[TEXTO] Rui Miguel Abreu
Quando surgiram, em 2010, os Orelha Negra revolucionaram muito mais do que o que provavelmente lhes é creditado. Essa revolução não se encontrava apenas nas espiras daquele magnífico álbum – que, inteligentemente, arrancava com “Memória”, um claro programa de intenções, um manifesto estético estruturado a partir de samples que avisavam que a fusão é uma estratégia positiva, que investigar “as origens e o tradicional” é imperativo e, sobretudo, que “a memória é a coisa mais jovem” –, mas na própria proposta que o grupo avançava com a sua mera existência: ao fundacional eixo de baixo e bateria acrescentava-se o arsenal hip hop disparado pelo sampler e pelo gira-discos e em cima de tudo isso ainda se adicionava poder de invenção melódica e textural contido num rico sortido de teclados, do Hammond e do Rhodes, ao Moog e ao Arp, numa combinação de “argumentos” que por cá nunca se tinha tentado; e, depois, ainda havia que considerar a corajosa reivindicação do espaço do palco para o que, no papel pelo menos, tinha todos os contornos de projecto laboratorial. Nunca tais ideias tinham por cá sido testadas desta maneira. Revolucionários, portanto, por tudo isso.
Samuel Mira, Francisco Rebelo, DJ Cruzfader, Fred Ferreira e João Gomes provaram depois que era possível percorrer o longo caminho entre pequeno clube e palco principal de grande festival com uma música que não cedia um milímetro na sua proposta inicial de música instrumental tanto capaz de investir por caminhos regados de groove e por isso passíveis de instigar movimento em massas, como de explorar paisagens mais sentimentais e nostálgicas daquelas que pedem mais o conforto solitário dos auscultadores do que a exposição dramática dos grandes PAs dos eventos para multidões. E isto sem que nenhum deles proferisse uma palavra: nada de “boas noites”, nada de “vocês são um público magnífico”, absolutamente nada de “adoramos estar aqui, Vila Franca!”. Mensagens, só das que cabem na memória da MPC. E a memória, começaram eles por alertar logo nos primeiros momentos do primeiro álbum, “é a coisa mais jovem”.
Lançado em 2010, o álbum de estreia acrescentou ao nosso património colectivo de referências um punhado de clássicos: um “Barrio Blue” que sobre um “daqueles” breaks erguia uma banda sonora das que vêm com capas coloridas, com afros e carros e pistolas, como nos tempos da blaxploitation; um “Lord” que escorria drama e alma sobre piano staccato e guitarra de grupo de baile; e aquela monumental “M.I.R.I.A.M.”, canção que só pode ter contribuído para melhorar a nossa taxa de natalidade, que ainda hoje parece encorajar-nos a darmos “todo o nosso amor” e que mostrava Francisco Rebelo a brilhar com notas graves debitadas com insuperável classe. Perfeição absoluta.
A este primeiro álbum, servido por uma excelente capa – trabalho do enorme e saudoso Pedro Cláudio – com um conjunto de reveladoras sleevefaces, o colectivo contrapôs depois uma primeira mixtape com vários exercícios de apropriação por parte de vocalistas e MCs como Lúcia Moniz, Dino, Tamin e Filipe Gonçalves, NBC, Xeg ou Valete ou de remisturadores como Riot, Dedy Dread / Mr. Bird, Roulet e Conductor. Ou seja, os próprios Orelha Negra a entenderem que o material que criam a partir dessas memórias jovens pode ele mesmo transformar-se rapidamente em memória e em ponto de partida para outras derivas. Mais uma alínea do seu singular manifesto.
O segundo capítulo surgiu em 2012 e logo na capa – uma vez mais a cargo de Pedro Cláudio – ou, melhor, na ausência de título na capa, – estratégia que se repete em 2017 com o novo trabalho – podia adivinhar-se mais uma declaração de intenções: os Orelha Negra parecem entender cada um dos seus registos como peças de um mesmo puzzle, como marcos de um mesmo percurso, e talvez por isso não os queiram diferenciar com títulos que lhes vinquem a separação e os transformem em unidades estanques.
A música voltava então a explorar as mesmas coordenadas: a partir de um ponto de observação declaradamente hip hop, o grupo estendia o seu olhar pelas memórias impressas em vinil e captadas pelo sampler, memórias da soul, do funk e do jazz, do cançonetismo ligeiro global, da pop, memórias partidas e repartidas em loops significantes, em breaks que os movem e nos movem, tudo pontuado com certeiros scratches e servido por arranjos dinâmicos que revelavam a ambição de nos contarem histórias ao ouvido, segredos daqueles que quando partilhados formam identidade. E no meio, mais uns quantos clássicos: um “Throwback” que deixa a música fluir, com uma quebra de génio que o colectivo gere com a noção exacta de tensão e libertação; um “Segredo” que é um portento melódico rendilhado com cordas e com o sopro de uns lábios que remetem para tardes de domingo de infância de olhos postos em aventuras mostradas na caixa que mudou o mundo; ou uma urgente “Luta” que de tanta força motivacional bem que podia ser usada nos balneários pelos treinadores de futebol para deixar as equipas com força conquistadora, assim fosse tocada no volume certo!
Um ano depois do segundo capítulo desta história que continua a desenrolar-se, Os Orelha Negra lançaram a Mixtape II, com mais uma série de reinvenções / apropriações / extensões a serem carimbadas por gente tão diversa como Amp Fiddler, NGA, Da Chick, Capicua, Kika Santos ou Georgia Anne Muldrow. Mas uma peça nesse ambicioso conjunto encontrou natural destaque: com retoque de midas de Roulet sobre o original “Round4Round” e cameo especial de Heber Marques dos HMB, Regula e Sam The Kid transformaram “Solteiro” num clássico incontornável desta década que vai a caminho dos 10 milhões de plays no YouTube e que não mostra quaisquer sinais de cansaço, provocando reacções em uníssono de cada vez que se escuta num clube, deixando claro que o que para muitos pode ser cadastro – sons que falam de lençóis e de relações carnais com o sexo oposto – para estes gigantes é mero currículo, mais uma prova de que, quando querem, Sam e Dom Gula contam histórias como ninguém, cada uma delas capaz de dar um filme de tão vívidas que são as palavras.
Muitos palcos depois, alguns até emoldurados por orquestras, chegamos finalmente a 2017 e ao terceiro e homónimo capítulo discográfico de uma história ímpar, feita em crescendo. Talvez por não ser pontuada pelo carácter divisivo que as palavras podem carregar, a música dos Orelha Negra consegue provavelmente reclamar a condição de banda sonora de uma geração como muito poucas outras propostas contemporâneas ousarão. Quem já os viu e ouviu em contexto de festival sabe bem da sua invulgar capacidade de atrair públicos muito diferenciados, do rock ao hip hop, da música popular ao jazz, dos que pouco escutam para lá das playlists das maiores rádios aos que preferem investigar caminhos menos calcorreados e de a todos fornecer portas de entrada para um universo que só eles parecem povoar. Agora sabemos que, ao terceiro disco, essa matéria identitária, ampla, generosa e abrangente permanece intocada. Nada aqui mudou. Os Orelha Negra, é claro neste momento, não pretendem reinventar a roda. Apenas levá-la para mais uma luminosa volta.
Se num primeiro momento os Orelha Negra beneficiaram claramente da inspiração da descoberta – descoberta interna até, natural em quem procura perceber até que ponto podem ir as interacções entre cinco músicos que nunca antes tinham desbravado terreno juntos -, no segundo capítulo da aventura a aposta parece ter recaído sobre a decisão de afinar a postura, refinar o olhar, injectar sofisticação nos arranjos, enfim, de elevar a fasquia. O que provavelmente poderá justificar que o intervalo de dois anos entre o primeiro e o segundo momento do percurso discográfico de Orelha Negra tenha agora sido dobrado para quatro anos é o facto do colectivo ter entendido que tem em mãos uma fórmula e que as fórmulas geram repetição e que por muito que o hip hop goste de loops, dessa eterna repetição, enquanto criadores saudavelmente inquietos nenhum dos elementos do quinteto quer simplesmente voltar a percorrer um caminho já trilhado. A diferença, agora, parece estar na abordagem ao estúdio: ouvindo este terceiro álbum, tem-se a sensação de que os Orelha Negra que sempre inauguraram novos projectos mostrando-os e testando-os em palco – e tal estratégia manteve-se neste novo volume – desta vez acrescentaram ao processo um trabalho mais demorado no estúdio, uma atenção mais microscópica aos detalhes e um controle de qualidade técnica mais rigoroso. O palco pode até aqui ter fornecido sempre a faísca criativa inicial, mas desta vez o estúdio foi onde o grupo procurou reencontrar-se.
As coordenadas exploradas no novo álbum não se afastam do mapa estético já definido anteriormente, mas talvez se foquem um pouco mais numa era, a dos anos 80 dos sintetizadores e das produções acetinadas em estúdios com vista para o mar. Rebelo, Cruz, Mira, Ferreira e Gomes são coleccionadores sedentos de discos – de hip hop, claro, de todas as tonalidades da chamada música negra, obviamente, do Brasil e da África, como não podia deixar de ser, do passado e do presente, compreensivelmente, do fado e da electrónica, do rock mais ou menos psicadélico, da pop mais passável, dos experimentalismos mais obtusos, dos êxitos que só passam na rádio aos que só se ouvem no YouTube, da América dos Tops e dos subterrâneos, das lendas incontestadas e dos mitos ainda em construção. Juntos, estes cinco, terão provavelmente os ouvidos de alcance mais amplo do nosso panorama musical actual: fruto natural derivado do facto de, e só neste último ano, conduzirem homenagens a Violeta Parra, de tocarem em eventos do Festival da Canção, de destilarem funk no Cais Sodré, funaná no Intendente, fado nas mais reputadas salas internacionais, de acompanharem vozes do Brasil a Angola, de subirem a palco com promessas e lendas hip hop… Currículos gigantes. E tudo isso se sente ao escutar as novas malhas: experiência; tarimba; bagagem; cultura, muita cultura. E isso pressionou-os no bom sentido a demorarem-se no estúdio, com instrumentos de qualidade, gravando-os com elevadíssima definição, com microfones daqueles que se guardam no cofre, com precisão de quem sabe que todos os seus gestos vão ser medidos. Sobretudo por eles mesmos.
O novo álbum, como qualquer rio, começa na “Nascente”, exercício que remete para as luxuriantes texturas de fusão dos anos 80, com os teclados de João Gomes e os samples de voz resgatados ao pó por Samuel Mira a entrelaçarem-se como se sempre tivessem coabitado no mesmo arranjo. E essa é uma receita recorrente: vozes significantes que servem quase para expor o nervo dramático de cada composição, conferindo uma dimensão universalista ao som do grupo por serem quase sempre em inglês.
O pulsar funk domina boa parte do material aqui apresentado. Temas como “A Sombra”, “Duas Caras”, “OST”, “Skylab” ou “Última Volta” vivem desse groove franco que todos entendem e que a todos faz mover, com diferentes roupagens, quebras de dramatismo cinemático, detalhes orquestrais de profundo bom gosto e synths com a vintage certa para cada momento. Depois há temas que se aproximam muito de um sentir hip hop e que parecem clamar por MCs que os levem para outras paragens, caso dos dois momentos que rematam o álbum, “Última Volta” e “Parte de Mim” que, a manter-se a simetria discográfica que o grupo tem construído, hão-de certamente merecer rimas quando chegar o momento de erguer a mixtape número 3. Há outros “modos”: “Claire” ou “Santa Ela” derivam por terrenos soul mais tranquilos, com muitas cordas, pontilhados de harpa e uma rigorosa atenção aos detalhes em termos de gestão de texturas e frequências. Há caixas de ritmos que também ajudam a ancorar algumas passagens numa ideia de época mais concreta – a primeira metade dos anos 80 de ferramentas como a LinnDrum que suportou tantos êxitos pop – como a que se ouve na segunda parte de “Apolo 70” ou a que pontua “Claire”. E há, como não podia deixar de ser, detalhes que indicam que mesmo que a memória seja a coisa mais jovem não há mal nenhum em recolher estímulos no presente que estetas como Kaytranada ou BadBadNotGood vão desenhando, como se sente, por exemplo, em “Soul2”.
Por estas razões, e apesar de se manterem coordenadas e de se seguir uma fórmula já aperfeiçoada, este não será o melhor dos três momentos da trilogia para se entrar de rompante no universo Orelha Negra. Tal como a terceira parte de O Padrinho não será a melhor abordagem à saga dos Corleone filmada por Francis Ford Coppola. Como no caso do tríptico sobre a Máfia do realizador norte-americano, o segundo título será o melhor, mas caso queiram mesmo seguir a evolução da história, nada como começar pelo princípio sabendo que ao chegarem a este registo de 2017 já terão o “olhar” treinado pelos dois capítulos anteriores, os tais em que se avançou uma proposta dramática, se estabeleceram os parâmetros da acção e se deu espaço ao desenrolar da trama, com o pináculo a surgir no segundo capítulo, precisamente aquele em que passado e presente se conjugavam de forma perfeita, com as memórias a influenciarem o que se viria depois.
Claro que os Orelha Negra de 2017 não representam o final da história e não há por aqui o equivalente à (atenção a eventual spoiler caso nunca tenham demorado o olhar na saga tripartida dos Corleone) tragédia operática encenada nas escadas do Teatro Massimo de Palermo, na Sicília. Pelo contrário: a existir aqui uma continuação da narrativa, então podemos garantir que “Parte de Mim”, o derradeiro tema do novo álbum, deixa tudo em aberto, com as portas do futuro escancaradas. Tal como no terceiro ópus “mafioso” de Coppola, o que este álbum demonstra é uma capacidade renovada de prosseguir uma história, de a actualizar sem a desvirtuar, aproveitando a tarimba dos actores veteranos para segurar a dimensão dramática do todo. E neste elenco de Orelha Negra ninguém é novato: Fred, Cruz, Francisco, João e Samuel são todos mestres de pleno direito, equipados com recursos, técnicos e artísticos, muito acima da média. Todos sabem também já não beneficiar da excitação própria de quem desbrava novo território, de quem ensaia novas soluções e avança sem medos por terrenos pouco iluminados. E essa será a única razão que levará o terceiro título desta saga a quedar-se um ou dois furos abaixo dos anteriores. Mas as “lentes” das câmaras são melhores, o traquejo dos actores é muito mais seguro, o tempo disponível para a “montagem” muito maior, o orçamento para a direcção artística, para a fotografia, para a produção muito mais folgado. Certo, certo, é que estes três registos fazem pleno sentido quando dispostos lado a lado, que todos ajudam uma história mais ampla a completar-se.
Finalmente, como se pode agora comprovar no palco principal do Iminente, Orelha Negra é uma revolução cumprida e actualizada: a nova linguagem que nos sugeriram em 2010 foi amplamente adoptada e serve agora o propósito nobre de comunicar num renovado contexto em que já não são só as guitarras que mandam, em que nem todas as mensagens carecem de discursos poéticos apoiados na língua, em que a memória vingou, enfim, como a mais jovem das coisas, porque nos segura no presente e nos projecta no futuro. Essa nova realidade nasceu em boa parte da revolução que eles mesmos criaram e alimentaram. Em boa hora.