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Texto: ReB Team
Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 01/03/2024

De feridas expostas.

Faixa-a-faixa: Pisaduras, de Hélio Morais, explicado pelo próprio

Texto: ReB Team
Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 01/03/2024

Faz hoje precisamente uma semana desde que Hélio Morais celebrou o lançamento do seu primeiro álbum a solo. Pisaduras é um importante marco na carreira de um dos músicos mais activos nas últimas duas décadas da música portuguesa, que se assume enquanto multi-instrumentista (tendo a bateria como principal ferramenta de trabalho) e, agora, também como cantautor.

Com provas dadas em grupos como Linda Martini ou PAUS e em projectos de outros artistas — desde Manuel Fúria a Cabrita —, Hélio Morais atira-se a um disco em nome próprio para nos versar as suas Pisaduras. São 8 faixas que lhe serviram de máquina do tempo para recuar ao passado e exorcizar alguns dos demónios que lhe deixaram marcas para o presente. O tom é, por isso, nu e cru, mas esta não é uma viagem que o artista faz sozinho, contando com uns quantos ombros amigos para o ajudarem a materializar todo esse processo de cura num LP — são eles Benke Ferraz, LUMANZIN, Toca Ogan, Djalma Rodrigues, Guilherme Kastrup, ÀIYÉ, Cláudia Guerreiro, Filho da Mãe, LARIE, Miguel Ferrador, Rita Onofre e Edgar Valente.

Num comunicado, Morais fala-nos um pouco sobre como estas feridas da alma se foram manifestando e do que precisou de fazer para as conseguir sarar:

“Enquanto iam mudando de tom e cor, demorei-me a olhar para elas, a entender de onde vieram, porque vieram, como as sentia, o que significavam e como perdurariam na carne, ou não, mesmo depois de desaparecerem da pele. Durante o processo, partilhei-as. Ouvir-me em voz alta, ter quem me ouvisse, acreditar num sentido de comunidade que escuta, acolhe, cuida e cura, foi o que me fez poder cantá-las agora. Hoje canto-as porque tive a sorte de ter crescido rodeado de ouvidos atentos. Tomar consciência delas, foi tomar consciência de mim, saber que não me poderia tornar seu refém. Não lhes fugir não significou romantizá-las. Pelo contrário. Assinalá-las, questioná-las e partilhá-las, foi o que me permitiu deixá-las para trás.”

Em exclusivo ao Rimas e Batidas, o autor de Pisaduras mergulha em cada um dos 8 temas que compõem este breve mas profundo alinhamento.


[“Nem lua, nem marés”]

“Esta música fala sobre a tomada de consciência de que me vejo confrontado com algo muito maior que eu e de difícil compreensão e acolhimento. Fala sobre esse sentimento de tristeza profunda e impotência perante determinada situação.”


[“Pra que chegue ao fim”]

“Fala sobre as memórias de uma criança, na casa dos seus pais. Um lugar pouco seguro, onde a discussão e a gritaria eram a tónica. A música acaba por narrar a memória de uma cena de violência.”


[“Voltas e voltas e voltas”]

“‘Voltas e voltas e voltas’ fala sobre uma tentativa de escapar de um lugar onde ninguém deveria ter estado. Mas essa tentativa acaba por resultar numa volta, porque, uma vez longe desse lugar, não há o reconhecimento de um porto seguro; só solidão e medo. Então acaba por se voltar ao mesmo lugar.”


[“Olhos salgados”]

“A primeira música que escrevi para o disco. Fala sobre uma pessoa que consegue, finalmente, fugir duma situação de violência, mas com muita culpa por sentir que abandonou o filho. Esta música tem como propósito explicar que está tudo bem, que há uma compreensão do porquê da fuga e uma consciência de que não havia outra forma de se salvar.”


[“Sonhei coisa proibida”]

“Quando somos confrontados com uma situação de vida desesperante, causada por alguém de quem não conseguimos escapar, não é incomum pensar-se algo como ‘seria tão mais fácil esta pessoa desaparecer’. A exposição à violência e o medo que daí advém, trazem, por vezes esta fantasia com um lugar onde isso não exista. E isso só é possível sem a pessoa causadora de tudo isso. Mas claro que tudo tem muitas camadas. Então a letra acaba sendo uma espécie de morte emocional dessa figura agressora — ‘Não te quis tirar eu a vida, fui sangrar o meu coração. Foste vivo cá dentro de mim e agora és poça no chão’.”


[“Tábuas, pregos e flores”]

“Esta letra acaba por ser um funeral de um passado (‘Tenho à vista um caixão espelhado. O meu duplicado vai a enterrar. Deito flores sobre o meu passado. Choro emocionado por poder sonhar’). Um funeral possível por se ter tido a possibilidade de chegar a outro lugar, mais feliz. Nesta música canta-se e celebra-se a vida; estar vivo. É um funeral feliz.”


[“Almoço de domingo”]

“Nesta canção canto sobre as memórias que tenho, enquanto filho de pais angolanos, dos almoços de domingo em casa da minha bisavó, no Pendão/Queluz. Almoços nos quais a minha família materna se juntava para conviver durante todo o dia, à volta da mesa e com muita música. Pra mim, tudo aquilo era fascinante. Não vivia com a minha mãe, então tinha poucas oportunidades para estar com este lado da família. Comia-se muamba, dançava-se Bonga, Paulo Flores, Tubarões, Bana e outros. Eu queria muito fazer parte de tudo aquilo, mas, ao mesmo tempo, era muito tímido. Eram, no entanto, dias felizes. Independentemente das vidas de cada uma daquelas pessoas, com mais ou menos dificuldades, ali era sobre partilha e celebração.”


[“Deixa o resto”]

“Quando estava terminando o disco, não sabia se quereria fazer outro. Este foi muito pessoal, muito questionamento, muita terapia, muito revisitar de coisas que nem me lembrava (ou reprimia). Então, a verdade é que quis terminar esse disco com um ponto de interrogação (‘Espero ver-vos a todes de pé, quando sumir na maré’). Gosto dessa ideia de saber que todos estão bem, antes de partir, sendo que não se sabe se essa partida é um adeus ou um até já.”


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