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Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 11/11/2023

Na crista da onda vanguardista.

Guimarães Jazz’23 — Dia 2: mestria de Aaron Parks e companhia

Fotografia: Paulo Pacheco
Publicado a: 11/11/2023

Ao frio juntou-se a chuva em Guimarães e o quadro parece que fica mais romântico, mesmo a condizer com as composições idílicas de Aaron Parks, pianista de Seattle, Washington, que regressou ontem ao festival vimaranense após ter marcado presença num par de edições anteriores enquanto integrante de projectos liderados por outros músicos — em 2014 a acompanhar Terence Blanchard e em 2015 ao lado de James Farm. A organização aponta ao amadurecimento de Parks como indicador de que estava mais do que na hora deste se apresentar em nome próprio ao leme de um quarteto em que não constam quaisquer instrumentos electrificados, componente que fez sempre parte da sua música, desde a estreia em disco enquanto bandleader materializada em Invisible Cinema (Blue Note, 2008) até ao seu mais recente Little Big II: Dreams of a Mechanical Man (Ropeadope, 2020). Numa carreira que já leva mais de duas décadas de actividade, passou por outros catálogos como a ECM ou a Nonesuch e tocou com gente tão distinta desde Terri Lyne Carrington e Ambrose Akinmusire a Kurt Rosenwinkel ou Joshua Redman.

É caso para dizer que a sua vinda até ao Guimarães Jazz era mais do que justificada e, no Grande Auditório Francisca Abreu do Centro Cultural Vila Flor, fez questão de o provar com uma performance que fez todos os presentes sonharem acordados. Foi como raios de sol a perfurar nuvens num céu mais tingido de azul do que de branco e entre chuviscos daqueles que não afugentam ninguém, de preferência com um arco-íris algures no horizonte. A música de Aaron Parks é moderna e pouco se prende com tradicionalismos, ao contrário da big band que tinha inaugurado o certame na noite anterior. Com a dose certa de fusão, o seu som está já bastante contagiado pelo que se faz escutar da vanguarda europeia e o pianista será certamente espectador atento do que se vai fazendo deste lado do Atlântico. Tanto que até se tenciona mudar para cá: numa das poucas intervenções que fez ao microfone, soltou um “boa noite” e um “obrigado”, prometendo que se vai esforçar para dominar ainda mais o português, já que os seus planos a curto prazo incluem passar a ter Portugal na sua morada, tal como muitos outros norte-americano o têm feito em anos recentes. E ter um “vizinho” destes será sempre bom sinal, já que se pode muito bem começar a perspectivar novos concertos de Parks em solo nacional e, porque não, imaginá-lo a entrosar-se com os músicos desta nossa cada vez mais efervescente cena jazzística.

Deambulando por entre composições originais que na sua maioria ainda estão por conhecer edições discográficas, das mais espaciais e contemplativas a outras de pulso frenético e recheadas de swing, fez questão de revelar ao público os títulos de cada uma delas e, em alguns casos, ofereceu algum contexto sobre as mesmas. “Parks Lope”, por exemplo, é a única que alguma vez intitulou com parte do seu próprio nome — “Agora que já cheguei aos 40 anos, creio que já posso,” brincou — e relembra-o do seu modo “engraçado” de andar. Outra delas tem o nome da sua mulher, Maria José, numa óbvia dedicatória àquela com quem divide a vida — “Infelizmente para vocês, esta canção não consegue ser tão bela quanto ela,” disse numa outra tirada. Ornette Coleman e Alice Coltrane foram alguns dos seus heróis que, à vez, homenageou através de um par de outras canções. Já nos diálogos ao piano, mostrou total fluência na língua do instrumento, uma técnica elevadíssima apenas ao alcance dos mais geeks da coisa e um sentido bem apurado para intervir de forma certeira, seja em termos do que está escrito na pauta ou da música que lhe sai naturalmente da ponta de cada um dos dez dedos. Vendo bem as coisas, Parks parece que nem improvisa, mas sim que compõem mentalmente o que toca ali no momento, tanto que é possível escutá-lo a cantar relativamente alto cada nota milésimos de segundo antes de pressionar a devida tecla, tal é o entusiasmo e o à vontade que tem em fazer o que faz.

Secundado por músicos não menos fantásticos, a sua performance contou com inputs vindos de uma bateria, um contrabaixo e um saxofone tenor. Ben Solomon, o homem do sopro de metal, foi entrando e saindo do foco consoante as suas melodias eram ou não precisas, mas sempre que interagiu, conseguiu arrancar aplausos da plateia. Nas cordas esticadas sobre a imponente estrutura de madeira esteve Kanoa Mendenhall, que foi trocando entre um par de registos diferentes — ora metódica e certeira que nem um metrónomo, ora mais indomável a aplicar dedilhares frenéticos cujos pulsares nos massajam os tímpanos. Depois há RJ Miller, talvez o mais vistoso dos 3, que recorre a um baterismo cheio de truques e manhas que lhe permite aplicar infindáveis nuances a cada malha, indo dos toques mais subtis às batucadas mais vincadas que fazem impor a sua lei em certos momentos de êxtase.

Para este quarteto de Aaron Parks, foi chegar, ver e vencer, agarrando por completo o público nas suas mãos perante uma prestação imaculada, que vale ainda mais tendo em conta que esta foi a primeira vez de sempre que estes quatro instrumentistas pisaram um mesmo palco juntos — o pianista de Seattle já tinha tocado com cada um deles em diferentes contextos e a data em Guimarães foi a primeira em conjunto de uma digressão que há-de prosseguir por outras paragens. Depois de um forte aplauso, os músicos saíram do palco por breves segundos e voltaram para um encore, com Parks a aproveitar o tempo extra para nos recordar que vivemos tempos conturbados e que temos de cuidar uns dos outros. Após a mensagem, escolheu “Peace”, de Horace Silver, como derradeiro momento de um concerto que teve tudo para ser um dos melhores da presente edição do Guimarães Jazz.


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