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Fotografia: Deck97
Publicado a: 09/02/2021

Expressar o interior sem limitações de qualquer tipo.

Each1: “As palavras, às vezes, afastam-te do significado real. Há coisas que só se sentem”

Fotografia: Deck97
Publicado a: 09/02/2021

Each1, metade dos Enigmacru, é um player conhecido no hip hop da Invicta. Parte do colectivo 6Sentido, é colaborador regular de Johnny Virtus, Minus & MRDolly, ActivaSom, para enumerar alguns. Contudo, nunca o ouvimos assim, em modo autobiográfico e focado nos seus Limites, o seu primeiro lançamento a solo.

Como nos revela nesta entrevista, a estreia põe a mira nos diversos limites do MC e produtor. A corda mental de Rui Peres estica até quase romper com diversas dificuldades, reflectindo-se numa escrita crua e arguta, que tanto divaga em linhas de raciocínio complexas (“Freestyle”, “Tal Como Tu”) como vai directa ao assunto sem papas na língua (“Ansiedade”, “Agimos Muito Rápido”).

A caneta é acompanhada pela produção de Johnny Virtus, que também assume a direcção musical, Minus & MRDolly, Mundo Segundo, Beiro & Pedra, Paulinho e Reis, a par das participações de Chek1, Tácio, DJ NelAssassin, DJ Crava, entre outros.

“Assumo o rap do Porto e não o tuga”, diz-nos em “Freestyle”. Venham conhecer mais um caso iluminado desta escola.



Quais são os teus Limites? Ou melhor, quais são os limites que abordas no álbum?

São todos os meus limites. Cada uma das faixas foca-se num limite diferente, como a minha forma de abordar a música, de lidar com a ansiedade, com o facto de ser explorado no meu trabalho, com questões familiares que fui atravessando. Na “Agimos Muito Rápido”, mostramos que não temos limites, que os ultrapassamos. “A Subvalorização do Silêncio em Palavras” refere-se ao limite daquilo que conseguimos dizer com palavras. Há certas coisas que não são para serem entendidas assim. No geral, refiro-me os limites que tive que lidar e que resumem os últimos quatro anos da minha vida.

Alguns desses limites já foram experimentados por muitos de nós. Por exemplo, ansiedade e sofrimento mental. “Parece mais grave — sou eu que exagero/ O peito não contrai – sou eu que o aperto (…) Sozinho eu controlo, só tou comigo/ Só passa dum modo, é quando eu respiro”. A letra da “Ansiedade” é um dos exemplos recentes mais viscerais que li sobre este problema. É uma necessidade?

É, sim. Acho que sempre tive a necessidade para falar de mim próprio. Contudo, só a partir de certa altura é que ganhei essa consciência. Acredito que quanto mais transparente for e disser as coisas como elas são, é mais provável que esteja a trabalhar para um bem comum. Se não tiver problemas em expressar o meu interior e o que me incomoda, se calhar estou a fazer com que outras pessoas também não tenham esse problema. Estou a quebrar barreiras, e acredito que esse papel tem que ser desempenhado. Nós estamos distantes dos nossos sentimentos, emoções e questões. São elementos vitais e das características mais humanas que temos.

Essa vontade também se relaciona com a escola do Porto, de onde tu e a 6Sentido fazem parte, que tem uma predisposição para falar sobre a vida interior. No entanto, isso não é tão usual no hip hop nacional. Porque achas que isso acontece?

De uma forma geral, o rap do Porto sempre foi mais introspectivo. Na nossa crew levamos um lado pessoal a essa introspecção, dizemos as cenas como as sentimos. Vimos de uma escola de rap introspectivo, e acrescentamos um lado mais cru e biográfico. Acho que isso acontece connosco porque nos questionamos sobre nós próprios e o que nos rodeia, se tomamos as decisões correctas e damos tanta importância a estes aspectos, o que acaba por assentar na música que fazemos. Mas isto é com a minha comunidade, com o resto da escola do Porto não sei o que acontece.

Na “Intro” dizes: “Nós não perdemos o andamento, A coisa nunca deu, Mantivemo-nos firmes”. Na “Agimos Muito Rápido” dizes sobre o graffiti que “se não houver esta violência inicial do vandalismo, as outras expressões não vão poder entrar”. Associando essa vontade de trabalhar para um bem comum ao movimento hip hop onde estamos inseridos, o que fazes para além da criação?

Na nossa crew há essas duas vertentes, a música e o graffiti, que é mais violenta. O que eu quero dizer com essa frase da “Intro” é que, independentemente de termos muita ou pouca gente a ouvir, ou de ganharmos ou perdermos dinheiro (na verdade só perdemos até hoje), nós nunca desistimos e fazemos isto porque acreditamos.

Mas de que forma é que achas que a música e o graffiti contribuem para ser uma porta de entrada para outras expressões?

Eu faço graffiti desde há muitos anos, e sei a sensação de liberdade que traz. E também sei o que acontece quando outras pessoas que não são do meio assistem a pessoal a pintar. Aquilo puxa-te, apetece-te fazer a mesma coisa. O meu objectivo com o vídeo era que o pessoal que não é do graf, ao ver o vídeo, ficasse com vontade de pintar paredes. E conheço várias pessoas que ficaram com vontade de pintar, o objectivo foi cumprido.

Por outro lado, essa violência não se aplica só ao graffiti. Nós não temos que falar só quando nos dizem para falar, não temos que agir quando nos dizem para agir. Nós temos impulsos, e acho que também é importante seguirmos esses impulsos. Eles acontecem em vários momentos da nossa vida, com várias coisas. Acredito que, tendo em conta a quantidade de regras que temos que cumprir, falar de certa maneira, comportar de certa forma, assumir responsabilidades, nos esquecemos do instinto e da intuição, que são aspectos essenciais da nossa vida. O graf traz isso, faz-te sentir vivo.



Disseste há bocado que começaste a pensar e a produzir o álbum há quatro anos?

Mais ou menos. Quando comecei a fazer o Limites não sabia que estava a produzir um álbum. É como quando conheces alguém. Nesse momento não sabes se é só um café, se vão sair mais vezes ou se vão casar e ter filhos. Tu não sabes, mas vais andando.

Com o Limites foi igual. Quando acabei o álbum de Enigmacru fui escrevendo músicas, e acabei com uma série de faixas de lado. Algumas enquadravam-se com a fase da vida que eu estava a passar. O momento em que decidi fazer o álbum foi no ano passado, com material que tinha desde há quatro/cinco anos.

Pergunto-te isto porque na “A Subvalorização do Silêncio em Palavras” dizes “A esperança está no silêncio na empatia e nos gestos, na cumplicidade dos olhares como demonstração de afecto”. Ouvi aqui a comunicação fracturada com a qual nós convivemos nos confinamentos. Este álbum é uma resposta tua ao que experimentaste no ano passado e agora?

Não, de todo. Curiosamente, essa faixa foi composta há quase cinco anos. E nenhuma das faixas foi composta na pandemia. Na verdade, se eu soubesse que iríamos entrar numa pandemia não tinha feito o álbum, porque envolveu um investimento enorme numa das piores fases da minha vida para o fazer. Mas não tenho nenhuma letra que tenha sido uma consequência directa do confinamento.

Os pontos que referiste da letra são gerais e transversais. Nós caímos no erro de achar que a comunicação se faz só com palavras. Acho que, quando estamos a falar de emoções, as palavras levam-te somente para um lado analítico. Tu só consegues explicar uma ideia ou palavra de cada vez. Mas quando falas em esperança, amor ou outras coisas vagas com vários conceitos relacionados, quanto mais tu falares menos específico serás. A troca de olhares, a interpretação corporal, a energia que sentes e a tua intuição consiste em 90% dessa comunicação. As palavras, às vezes, afastam-te do significado real. Há coisas que só se sentem.

A sensação de que estás a tentar comunicar com alguém sem sucesso é muito frustrante, e com a pandemia isso só se agudizou, porque há canais que desapareceram. E acho que essa sensação é próxima de muitas pessoas.

Certo, sem dúvida.

Em “A minha hora” exploras um limite laboral. Escreves frustrado com um patrão que não te paga horas justas e tira-te tempo de vida. Exorcizaste algum demónio quando escreveste isto?

Eu exorcizei directamente no trabalho e novamente quando fiz esta letra. Escrevi-a há já alguns anos, mas mais uma vez não se refere especificamente a alguém, eu estou a falar sobre vários ex-patrões. Refiro-me a uma ex-patroa em específico, mas a mensagem é representativa para quase todos, na hotelaria é um mal comum. Já é aceite que tens que ficar até ao fecho, trabalhar horas a mais e não receberes por isso. Se disseres o contrário, é porque não queres trabalhar. Mas não tive nenhum patrão que tenha vindo responder [risos].

É daquelas malhas que se torna muito maior do que a tua experiência pessoal.

Infelizmente, é um mal comum.

Os teus lançamentos anteriores, “As Aventuras do Lino”, consistem em três músicas com um discurso aparentemente fictício, longe do confronto pessoal de Limites. Gostas de explorar as duas abordagens? Porquê esta diferença abrupta?

O Lino refere-se a um eu mais criativo, e no Limites sou um eu mais transparente. Eu gosto de criar personagens, porque torna-se fácil sair da minha zona de conforto. Posso-me imaginar como se fosse outra pessoa, se tivesse outra vida e exploro outros tipos de criatividade. O próprio storytelling é diferente se eu falar na primeira pessoa de uma personagem ou comigo próprio. Só isto dá-te ferramentas completamente diferentes para criar. E é uma necessidade que eu também tenho, a de criar, para além da de me expressar e de me exorcizar. Por vezes vezes combinam-se, por vezes são coisas distintas.


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