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Real GUNS

DAVIDS

MAR Records / 2023

Texto de Paulo Pena

Publicado a: 22/06/2023

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Imaginem a coisa se, como quem deste lado a descreve, não a viveram (pelo menos em plena consciência) para contar: a bola chega à zona de Edgar Davids, de rastas presas por um grosso elástico de cabelo e de óculos estilo super-herói no rosto, ainda antes da linha do meio-campo. Das duas, uma: ou ele está a defender, e ai de quem se atrever a desafiá-lo com “vírgulas e túneis”; ou está a atacar, e ai de quem se meter à sua frente para o travar. Em qualquer um dos cenários, a agressividade não-maldosa, aliada à verticalidade habilidosa, resulta sempre a seu favor. Golo marcado ou golo evitado. “Na campo, crazy / Visão ampliadu ku rastas, Davids, Davids, Davids”.

Assim se posiciona, à sua imagem, Real GUNS no game. Não é, por isso, meramente estética essa escolha para a capa, para o título e para o primeiro tema do seu segundo álbum de estúdio: apesar das referências futebolísticas que vão desde Rafael Leão no AC Milan a Bukayo Saka no Arsenal, passando por N’Golo Kanté no Chelsea (ou “Messi na Barça”, se quisermos recuar “Na Mapa”), é com o trinco nascido no Suriname e criado nos Países Baixos que o rapper luso-são-tomense mais se identifica no seu “jogo”. Também ele deslocado muito novo, vindo primeiro de São Tomé para Portugal ainda na idade dos porquês, e depois, já feito homem, emigrado para o Reino Unido, para voltar anos mais tarde à terra que o viu crescer, Ovilton Santiago sempre teve de conquistar o seu espaço em meios hostis e num “desporto” ultra competitivo. Mas fazê-lo na desportiva nunca foi opção.

DAVIDS, disco que marca a sua estreia sob o selo discográfico da MAR Records, reflecte a polivalência de um MC (não médio-centro) à frente de uma equipa de produção liderada por MikelPotter. Já em Escrevo Com Sangue, o seu primeiro álbum de estúdio a solo (também inteiramente produzido por MikelPotter), lhe reconhecíamos a fama de pitbull herdada do médio defensivo de Paramaribo, que ainda há um par de anos passou uma temporada por Olhão no comando técnico do clube da cidade.

Essa irreverência não a perdeu, porém, do primeiro para o segundo trabalho em nome próprio. A diferença é que, enquanto em Escrevo Com Sangue quis marcar o seu passo e demarcá-lo dos demais — determinado a fazer “o álbum que sempre quis fazer”, como nos contava em entrevista a ser publicada em breve —, com DAVIDS permitiu-se a uma maior liberdade de movimentação, menos individualista na concretização, igualmente generoso na entrega, não tão dado ao choque de ideias e linguagens e com uma visão periférica de possíveis abordagens mais ampla. 

A fórmula continua a ser, não obstante, aplicada de dentro para dentro, do bairro para o bairro, rap feito sobre e para a rua. Quem versa sobre a sua realidade a mais não é obrigado. Há, no entanto, um conjunto de factores diferenciador de GUNS para todos os seus pares: o drill que faz é, nas suas mais sinceras palavras, conscienti — documental mesmo (e a turma de fotógrafos e videógrafos que o rodeia tem um papel fundamental na clarividência da transmissão dessa mensagem); e a forma como o faz é inigualável, mesmo quando — aqui, por excelência —, sai do seu habitual raio de acção sem perder noção do tempo e do espaço. Não abdica da sua identidade em favor de tácticas alheias, não se posiciona consoante investidas paralelas, não encara cada partida condicionado por hipotéticos resultados, não calça as botas de outros em detrimento das suas.

E, aqui, tanto arranca a todo o gás e sem olhar para trás — de bola corrida no pé, “na despachu, deixa mundu roda” — em “DAVIDS” (embalado na sempre preciosa instrumentalização de EU.CLIDES), como bate e finca pé à sua posição de raiz — à sua condição de origem, “nha papo é recto, nha dor é pretu, nha raiva sta cego” — em “P.D.G (Produto Di Gheto)” (em diálogo com o inconfundível saxofone de Jeezas). Do início ao fim com a mesma endurance, o mesmo fôlego, a mesma garra, a mesma obstinação, a deixar tudo em campo a cada faixa, tal qual o número 8 da Laranja Mecânica. Jogadores destes já não se fazem.


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