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Publicado a: 24/11/2017

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[TEXTO] Diogo Pereira 

O hip hop americano do início dos anos 90 foi marcado por uma dicotomia: enquanto o rap nova-iorquino era rico em propostas de rap alternativo, desde De La Soul até A Tribe Called Quest e Digable Planets, a Costa Oeste estava dominada pelo gangsta rap belicista e o seu G-Funk. Entram em cena os The Pharcyde, para oferecer o que estava a faltar.

Embora oriundos de South Central, uma zona conhecida pela sua violência entre gangs (aliás, o álbum foi lançado seis meses após os motins de LA), a sua vivência era bem diferente: Imani, Slimkid e Bootie Brown eram amigos de liceu e membros de uma trupe de breakdance que atuava em discotecas locais (e chegou a participar na série de sketches da FOX In Living Color), aos quais se juntaram Fatlip e J-Swift (este último filho prodígio de um músico de salsa afro-cubano), que conheceram num programa extra-curricular centrado nas artes intitulado South Central Unit.

Os cinco contaram com a ajuda de um professor de música de liceu ex-produtor de R&B, Reggie Andrews (uma espécie de Mr. Holland de South Central, que tutelou as carreiras de nomes como Thundercat e Kamasi Washington e fez arranjos de cordas para Rick James), que os ajudou a entrar no mundo da música, e os ensinou a editar um disco, tendo assistido às sessões de gravação. Usando os lucros dos direitos das músicas que ajudou a produzir, construiu um estúdio caseiro com um arquivo de mais de 10,000 discos de jazz, funk, rock e soul, que J-Swift viria a vasculhar para construir a sonoridade do seu álbum de estreia.

Foi aí, em 1991, que os cinco gravaram a primeira maquete, que incluiu “Officer”, “Passin’ Me By” e uma versão crua de “Ya Mama”, trio de faixas que anunciava já com orgulho e distinção a estética do grupo: o seu fascínio pelo jazz, o seu sentido de humor pueril e a sua tendência para a melancolia autodepreciativa no que toca ao amor e ao romance. Ingredientes que captaram o ouvido de Mike Ross, dono da Delicious Vinyl (editora californiana responsável por clássicos do pop rap como “Bust A Move” de Young MC e “Wild Thing” de Tone Loc), que os contratou sem hesitações, dando-lhes completo controlo criativo sobre o seu álbum de estreia.

Pouco tempo depois o grupo teve a sua primeira participação notável, na faixa “Soul Flower” dos Brand New Heavies, que haveriam de remisturar para o seu primeiro álbum, Bizarre Ride II The Pharcyde, lançado a 24 de Novembro de 1992.

A viagem do título é, como o nome indica, bizarra, e leva-nos até um mundo longínquo e estranho do hip hop. Um mundo onde a violência e a seriedade estão ausentes, e o humor é rei.

Fatlip e companhia não se levam tanto a sério como os seus comparsas do gangsta rap, mas isso não lhes retira qualidade nem mérito: mostram desembaraço, fluidez e destreza com a língua e revelam um sentido de humor e de autocrítica que falta a muitos rappers.

Aliás, o seu tom é radicalmente diferente da atitude hostil e exibicionista do gangsta rap: em vez da arrogância e agressividade, escolhem a modéstia, a auto depreciação e o humor, e a música e as letras só têm a ganhar com isso.

 



Em vez da conquista violenta de território, da eliminação de adversários ou da venda de droga, os quatro rapazes de LA falam-nos de desgostos amorosos, das suas proezas sexuais, do seu medo da polícia e da geral procura da felicidade, num tom humilde e humano, que apela à nossa empatia (é impossível não gostar da honestidade de quem diz “Can’t go to jail ‘cause it’s wack/What would happen to my girl and my record contract?” ou “A dame is supposed to claim ya even if you drive a Pinto”).

 


“We’re serious about certain things, but everything is basically a joke. We live through hard shit, but we can laugh about it.”


Estas foram as palavras de Tre Hardson, aka Slimkid3, à Rolling Stone em 1993, e que espelham bem a atitude do grupo: vencer as agruras da vida com a arma do riso. E foi isso mesmo que fizeram.

Os skits são outra das marcas da presença do humor ao longo do álbum, como também é o uso de samples de comediantes, a profusão de trocadilhos e a adaptação de letras de canções infantis.

Muitas vezes esse sentido de humor é juvenil, gratuito e muito pouco sofisticado (e por vezes até escatológico e obsceno), mas revela imaginação e honestidade, e é esse o seu apelo: às vezes é suposto estarmos a ouvir alunos de liceu a trocarem rimas no recreio. E também pode ser mordaz e inteligente, como em “It’s Jiggaboo Time”, uma denúncia dos sacrifícios que se tem de fazer para vender discos (“You’re rappin’ for the white man/It’s jiggaboo time”), e “4 Better or 4 Worse”, em que Fatlip faz troça dos rappers moralistas, mostrando que há mais nos rapazes do que salta à primeira vista. E claro que não podia faltar a posse cut repleta de versos de battle (“I’m That Type of Nigga”), tal como a ode à marijuana (“Pack The Pipe”).

Slimkid, Bootie Brown, Imani e Fatlip não são, certamente, os típicos rappers, e é precisamente aí que reside o seu carisma: não são figuras imponentes ou colossos de masculinidade, mas apenas quatro magricelas pedrados de vinte anos com alma de poeta, espírito de boémio e atitude de comediante, que se recusam a crescer e só querem ser felizes, procurar amor, e pelo meio fumar muita erva. Não são os bullies, são os palhaços da turma (a Rolling Stone chamou-lhes “a pack of class clowns set loose in a studio”), e não têm medo de expor os seus infortúnios e vulnerabilidades. Muitas das suas peripécias são tragicómicas, e contadas, apropriadamente, em tom melancómico. E por isso, Bizarre Ride II The Pharcyde consegue a proeza de entreter e satisfazer emocionalmente como muito poucos álbuns (Ernest Hardy chamou-lhe “one of the most joyously heartbreaking albums ever”).

As vozes também os acusam, sendo que nenhum dos quatro tem o tom grave de um Dr. Dre ou Big Daddy Kane. Bootie Brown é o mais agudo (aliás, é quase feminino), e Slimkid o mais mavioso dos quatro, e o que dá mais soul às músicas. A sua prestação a solo em “Otha Fish” é brilhante e inesquecível, e faz dela uma das melhores e mais originais canções de amor de sempre, não só do hip hop. Nenhum deles tem medo de chegar às frequências altas e de por vezes até mesmo cantar.

Quanto à produção, J-Swift mantém os ritmos a tempo médio e as melodias simples e viciantes, o que faz de Bizarre Ride uma escuta muitíssimo agradável. Vai buscar ao post-bop, à soul e ao jazz-funk dos 70s loops agradáveis de piano, trompete e saxofone (sampla Donald Byrd, Herbie Mann, Ramsey Lewis, Lou Donaldson, Stanley Cowell e Grover Washington, Jr., bem como James Brown, Quincy Jones e Sly & The Family Stone) que deslizam suavemente por cima das suas batidas boom bap de recorte clássico.

Em vez dos sintetizadores e baixos do G-Funk, o que ouvimos aqui é muito mais orgânico e natural, semelhante à sonoridade jazz-rap da Costa Este, a de produtores como Primo, Pete Rock ou Large Professor. Ou o próprio J Dilla, que viria a colaborar com o grupo na sequela, Labcabincalifornia.

O jazz é a presença musical por excelência aqui (facto que pode ser comprovado consultando a lista de samples do álbum), a começar pelo interlúdio de abertura, a fazer lembrar uma das experiências fusionistas de Robert Glasper, que introduz a clássica combinação jazz-rap que iremos ouvir ao longo de todo o álbum.

“Otha Fish” e “Passin’ Me By” são os momentos altos, exemplificadores da atitude e da sonoridade do grupo: letras humorísticas e quase cantadas, sem um pingo de agressividade ou más intenções, sob uma cama de loops de jazz solarengos. “Passin’ Me By” fala da perda de oportunidades amorosas em virtude da timidez, e “Otha Fish” é uma palmada nas costas para toda a gente que já sofreu um desgosto amoroso, enquanto “Officer” fala dos medos de ser abordado pela polícia num claro piscar-de-olhos aos Public Enemy.

“Oh Shit”, conduzido por um loop de piano de Donald Byrd de pitch reduzido de forma a parecer um genérico de um desenho animado antigo, é uma divertida comédia de enganos sobre passeios pelas fronteiras mais extremas da fauna feminina: Slimkid é apanhado no meio de um sonho erótico pela turma inteira, Imani acaba seduzido por uma MILF, enquanto Fatlip se envolve com uma travesti.

 



“Ya Mama” é uma hilariante compilação de piadas tipo “a tua mãe” (a melhor é sem dúvida “Ya mama’s got a peg leg with a kickstand”), oferecendo uma abordagem diferente e mais lúdica ao típico battle rap. Aliás, o tom aqui é sem dúvida cartoonesco, como o atesta a própria capa, que faz referência tanto a Fat Albert and the Cosby Kids como ao grafismo tresloucado de Overton Loyd para Motor Booty Affair e Funkentelechy Vs. The Placebo Syndrome.

 



Mas os melhores momentos são reservados para o fim: “Passin’ Me By” e “Otha Fish” falam-nos das dores do amor não-correspondido, a primeira em cima do clássico órgão de “Summer in the City” de Quincy Jones e do break de Skull Snaps, a segunda em cima do trompete e flauta de Herbie Mann. Ambas são grandes canções de amor, ternas e comoventes pela sua sinceridade, e contêm as melhores batidas e as melhores letras. São duas das mais carismáticas e acarinhadas canções de amor do hip hop, porque abandonam a pieguice sacarina e delicodoce e o prazer licencioso do engate a favor da honestidade embaraçosa patente na admissão dos fracassos amorosos dos seus protagonistas, gesto que é de admirar pela originalidade.

 




O álbum fecha com chave de ouro, com “Return of the B-Boy”, uma homenagem à era dourada do hip hop e aos tempos de breakdancing do grupo, com samples de LL Cool J e Slick Rick e rimas de festa a fazer lembrar Run DMC.

Pelas suas melodias acessíveis, refrões cantáveis e letras leves, Bizarre Ride soa a álbum pop, e pode ser visto como marca da ascensão do rap a estatuto de música popular. Esse é um dos seus inegáveis méritos, embora os quatro nunca tenham chegado ao estrelato (não por falta de telediscos).

O quarteto de Los Angeles trouxe-nos uma combinação inovadora de ingredientes que fizeram do seu álbum de estreia um clássico: humor, emoção e irreverência. Combinaram a leviandade do humor com sentimento genuíno, de uma forma nunca antes vista no hip hop.

Descrito na altura como uma lufada de ar fresco na cena hip hop (sobretudo o da Costa Oeste), evitou a sonoridade, o conteúdo lírico e a atitude do gangsta rap (e as suas permanentes, como afirma Fatlip com graça em “Soul Flower” – “Yes I come from Callie no I do not have a perm”), deliciando-se no humor e no jazz, e ajudou a estabelecer um novo movimento de rap alternativo na Califórnia, muito semelhante ao seu homólogo oriental.

Bizarre Ride II The Pharcyde surgiu em pleno auge do gangsta rap, o que explica o seu sucesso: foi a resposta da Costa Oeste à violência do rap hardcore, e ao movimento do rap alternativo que emergiu em Nova Iorque no início dos anos noventa, em grupos como os De La Soul, os Digable Planets ou os A Tribe Called Quest. Musicalmente, é muito semelhante a álbuns como 3 Feet High and Rising, Reachin’ (A New Refutation of Time and Space), Midnight Marauders ou A Wolf in Sheep’s Clothing.

Juntamente com o seu “álbum irmão” 93 ’Til Infinity, dos Souls of Mischief, Bizarre Ride II The Pharcyde é não apenas um dos melhores álbuns de hip hop de todos os tempos, mas um marco na história do rap americano, uma afirmação de que o rap pacífico, lúdico e criativo tinha vindo para ficar em ambas as costas do continente. E ficou, com o nascer de um movimento de hip hop alternativo na Califórnia, com tanto mérito como o nova-iorquino, mais tarde cimentado pela emergência de grupos como os Jurassic 5 e os Hieroglyphics.

Bizarre Ride tem todos os ingredientes para ser um bom álbum de rap: humor, imaginação, originalidade, boas letras e boas batidas. É divertido e irreverente, comovente e sentido, óptimo para quem procura graça e emoção em vez de barbaridade no rap que ouve. Para quem busca algo sério ou intenso, como histórias de violência suburbana, ficará desiludido. Mas se for encarado e aceite nestes termos, pode ser uma bela obra de arte.

 


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