora haja presença de música portuguesa (como nos samples de voz d’“A Memória”, como a de Paulo de Carvalho), o ingrediente principal aqui é a música americana, sobretudo a soul dos 70s, o funk e o jazz fusionista de gente como Lonnie Smith (que aparece na capa) – embora haja muitas surpresas, como eletrónica cósmica, música brasileira (fiquem atentos ao mesmo break de Maria Bethânia que Madlib usou em “Rhinestone Cowboy”), algum rock e até o momento spoken word de Carlão a meio.

Conquanto a sonoridade seja familiar, não fosse o uso de samples de gente como Marvin Gaye e Curtis Mayfield, e o lendário clamor dos Mountain em “Long Red” – vale a pena consultar o WhoSampled — o quinteto consegue manter as coisas refrescantes acrescentando ideias novas ao passado, enriquecendo a música e transcendendo o mero sampladelismo. Porque, afinal de contas, “a memória é a coisa mais jovem”.

As músicas começam por uma groove hipnotizante, sugerida por uma sample, que depois é repetida e sustentada, e temperada pelo scratch de Cruzfader, os solos de teclas de João Gomes e alguns samples vocais plangentes de soul (saídas da MPC de Samuel) que nos apetece cantar e fazem soltar aquela vontade inexplicável que temos no coração. E tudo isto é embalado pelo baixo suave e melífluo de Francisco Rebelo.

O álbum divide-se entre momentos de chillout mais sentimentais e nostálgicos como “A Memória” e “M.I.R.I.A.M.” e outros mais dançáveis (ou pelo menos de abanar a cabeça), como “Barrio Blue”. As batidas, sempre em tempo médio (quase sempre da mão de Fred Ferreira, mas por vezes da MPC de Samuel Mira), dão ao álbum uma atmosfera relaxante e sedutora, fazendo dele uma escuta muito prazenteira.

Como nos diz o vetusto apresentador da RTP Luís Pereira de Sousa na canção de abertura, o objectivo aqui é “estimular o aparecimento de novas melodias”, “pegar em canções e transformá-las”, com “emoção e técnica”.


[Expensive Soul] O Amor É Mágico [Rastilho, 2010]

Este 7’’ contém um dos singles mais famosos dos Expensive Soul, duo comercial que mistura pop rap com neo soul, “O Amor É Mágico”, incluído no seu terceiro álbum, Utopia. É uma história de amor muitíssimo brilhante, positiva e dançável, ancorada num memorável riff de sopro e cordas à Isaac Hayes ou Marvin Gaye, a fazer homenagem à melhor soul americana. O falsete de New Max domina a faixa, cujas letras bem sacarinas falam da natureza mutante do amor, que, segundo os rapazes de Leça da Palmeira, pode ser “mágico, rápido, sádico” e por vezes “trágico”.

O lado B, “Game Over”, é bem diferente: musicalmente, abre com um baixo profundo e melancólico a fazer lembrar as bandas sonoras de Ennio Morricone para os spaghetti westerns de antigamente, que depois evolui para uma secção instrumental soul funk de cuidados e complexos arranjos, e guarda uma surpresa para o fim, na forma de polirritmias frenéticas de drum’n’bass no último minuto.

E se a música é uma mistura de estilos, também as letras são eclécticas, uma mescla de ânsias catastrofistas sobre o fim do mundo temperado por um carpe diem epicurista de aproveitar-enquanto-cá-estamos.


[Rocky Marsiano] Back To The Pyramid [Adam & Liza, 2010]

O terceiro e último volume na sua trilogia da Pirâmide (sucedendo a The Pyramid Sessions, de 2005, e Outside The Pyramid, de 2009), Back To The Pyramid continua a evidenciar o amor de D-Mars pelo jazz e as suas sensibilidades de velha escola (o álbum é aliás descrito como uma declaração biográfica em forma musical – como afirma o próprio em “Risin’” – This here is my culture, my life, my flick), colocando riffs de saxofone, flauta e guitarra em cima de ritmos com sabor tropical e linhas de baixo profundas, espessas e viciantes, em produções dançáveis que assumem o groove, a melodia e o ritmo como guia. Como diz Marko Roka em “Points of View”: “Let the beat and the groove just take control/Let the vibe get over your body and soul/Let the bass roll like it’s never ending/Just feel the music that I be sending”

Tal como os discos anteriores, conta com instrumentos tocados ao vivo (neste caso, o solo de trompete de Joep van Rhijn no final de “Lost and Found”) e convidados especiais, como o grupo de afro pop queniano Sauti Sol, os rappers underground genoveses Zero Plastica ou o toque feminino de D_Fine, cuja voz abrange todos os registos, desde o soul ao scat e até ao rap, numa admirável versatilidade.

Todas estas músicas começam por uma forte linha de baixo, o que faz dele a presença preponderante e o protagonista desta aventura. Por vezes os ritmos saem do hip hop e entram no mundo da música de dança (por vezes assemelhando-se ao jazz house popularizado por Ludovic Navarre, aka St. Germain), fazendo deste porventura o mais dançável dos três volumes.

O resultado é um álbum de supremo bom gosto, a que D-Mars nos habituou, para ser ouvido algures entre a pista de dança e o sofá da sala, situado entre a música de dança e o hip hop da era dourada. E para quem tem saudades dos trechos de spoken word da Blue Note de álbuns anteriores, podem ouvir a festança polirrítmica e o delírio de scratch de “Jazz Appetite”.

De notar também que aqui se começam a desenhar afinidades com a música brasileira e africana, em certos breaks e vozes, como os ritmos de “Roots of the Trade” e o afro pop de “Risin’”, que fazem adivinhar o percurso seguido em Music for All Seasons e Meu Kamba.


[Bezegol] Fora da Lei [Rude, 2011]

Fora da Lei”, produzido por DJ Kronic, que acabaria por ser incluído no seu EP Monstro, tem uma produção mais próxima dos ritmos do hip hop, embora se baseie numa melodia clássica de órgão de reggae. Quanto a Bezegol, a rouquidão plangente que o tornou conhecido mantém-se, embora desta vez esteja mais amargo, devido ao conteúdo das letras. E o seu flow está mais acelerado, semelhante à voz de Virgul nos primeiros trabalhos dos Da Weasel.

A sirene no início antevê a violência das letras, nesta invetiva anti-governo em que se critica tudo, desde os impostos ao orçamento, a ganância, a desonra do passado (“Como vamos explicar à próxima geração/Os espinhos que vivem nos cravos da revolução”) e a hipocrisia (“Andam a brincar com a nossa vida há tanto tempo/Agora são discursos de pesar e de lamento”).

Inclui também o riddim (instrumental).


[Beatbombers] Beatbombers Apresentam Tuga Breakz [Rockit, 2012]

Antes do álbum homónimo que lançaram em 2017, DJ Ride e Stereossauro, conhecidos como Beatbombers, apresentaram ao mundo este Tuga Breakz que combinava as virtudes de uma scratch tool e de um EP com material inédito, neste caso quatro beats fortes, pensados para serem usado num contexto de batalha em clube, com músculo e balanço.

Rui Miguel Abreu, co-editor deste disco que carregava selo Rockit, escreveu na altura a apresentação de Tuga Breakz:

“O DJ quando se prepara para a batalha tem que levar os skills perfeitamente aguçados, a electricidade a pingar da ponta dos dedos…Nesse momento, o DJ tem que respirar groove por todos os poros, tem que encaixar os golpes mais devastadores com classe no seu discurso musical, tem que ser fresh como uma alface, cheio de swag, da t-shirt aos kicks, do chapéu colocado no ângulo certo e com precisão milimétrica ao relógio que só está no pulso para chamar a atenção para o que a ponta dos dedos é capaz de fazer. Mas nada disto – nada mesmo! – lhe serve se para essa batalha o DJ nao levar a munição certa. Já se sabe que não se pode ir com luvas de boxe para um duelo de pistolas e não se pode entrar numa battle sem as dicas certas, os punchs capazes de arrumar com o adversário à primeira…Tuga Breaks tem munição de todos os calibres na língua do poeta da pala no olho. ‘Idiota…hey… brutal’. ‘F#d$-se’. Estao prontos?…”

Outro pormenor importante: se o CD que a dupla lançou o ano passado contava com capa de Vhils, este vinil era adornado com arte de Add Fuel to Fire, com os Beatbombers a demonstrarem assim serem atentos observadores do também agitado universo da street art nacional.


[Orelha Negra] Orelha Negra [Nortesul / Rastilho, 2012]

 O segundo álbum homónimo dos Orelha Negra continua a explorar o formato e a paleta sonora da sua estreia: o mesmo cocktail de música negra do passado revisitada para os tempos modernos, o jazz, o funk e a soul (e por vezes o rock, o disco e a electrónica) cortados em loops viciantes carregados por breaks de bateria propulsivos. Ou seja, o quinteto continua a minar o passado em busca da groove perfeita.

O ponto de partida é o hip hop, pela abordagem à composição e a forma como olham e entendem o passado, e o ponto de chegada os nossos corações (e os nossos pés). Mas desta vez exploram mais o mundo da electrónica e da música de dança (como o disco de “Round4Round”), com ritmos e texturas sintetizados, e o rock, como as guitarras eléctricas musculadas de “Espelho”.

É mais dançável, uptempo e menos melancólico (tirando os trechos de poesia), com os olhos postos na pista de dança do clube em vez do sofá e dos auscultadores, e com os ritmos mais próximos tanto do hip hop e do seu boom bap como da electrónica, e contém mais dois clássicos, a juntar a “M.I.R.I.A.M.”, “Throwback” e “O Segredo”.

Quanto aos samples, voltamos a ouvir soul, a de Marvin Gaye e Joe Tex, o funk dos Parliament e uma curiosa presença de música brasileira, na figura da Orquestra Som Livre, grupo musical responsável pelas bandas sonoras de telenovelas brasileiras, e dos Fevers, banda de rock psicadélico.

Como disse Rui Miguel Abreu, “A música voltava então a explorar as mesmas coordenadas: a partir de um ponto de observação declaradamente hip hop, o grupo estendia o seu olhar pelas memórias impressas em vinil e captadas pelo sampler, memórias da soul, do funk e do jazz, do cançonetismo ligeiro global, da pop, memórias partidas e repartidas em loops significantes, em breaks que os movem e nos movem, tudo pontuado com certeiros scratches e servido por arranjos dinâmicos que revelavam a ambição de nos contarem histórias ao ouvido, segredos daqueles que quando partilhados formam identidade.”


[Rocky Marsiano] Music For All Seasons [Adam & Liza, 2013]

Se na sua trilogia da Pirâmide, Rocky Marsiano usou o jazz como matéria-prima para corte e colagem de samples, desta vez é à música brasileira que vai buscar o mesmo (nomeadamente, à colecção de discos da sua mãe, criada no Rio), fazendo algo semelhante ao que Daedelus fez em Denies the Day’s Demise. Ouvimos nestes 10 beats bossa nova, samba e MPB, cortesia de alguns dos cantores e grupos mais reputados do Brasil, como João Bosco, Milton Nascimento e os Tamba Trio.

Se The Pyramid Sessions e Outside The Pyramid transportavam-nos para o fumo denso e nocturno de um clube de jazz, estes transportam-nos para o ambiente tropical e quente de um sambódromo, cimentando a qualidade dançável que a música de Marsiano vinha a adquirir desde Back to The Pyramid, de 2010. E como seria de esperar, a sede de groove, melodia e ritmo é a mesma.

A batida aqui é uma mistura entre o boom bap do hip hop mais tradicional e a batucada do samba, que produz resultados surpreendentemente agradáveis. Naturalmente, o álbum está povoado de instrumentos como o reco-reco, o cavaquinho e a cuíca, cortados e colados em simples e viciantes melodias. Mas a ligação com o jazz não é perdida, em momentos como a cantoria scat de “Jazzy Sport” e “No Rain, No Pain”, “Bee Bop Dude”, que faz lembrar “Round-the-block Session” de The Pyramid Sessions ou o piano melífluo de “Jazz Me Para Cima”.

A ajudar à festa estão as vozes de Yinske Silva (que canta, em “Maracutinha”, “Se você quer luz, o ritmo tem; Se você quer ginga, o ritmo tem; se você procura a sorte, o ritmo tem, porque o ritmo é filho da terra também”) e Bruce James, que dá um toque neo-soul.

De notar também a história curiosa por detrás do álbum, que nos remete para o seu título: foi composto durante um dos Invernos mais longos da Holanda, pelo que a intenção de Marsiano foi a de criar um Verão no estúdio enquanto lá fora ainda nevava em Abril.


[dB + PZ] Cara de Chewbacca [Meifumado, 2014]

Esta colaboração entre David Bruno e Paulo Zé Pimenta é um bom exemplo de rap humorístico, que evoca as peripécias de amor tragicómicas dos Pharcyde. As letras de PZ são escorreitas e relaxadas, e a produção de dB é luxuriante como de costume e leva-nos de volta aos tempos áureos do hip hop, com um loop de piano e cordas dramáticas a fazer lembrar uma banda sonora de John Barry para os filmes de James Bond, em cima de clássico boom bap de abanar a cabeça. “Cara de Chewbacca” conta-nos a história de um dia em que conheceu uma mulher que é tudo para ele…da cintura para baixo, com uma “cara de Chewbacca” que “nunca para de o surpreender”, enquanto “Tu És A Minha Gaja” é uma declaração de amor a uma miúda que conheceu quando “ainda era menino, a apalpar a consciência”, enquanto ela preparava o seu leite com Nesquik, em cima de uma batida de funk cósmico e melado.


[Expensive Soul] Sonhador [Sony Music Entertainment, 2014]

Sonhador é o quarto álbum do duo de Leça da Palmeira, e é descrito por New Max, que assina a produção de todas as faixas, como “soul musiccantada em português, feita no Norte de Portugal, oscilando entre os sensuais midtempos e os grooves mais dançáveis”.

A voz de New Max domina o álbum, o seu falsete por vezes apaixonado e envolvido, outras vezes etéreo e idealizado, mas sempre cheio de emoção, um autêntico instrumento musical, contrastado pelo rap de Demo, um toque mais masculino e telúrico. O tom dominante é o de sensualidade e do positivismo, temperado com energia nos sons mais dançáveis.

E quando não estamos a ouvir a melíflua voz de New Max, ou os raps enérgicos de Demo, ouvimos a música, uma soul clássica e orquestral, rica e luxuriante, plena de ritmo, melodia e groove, feita de arranjos cuidados de sopro e cordas. Tudo aqui é orgânico, e raramente se ouve a presença de uma caixa de ritmos, de um sintetizador, ou de uma sample.

As letras nem sempre são poesia, de tão sacarinas que são (sobretudo nas canções de amor), e resultam melhor cantadas do que em formato rap, mas não anulam um álbum cheio de música solarenga de qualidade.

Sonhador divide-se em sons de mensagem positiva sobre aproveitar a vida, a esperança e a vontade de mudar e vencer as adversidades (“Progresso”, “Abre-te Comigo”), canções românticas sobre o poder salvífico do amor (“O Cupido”, “Reacender a Chama”), alguns momentos de melancolia (“Que Saudade”, “Adeus”) e músicas de dança, como “Dança da Meia-Noite”, “Não Te Vás Já” e “Eletrificado”, funkalhada à James Brown com muita energia e solos de saxofone e trompete deliciosos, sempre com refrões viciantes e cantáveis. É sobretudo um álbum de soul, mas a ligação com o hip hop faz questão de se manter, não apenas no rap de Demo como em certos ritmos, como o break clássico de “O Cupido”, e ainda tem toques de funk e disco.

Um álbum doce e agradável, para ouvir, cantar e dançar.

Nota: A edição em vinil contém as duas faixas bónus escondidas da versão em CD, aqui reveladas: “Adeus” e “Sonhador”, mais melancólicas e downtempo.



[Rocky Marsiano] Meu Kamba [Adam & Liza, 2014]

Depois de ter explorado o universo do jazz na sua trilogia da Pirâmide e a música brasileira em Music For All Seasons, o vetusto produtor e emcee dos Micro (a propósito, Sagaz entra aqui em duas faixas, cantando em crioulo) aventurou-se no mundo da música africana (especificamente, a de Angola, Moçambique e Cabo Verde, provando que África faz parte do ADN musical português) para este Meu Kamba, mais uma fusão de ritmos modernos com o que se chama de world music (especificamente, o semba popularizado por Bonga em Angola nos 70s, em plena época de descolonização, e o funaná de Cabo Verde), rico em melodia e groove para dar e vender.

O resultado, que nasceu de uma brincadeira entre amigos, é um tributo à música africana do passado, num álbum de Afrobeat, orientado para aquecer a pista, com loops de vozes em crioulo a entrarem e saírem da mix, muitos riffs solarengos de viola, muito kissange e dikanza (e até sons da selva no excelente número de chillout “Selva Rainha”), e percussão orgânica que se mistura com batidas programadas, o batuque das congas e os botões da MPC em perfeita harmonia passado-presente. Mais uma vez, o registo alterna entre o hip hop e a música de dança, mas sempre com os olhos na pista, e sem nunca esquecer as suas raízes boom bap (sobretudo em “CL Suave”). Se por vezes se ouve o ritmo distintamente sintetizado de uma caixa de ritmos, por outras ouvimos a batucada dos discos originais intacta. E no meio de toda esta dança ainda há espaço para melancolia, na voz plangente de Barceló de Carvalho, que é samplado amiúde, em “Meu Kamba” e “Esse Mambo”.

Curiosamente, D-Mars mantém-se afastado dos ritmos mais contemporâneos e acelerados do kizomba e do kuduro, géneros muitíssimo populares mas menos aptos à abordagem fusionista de Marsiano, focando-se sobretudo no passado, um gesto de bom gosto e originalidade que só beneficia a música, e que a diferencia de projectos como os Buraka Som Sistema. Aliás, esta música não é tão intensa quanto a dos Buraka, mas não é menos dançável.

Nota: Marsiano haveria de levar esta música ao vivo, com o seu projecto Rocky Marsiano & Meu Kamba Sound, acompanhado de Nel’Assassin nos pratos, do seu irmão Toni nas congas e duas bailarinas.


[Roger Plexico] No Man’s Land [Monster Jinx, 2015]

Quem é Roger Plexico? Eis a pergunta que nos foi feita no seu EP de estreia, de 2014, a mesma que fizemos a Clutchy Hopkins, outro projecto  enigmático de identidade desconhecida envolto em mistério, em 2006. De facto, a música é semelhante a Clutchy, com quem tem afinidades, além da auto-imposta anonimidade: a mesma mistura de funk e música de dança em cima de batidas de hip hop a tempo médio.

Roger Plexico (“figura misteriosa cujos exactos contornos biográficos são desconhecidos”, mas que na verdade é o alter-ego de Slimcutz e Taseh, dupla de produtores do Porto) é mais um grupo que se assume inspirado pela estética da era dourada do hip hop, nomeadamente o rap nova-iorquino dos anos 90, representado por produtores como Large Professor, Premier ou Pete Rock.

Tal como David Bruno ou Minus&MRDolly (também do Norte), o que nos oferece é um boom bap melódico e relaxado (já explorado em Who Is Roger Plexico?), apoiado em batidas pesadas e crocantes que não saem do tempo médio. No entanto, desta vez troca a soul e o jazz pela música de dança dos 70s e 80s (desde o funk ao disco e à house de Miami e Chicago, com uma breve incursão pelo big beat) e pelo ambient, e os loops de piano e saxofone por baixos sintetizados e texturas electrónicas, estando por isso mais próximo da música de dança que do hip hop tradicional. Consequentemente é também muito mais digital do que orgânico, mas não menos quente e emotivo.

Apesar de puramente instrumental, é também um concept album, desenvolvido em torno de uma narrativa, uma aventura peripatética da personagem fictícia sobre sítios abandonados pelo tempo (descritos como “monumentos de memórias abandonadas”), e as energias que retirou deles, que serve de mote às viagens sampladélicas do duo.

Com títulos de faixas como “Thames Town”, “Mounsell Forts”, “Church of the Transfiguration”, “Acme Coke” e “Demon’s Alley”, que evocam universos estéticos tão díspares como o cinema fantástico, a hauntology da Ghost Box e a wanderlust solarenga do universo chillout/downtempo de gente como Minus 8 ou DJ Cam, No Man’s Land evoca uma panóplia de emoções desde a melancolia ao saudosismo, mas acima de tudo leva-nos para bem longe e faz-nos sonhar.

Como disse Rui Miguel Abreu, “No Man’s Land é uma veemente vénia ao ato de filtrar o passado com os circuitos integrados de um sampler, às janelas que se podem abrir sobre a história num ecrã dominado por mais uma sequência aberta no Ableton Live”.

Nota: o primeiro álbum de Roger Plexico foi editado em vinil lilás e azul.


[Alexandre Francisco Diaphra] Diaphra’s Blackbook of the Beats [Mental Groove, 2015]

O primeiro trabalho a solo de Alexandre Francisco Diaphra, artista pluridisciplinar (poeta, rapper, músico, pedagogo) com raízes guineenses mas sediado em Lisboa, editado pela suíça Mental Groove, é uma fusão caleidoscópica e multicultural de estilos, desde o Afrobeat ao hip hop instrumental, com o rap, o spoken word e a poesia a servir de elemento vocal. Parte beat tape, parte disco de poesia falada, foi descrito como uma tentativa de procura da sua verdadeira identidade. Em que é que isso se traduz, em termos líricos?

Pois bem, as letras, recitadas por Diaphra num tom de voz cru, lento e quase deliberadamente monocórdico (que faz lembrar Kalaf sem a sensualidade ou NERVE sem o sarcasmo e a paranóia), são um misto de poesia abstracta (afinal, foi ele que cedo trocou o rap pelo slam) com narrativa autobiográfica. Ora dá por si a discorrer sobre a sua identidade, ou a tecer considerações filosóficas sobre a natureza da criação artística, como “A comunicação é estabelecida através de códigos, arquétipos, formas e cores primárias/Cego, de olhos virados para dentro/O que vejo é o que pinto/É simples o princípio que forma a base da mente do complexo/Tão simples quanto esquecido/Assim como o respirar” (d’“O Prefácio”), ou a contar uma história sobre uma visita de estudo ao Padrão dos Descobrimentos quando era criança, em que “subiu uma rampa em direcção ao céu”, ou a reflectir sobre a própria obra, em modo meta (“Sobre o tempo, esta obra é intemporal/Sobre o espaço, este tem como coordenada de origem Portugal”), ou a dizer pedaços de poesia solta como “Esta água já foi chuva, mas eu sinto-a como sol/Quem sou eu se não mais um caracol, à sombra da sola da vida?”, ou a ter “conversas com Deus, à porta do Inferno”, relatos por vezes acompanhados de mantras repetidos que funcionam como refrões (“De fora para dentro, de dentro para fora, de fora para dentro, de dentro para fora”). É óbvio que Diaphra não está preocupado em ser compreendido pelo ouvinte, porque não é esse o objetivo, não fosse Blackbook antes de mais um objecto de arte abstracta (“Tenho o meu capacete de astronauta posto, quem és tu para me dizer que não estou no espaço?”).

Diaphra não foi o primeiro a misturar spoken word com o rap. Kalaf fê-lo anos antes, mas não de forma tão abstracta e livre.

E que dizer sobre a música? Embora o hip hop seja a base, muitos dos ritmos transmutam-se, entre drones industriais e bombos fortes do coração de África, metamorfoseando-se num monstro difícil de categorizar, uma mistura de ritmos hip hop com percussão tradicional africana, especificamente um ritmo da sua Guiné-Bissau – o gumbe.

E é surpreendentemente ecléctica, cada faixa revelando uma nova influência, devendo a um novo estilo musical: “O Prefácio” é industrial, “Nota de Autor” é música étnica, “O Rosto – Maskharah” e “A Epígrafe” acusam a presença do jazz, “Transfer” remete-nos para o afrobeat, “Über” recorre a música brasileira e rock musculado.

Embora haja alguns momentos próximos do hip hop instrumental, como “A Epígrafe”, “Menino No Rio” e “Todo o Fado é Vadio”, a base não é o boom bap, mas sim uma mescla de ritmos africanos e baixos potentíssimos (o álbum resulta melhor se ouvido com subwoofer), que por vezes abafam a voz tornando-a difícil de ouvir. Aliás, sendo despido de rimas e batidas propriamente ditas, a única maneira de chamarmos a Blackbook um disco de hip hop é pelos processos de composição que adopta – nomeadamente, o uso do sampler. Embora talvez, pela liberdade e improvisação, deva mais ao free jazz e à música experimental que ao rap alternativo.

Orgulhosamente experimental, e maravilhosamente ecléctico, Diaphra’s Blackbook of the Beats é um animal único, uma criatura mitológica, um caldeirão de géneros musicais, ritmos, melodias, sons e palavras. Uma coisa é certa: nunca ouvimos nada assim.



[Rocky Marsiano] Ritinha / Djó Djó [Edição Independente, 2015]

Limitado a 125 cópias, este 7 polegadas de Rocky Marsiano é mais uma dose dupla de afrobeat, rica em grooves tropicais e ritmos quentes para dançar a noite toda, construídos a partir de samples de música de ex-colónias portuguesas (nomeadamente, o semba de Angola e o funaná de Cabo Verde), recontextualizados pela sempre prestável TR-909, caixa de ritmos popularizada no final dos 80s por produtores de house e techno em Chicago e Detroit, como Frankie Knuckles e Jeff Mills, que segue as coordenadas estéticas de Meu Kamba e abre o apetite para o segundo volume da série. Nas palavras de Rui Miguel Abreu: “Um exercício construído sobre a memória e a identidade, mas também com olhos e ouvidos plantados firmemente no futuro”. Os ritmos são tão intensos (sobretudo o de “Djó Djó”) que desta vez a ligação com o hip hop é perdida em favor de uma incursão pelo território techno/disco/house, sob a forma de um insistente bumbo que nos acompanha do princípio ao fim.

Nota para os melómanos mais curiosos: o grafismo de cada um dos lados emula o de duas editoras africanas conhecidas, a angolana Rebita (que aqui é rebaptizada de Rebeat) e a cabo-verdiana Morabeza (aqui chamada Morabeat).


[MZ Boom Bap] The Rawness EP [Vinyl Digital, 2016]

O EP de estreia de MZ Boom Bap faz jus ao seu nome: como o título sugere, é uma dose de boom bap cru e pesado da velha escola, que insere o beatmaker portuense num grupo de produtores da nova geração (ao qual também pertence Minus & MRDolly e David Bruno) que pretende homenagear a era dourada do hip hop americano, emulando o estilo de mestres nova-iorquinos dos anos 90 como DJ Premier (incluindo os seus refrões feitos de pequenos samples vocais de outros rappers, com muito scratch pelo meio), Large Professor ou Pete Rock.

A música é suave e melíflua, um boom bap destilado e puro de bombo e tarola e pouco mais, pleno de batidas pesadas e crocantes, baixos de veludo, loops melódicos de jazz, pianos melancólicos (semelhantes aos de músicos como Bill Evans, Oscar Peterson e Ahmad Jamal, que tanto foram usados na altura), saxofones nostálgicos e trompetes perdidos no tempo, tudo com a sonoridade inconfundível da MPC.

Para dar voz às suas produções, em vez de convidar veteranos, o músico natural de Amarante recrutou uma panóplia de talento fresco do underground, de registos variados, desde o estilo paranóico e parlapatão de Nemesyzz Rigby, a confiança juvenil do precoce Curtis Roach (com apenas 17 anos), de Detroit, a mensagem positiva de MC Shinobi e o battle rap intimidante do suíço Ryler Smith, ao lado dos mais experientes Awon e Phoniks.

O resultado é um álbum de jazz rap nostálgico que reflecte bom gosto e um amor à música, às melodias, ao ritmo e ao groove, semelhante a 4400 OG ou o mais recente Man With A Plan.

Nota: O lado B contém instrumentais de todas as faixas.


[Rocky Marsiano] Meu Kamba Vol. Dois [Edição Independente, 2016]

Meu Kamba Vol. Dois é a sequela a Meu Kamba, de 2014, e como o próprio nome indica, segue o modelo do primeiro volume: samples de música luso-africana do passado, cortadas, coladas e misturadas com ritmos modernos da música de dança, sempre com grande ênfase no groove e na melodia, que é introduzida logo no início das faixas e se repete insistente e viciantemente. E na percussão, a base da música de África, como nos diz um sample vocal, em “Ordem Inversa”: The drum is central to the music, and the drum is Africa. Marsiano volta a resgatar riffs de viola de gente como Bonga e Urbano de Castro, e pelo meio acrescenta o toque mais humano das vozes em crioulo e quimbundo.

A novidade desta sequela prende-se com um leque geográfico mais abrangente: se em Meu Kamba se cingiu a Moçambique, Angola e Cabo Verde, aqui partiu numa incursão por música da Guiné-Bissau, como nos confidenciou.

Este talvez seja o mais dançável de todos os seus discos, e definitivamente não há momentos de hip hop como “Cl Suave” do volume anterior. Embora o processo de corte e colagem seja o mesmo, Marsiano afastou-se definitivamente das suas raízes da velha escola e entrou aqui no mundo do afrobeat, abraçando-o sem pudores. Muitas das batidas abandonam o bombo e a tarola do boom bap e entram no universo do techno, do disco e da house. Essa afinidade com a electrónica é reforçada pela presença de sintetizadores em “Rebeata” ou “Ordem Inversa”, que evocam o afro funk nigeriano de William Oneyabor.

Quem também volta é o seu colega dos Micro Sagaz, que canta em crioulo no frenético “Kata Para”, e Bruce James em “Ue Lé Lé”, adaptado de “Mana Fatita” (a versão dos Duo Ouro Negro com Sivuca), uma das mais velhas canções do folclore angolano.

Nota: Há uma edição especial raríssima, com uma tiragem de apenas 4 exemplares (cada um deles autografado) de prensagens de teste, em vinil negro, numerados à mão, que incluem um CD do álbum de estreia de Rocky Marsiano, The Pyramid Sessions.


[Sensei D.] Vivificat [Edição Independente, 2017]

Álbum curto mas intenso, com apenas 11 faixas, Vivificat (que significa dar vida em latim) é a estreia a solo de David Alves, aka Sensei D. (depois de vários EPs, mixtapes e beat tapes em seu nome), um álbum de mensagem positiva com uma sonoridade algo sinistra.

As letras são uma mistura entre egotripping, battle rap, mensagem positiva – o que se chama de rap consciente – e crítica social (como “Era Uma Vez”, cujo alvo é a bazófia vazia das redes sociais).

Para dar voz às suas batidas o produtor de Macau convidou uma panóplia ecléctica de emcees nacionais e internacionais, com registos diferentes que ajudam a manter as coisas vivas e interessantes, desde o crioulo inquieto de Karlon em “Renasci” à suprema confiança de RealPunch e à beligerância masculina do inglês Stig of the Dump ou do americano Slaine.

Mas os momentos altos são sem dúvida as duas últimas faixas: “Brightly Night”, uma combinação perfeita entre a paranoia sarcástica de Nerve, o doce cantar de Noiserv no refrão melódico e a escrita pródiga em metáforas de João Tamura, e “Um Dia Novo”, que fecha o disco, posse cut que junta Lisboa a Porto e Nova Iorque, numa batida feita por um produtor que cresceu em Macau.

Os loops de harpa e flauta orientais aliados a trompas sinfónicas, resultam num boom bap pesado e por vezes violento (como em “Renasci”, com as rimas frenéticas em crioulo de Karlon) que nos fazem estar sem dúvida perante um álbum de rap underground.

Pelo caminho, João Tamura vai narrando a viagem desde a escuridão até à luz, ressuscitando ouvintes moribundos e guiando-os até à felicidade e à concretização dos seus sonhos.

Vivificat está pejado de samples de filmes de super-heróis (como Batman Begins, V For Vendetta e Ghost Dog), sabedoria oriental e discursos de auto-ajuda, o que demonstra claramente a influência dos seus heróis, nomeadamente MF DOOM e Wu-Tang, fazendo lembrar álbuns como Liquid Swords ou Madvillainy.

 Nota para os fãs de hip hop tuga: Fiquem atentos ao cameo de José Mariño, a anunciar que vem mais a caminho.


[Roger Plexico] Where The Sidewalk Ends [Monster Jinx, 2017]

O segundo (e inegavelmente superior) álbum de Roger Plexico continua a acompanhar a personagem enigmática nas suas viagens pelo mundo, desta vez por sítios como o “Grossinger’s Catskill Resort”, o “Guilder’s Travel Park”, o “Valle de la Luna” e o “Chateau de Noisy”, apelando ao mesmo desejo de viajar e fugir que os alemães chamam de wanderlust. Musicalmente, é mais rico, coeso e homogéneo, em termos de estilo e sonoridade.

Desta vez, a produção é muito mais doce, nostálgica e melancólica (e por vezes mesmo triste), a começar pela faixa de abertura, “Grossinger’s Catskill Resort”, um momento delicioso e delicodoce de soul romântica a fazer lembrar um dos instrumentais de O Último Tango em Mafamude. Aliás, muitas destas canções parecem a música que toca nos créditos finais de um videojogo de acção ou terror, e evocam a mesma sensação de descanso após batalhar hordas de zombies e salvar a miúda dos nossos sonhos, enquanto a cidade arde atrás de nós.

Continua o fascínio pela eletrónica, mas desta vez entra-se também na música de fusão, nomeadamente o jazz funk, e ouvem-se, além dos sintetizadores, pianos melancólicos, Rhodes de mel, guitarras plangentes e percussão natural e orgânica, saída da mão de um baterista (neste caso, Pedro Vasconcelos) e não programada numa caixa de ritmos. Samplados ou não, ouvimos aqui solos de instrumentos, e música com genuína emoção, construída com cuidado e dedicação, com a qualidade de uma banda sonora. Aliás, Where The Sidewalk Ends é muito parecido a The Mix-Up, álbum instrumental de jazz funk dos Beastie Boys, de 2007, feito sem recurso a samples, em que os rapazes tocaram todos os instrumentos.

Destaques incluem o maravilhosamente etéreo “Guilder’s Travel Park”, que começa com um sintetizador à Vangelis da banda sonora de Blade Runner, e “Jetstar Rollercoaster”, que faz lembrar uma faixa dos Cinematic Orchestra.

Quase todo o álbum é feito de bateria, baixo e teclas, um exercício minimalista que lhe dá uma propriedade cósmica e celestial, como que a flutuar no espaço, num paraíso de frequências sonoras.

Como disse Rute Correia, “Ouvir Roger Plexico é dar-lhe a mão de olhos fechados e aceitar que Slimcutz e Taseh nos guiem por caminhos inesperados, onde a contemplação parece ser a chave de um processo de revelação. (…) Um homem é as viagens que faz, dizia alguém, e Roger Plexico existe aqui onde o passeio acaba e os sonhos começam”.

Um álbum muitíssimo agradável, para se ouvir enquanto se atravessa um deserto americano, ou simplesmente enquanto se sonha.


[Orelha Negra] Orelha Negra III [Rastilho, 2017]

O terceiro álbum (também homónimo) dos Orelha Negra é mais semelhante ao segundo do que à sua estreia, com influências de electrónica e pop (especificamente, “o dos anos 80 dos sintetizadores e das produções acetinadas em estúdios com vista para o mar”) como o uso de percussão sintetizada, vozes manipuladas, teclados vintage e arpeggios celestiais à Daniel Lopatin.

Mas continuam os mesmos ingredientes de sempre: os samples de voz da MPC de Mira, o scratch furioso de Cruzfader, as teclas melífluas de João Gomes, o baixo suave de Rebelo e a percussão orgânica de Ferreira. As cordas soul, os ritmos hip hop, e o inconfundível pulsar do funk. E continuam a haver momentos mais descontraídos, melancólicos e sonhadores (talvez em maior número) ao lado de outros mais dançáveis.

Felizmente, os rapazes ainda dispõem de truques na manga, para manter as coisas interessantes, como “A Sombra”, funkalhada vibrante de fim do mundo à DJ Shadow, “OST”, momento de cut’n’paste de hip hop mais tradicional, o saxofone derretido de “Claire” e o gospel de “Ready”. E continuam a demonstrar que, à semelhança de grupos como os Avalanches, não estão a brincar quando dizem que ouvem um pouco de tudo, e são ávidos coleccionadores de música e de discos.

Sempre eclécticos e experimentais, em certas alturas parecem estar empenhados em construir canções pop bem estruturadas, com arranjos cuidados e vozes emotivas, noutras apenas batidas de hip hop à espera de um rapper, noutras jam sessions de groove insistente. Mas não perderam o uso das suas faculdades, e o amor ao que na música nos faz mover. Como disse Rui Miguel Abreu, “Tal como no terceiro ópus “mafioso” de Coppola, o que este álbum demonstra é uma capacidade renovada de prosseguir uma história, de a actualizar sem a desvirtuar, aproveitando a tarimba dos actores veteranos para segurar a dimensão dramática do todo. E neste elenco de Orelha Negra ninguém é novato: Fred, Cruz, Francisco, João e Samuel são todos mestres de pleno direito, equipados com recursos, técnicos e artísticos, muito acima da média.”

Nota: Editado em vinil branco e vermelho-sangue.


[Língua Franca] Língua Franca [Lab Fantasma / Sony Music, 2017]

O projeto luso-brasileiro Língua Franca assume-se como um disco de reflexão, usando as palavras de Rute Correia, tendo como ponto de partida o cruzamento de quatro rappers dos dois lados do Atlântico com estilos, registos e vozes diferentes, unidos pela palavra, e por uma língua em comum, a língua franca que dá título ao álbum – a língua portuguesa. Valete, filho de são-tomenses nascido em Lisboa, Capicua, do Porto, e Rael e Emicida, ambos de São Paulo.

Capicua é feminina e emocional, Emicida é mais descontraído, informal e “sujo”, Rael é positivo e canta (é ele que fornece os refrões), Valete é cool, confiante e cocky.

De que nos falam os quatro mestres de cerimónias, então? Língua Franca é sobretudo um álbum de mensagem positiva – o tal rap consciente de que tanto se tem falado ultimamente – que se divide em canções de intervenção como “(A)tensão!”, que denunciam os males do mundo e lançam luz sobre a condição humana, o hino pacifista “A Chapa é Quente”, e “Amigos”, sobre a amizade e a nostalgia pelos bons velhos tempos. Não há canções de amor, mas há “AFROdite”, bonita ode à beleza da mulher africana. E também há espaço para momentos de exibicionismo lírico e egotripping, como “Gênios Invisíveis” e “Egotrip”, com as habituais punchlines e jogos de palavras.

Sobre a diferença entre o português brasileiro e europeu, é curioso notar que as rimas brasileiras são muito mais curtas, às vezes cada verso não tendo mais de quatro palavras e dispensando verbos e adjectivos, e de um coloquialismo notável.

Sendo feito em torno do protagonismo dos quatro emcees, este é um álbum de letras, em que a produção – a cargo do português Fred Ferreira, e dos brasileiros Nave Beatz e Kassin – nunca assume papel preponderante, e varia entre um boom bap de recorte clássico com influências de reggae, pop e funk brasileiro. Momentos solarengos e funky convivem com outros mais melancólicos e downtempo, como o suave Rhodes de “(A)tensão!” e “Modo de Voo”.

O ponto alto é a última faixa, “Ela”, em que cada emcee fala sobre a sua relação com a música e o seu percurso de vida.

E embora seja um autoproclamado regresso aos tempos do rap consciente que os autores tanto defenderam, a presença de refrões cantados e a sonoridade dá ao álbum um inegável apelo comercial.


[Karlon] Passaporti [Rastilho, 2018]

Anunciado como o primeiro álbum com fusão entre música tradicional cabo-verdiana (morna, coladera, funaná) e hip hop, Passaporti, o terceiro de Karlon, fundador dos Nigga Poison e pioneiro do rap crioulo em Portugal, nasce do seu desejo de regressar às suas origens e de as homenagear. Lançado na data de falecimento de Cesária Évora e do nascimento do seu filho, Passaporti, como o nome indica, é um retrato da sua identidade e da sua história, e conta com convidados de luxo: Chullage, Valete, DJ X-Acto, Ary (dos Blasted Mechanism) e a própria mãe de Karlon, Maria do Céu.

Para enriquecer o seu relato, Karlon muniu-se de um gravador e foi recolher sons e vozes da sua terra-natal (como os da faixa homónima de abertura, em que se ouve uma festa com foguetes), testemunhos sonoros do passado, e foi conversar com “cotas”, para saber o que era o “po di terra”, e, no processo, descobrir-se a si próprio.

A música é uma mistura do boom bap típico do hip hop com a batucada do funaná, que serve de cama a uma colheita eclética de samples e instrumentos que vão desde a guitarra acústica ao cavaquinho e ao acordeão. E as letras, cantadas em crioulo, falam do país, do sofrimento do seu povo, da identidade construída com sangue, esforço e sacrifício, em cima de vozes plangentes de cantoras clássicas de Cabo Verde (como Gabriela Mendes e Maria de Barros), e estão recheadas de referências concretas à geografia e à história da nação e da sua gente. Tudo isto é comandado pela voz de Karlon, uma voz que impressiona pela sua franqueza, masculinidade, emoção e por vezes violência.

O ponto alto é sem dúvida a penúltima faixa, “Foi Sodade”, inspirado pela famosa música de Cesária Évora (cujo refrão é recriado por Maria Tavares), com participações de Chullage e Valete, que cantam sobre as vicissitudes da emigração e as saudades da terra-mãe.

Citando Mário Lopes, do Público, estamos perante uma “celebração da cultura através da música”. Ouvir Passaporti é como limpar o pó a velhos álbuns de família e fazer uma viagem ao passado, redescobrindo as nossas raízes e nós próprios.

Emocionalmente afectante, impressionantemente autobiográfico, e encharcado em melancolia e nostalgia, Passaporti é um importante documento artístico e etnográfico. Um álbum humano, honesto e comovente.


[Minus & MRDolly] Man With A Plan [Kids Alone / Circus Network, 2018]

O mais recente desta lista, lançado em Abril deste ano pela recém-nascida editora Kids Alone, do Porto, em parceria com a Circus Network, Man With A Plan é o tributo de Hugo Oliveira (aka Minus) à era dourada do hip hop nova-iorquino e a sua estética boom bap, representada por produtores como Pete Rock, Diamond D e Large Professor, feita de melífluos loops de soul e jazz cortados e mergulhados em batidas suaves e elegantes a tempo médio, e baixos de veludo.

O resultado da receita é um exercício de subtileza e bom gosto, e uma dose de jazz-rap instrumental semelhante a Petestrumentals, Shades of Blue ou Underground Vibes.

O que se enfatiza aqui é, como dissemos, “a importância do ritmo, do groove e da melodia acima de tudo, o amor à música negra, ao calor analógico em vez do frio digital, e o bom gosto e elegância como postulado maior de uma ética de trabalho”.

Man With a Plan confirma Hugo Oliveira como um músico de salutar bom gosto e um excelente produtor do rap lusitano, fazendo a ponte entre nomes mais anciãos como Sam The Kid e Rocky Marsiano e mais recentes como dB, e continuando o caminho por estes traçado.

É um gesto de amor a um tempo especial na história do hip hop (não fosse o álbum editado em vinil em vez de CD), que decerto comoverá e apelará a qualquer amante da cultura com bom gosto e discernimento, que gosta do seu boom bap de recorte mais clássico, e é avesso a sonoridades mais recentes. Para ouvir e perceber porque é que estes tempos foram apelidados de “era dourada”.

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