Nunca fez tanto sentido como agora. No mês passado, para a Mensagem de Lisboa, Ricardo Farinha ajudou a contar boa parte da história que levou Mem Martins a tornar-se num “bastião do rap e do hip hop em Portugal“, fenómeno que viu o código postal 2725 passar de “zona dormitório” a terreno fértil para as artes urbanas, com a música em especial evidência. Dos Da Blazz a DansLaRue, são já largas as dezenas (quem sabe se não mesmo algumas centenas…) de nomes que têm despontado aos comandos dos beats e dos microfones nesta que é uma freguesia dotada de um grande espírito de comunidade, onde jovens dos mais diversos backgrounds e culturas dão as mãos nas ruas para se manterem entretidos e não se deixarem levar por maus caminhos.
Tal como em praticamente todos os lugares periféricos do país, a autarquia nada faz para dinamizar a coisa e as culturas locais estão entregues a si próprias, à espera de uma fezada que faça um ou dois nomes a rebentar à escala nacional para encher os restantes de orgulho e atenuar o sentimento de que as suas vozes nunca chegarão a lado nenhum. E neste capítulo, tanto se pode falar de Mem Martins como, por exemplo, de Ourém, que precisou de ver xtinto a causar ondas unanimemente de norte a sul até finalmente lhe oferecer lugar num palco decente para que pudesse actuar em condições dignas diante os seus, tendo esse tipo de exclusão motivado o seu mais recente single, “Berço”, e sido assunto numa recente conversa com o Rimas e Batidas. Não existe propriamente falta de espaços, existe sim é uma brutal falta de vontade em oferecer mais ferramentas a estes corpos que cantam, tocam, pintam e dançam, renegando-os para um qualquer parque de estacionamento onde a festa se faz através das colunas de um carro ou para os velhos bares de rock bafiento que em nada representam aquilo que as ruas respiram nos dias de hoje.
Há, por isso, que aplaudir a iniciativa da Clarabóia, uma associação que tem feito por abanar o movimento artístico do concelho de Sintra apesar dos parcos recursos, nem que isso implique montar uma sala de espectáculos improvisada nos locais mais inesperados. No passado sábado, 2 de Março, foi o João Faleiro Boxing Club quem cedeu o seu espaço para que Mem Martins pudesse finalmente ter uma noite de rap ao vivo como tanto merece. E que noite essa, com um palco montado sobre um ringue e munido de um sistema de luzes a rigor, criando um cenário totalmente inovador para este tipo de eventos. DansLaRue e Real GUNS fizeram justiça à plataforma que lhes foi oferecida, entregando a um público faminto uma boa dose de rap combativo enquanto que, à imagem daqueles que pisam o mesmo tapete diariamente para a prática da actividade desportiva, largavam sangue, lágrimas e suor para aproveitar a ocasião até à exaustão e mostrar que a caminhada não é assim tão fácil quanto pode por vezes fazer parecer.
O primeiro round foi ao som do talento local. A Clarabóia teve olho (e ouvido) para ir recrutar DansLaRue para esta festa, ele que assinou recentemente uma das mais interessantes pérolas do street rap com “Niggas Sta Trap”, single onde relata os duros episódios com que teve de lidar antes de conseguir organizar a sua vida para, agora, apostar com maior afinco na música. Durante um breve showcase, brindou aos presentes com temas que vão integrar o seu EP de estreia que, segundo nos revelou após a actuação, está previsto para sair ainda este ano. Naquele que foi o seu primeiro concerto, não deixou de dividir as luzes da ribalta com um par de amigos, Monteiro e Paulinho SZ, outros dois jovens da zona que também estão a preparar os respectivos projectos e que, em Agosto de 2023, rubricaram o hino “Sintra Zoo”, faixa que tiveram a oportunidade de interpretar ao vivo por entre o alinhamento delineado por DansLaRue. Infelizmente, o sistema de som vacilou por algumas vezes, mas a resiliência fê-los ultrapassar a situação sem vacilos, com o público sempre a puxar pela prata da casa.
Após um longo intervalo, o segundo assalto teve Real GUNS a nocautear a massa adepta com um rap de rajada bem ao seu estilo, disparando faixas umas atrás das outras naquela que foi uma verdadeira extracção de bangers oriundos da sua bruta discografia, que tem atravessado um período particularmente dourado desde o início da presente década. Nascido em São Tomé e criado no Cacém, a proximidade que existe entre a sua realidade e aquela que se vive em Algueirão-Mem Martins provocou um casamento perfeito com as mensagens que o anteriores intervenientes tinham feito veicular. E não terá sido à toa que até trouxe vestida a jersey laranja criada pelos Unidigrazz no ano passado, mostrando que existe, de facto, uma grande união entre os “degradados” da Linha de Sintra que a sociedade teima em colocar de parte. Com um percurso bem mais reputado do que o seu antecessor, Ovilton Fernandes Santiago fez o deleite de todos os presentes ao trazer para o centro da acção os temas mais sonantes de projectos como DAVIDS, S.C.M. (Street Culture Music), ODB ou Escrevo Com Sangue — “Cabeça Na Gelo”, “Gana Di Vivi”, “P.D.G (Poduto Di Gheto)”, “404FREESTYLE”, “WAG1” e “Sabotagem” ajudaram a disferir golpes certeiros, mostrando todo o jogo de cintura de Real GUNS e aplicando uma vertiginosidade “impossível di pára, [tipo] Messi na Barça,” como faz menção em “Na Mapa”. Rapper com vários palcos no currículo, foi certamente nesta modesta e improvisada sala de espectáculos que o luso-são-tomense mais amor recebeu do público, muito devido à proximidade com as suas raízes urbanas, tendo contado com muitas das letras que rubrica cantadas em uníssono. No decorrer do “combate”, teve ainda o auxílio de uma comitiva composta por outros artistas com quem foi trocando versos, entre eles o parceiro de há long time Lev GUNS.
À saída, o sentimento de satisfação era geral, e apesar deste evento ter tido direito a uma casa bem composta, estamos crentes de que se a coisa se tornasse num hábito por estas bandas a adesão seria ainda maior, retirando a este tipo de audiência a vontade de se fazer deslocar largos quilómetros até Lisboa para curtir ao som do hip hop. Houve crianças, adolescentes e adultos entre a plateia, e alguns deles eram também integrantes da comunidade artística, dando o exemplo ao ajudar a fazer maior número de cabeças para que os seus pares, em palco, se sintam mais apoiados e, acima de tudo, para demonstrar a urgência que existe para que a freguesia some mais programações culturais deste calibre. Tristany, RS Produções, Julinho KSD, Marcos Best ou DJ Algore foram alguns dos rostos conhecidos que passaram pelo João Faleiro Boxing Club, num claro sinal de aprovação a este tipo de iniciativas.