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Fotografia: Miguel Refresco/Curva Contra Curva
Publicado a: 05/08/2016

Debaixo da Língua é um projecto do festival O Sol da Caparica que reúne em livro uma série de conversas sobre a relação do português com a música. O Sol da Caparica está de regresso já nos próximos dias 11, 12, 13 e 14 de Agosto.

Debaixo da Língua com Capicua: “Aquilo que gosto muito no rap é o carácter democrático”

Fotografia: Miguel Refresco/Curva Contra Curva
Publicado a: 05/08/2016

Depois de Carlão, Capicua é a artista que se segue nas entrevistas incluídas na edição original do livro Debaixo da Língua, um projecto do festival O Sol da Caparica, que iremos republicar por aqui. O Sol da Caparica, entretanto, regressa já nos próximos dias 11, 12, 13 e 14 de Agosto e tem no cartaz deste ano nomes como Mundo Segundo & Sam The Kid, O Rappa, Orelha Negra, Jimmy P ou, entre tantos outros, Djeff Afrozila.


De sereia e de louca capicua tem certamente um pouco. E tem, igualmente, muito de fenómeno: veio do hip hop, mas não se sabe muito bem para onde vai carregada por palavras que parecem dizer quase tudo a quase toda a gente. É uma das mais aplaudidas vozes da sua geração e sente-se que no seu caso particular o mais importante ainda está para chegar.

Recordas-te da tua primeira palavra?

Não me lembro, mas não deve ter sido nada de estranho. “Mãe”, “pai”, “papá”, “olá”, “água”, aquelas coisas que os putos dizem. O meu pai conta muito é sobre a minha primeira rima, quando tinha uns dois anos. Foi à porta do infantário onde também andava o meu namorado, o Tiago Azevedo. O pai do Tiago e o meu pai encontraram-se um dia à porta do infantário e eu disse: “o pai do Tiago Azevedo” – e fiz uma grande pausa – “é um grande penedo” (risos). O meu pai até hoje conta esta história.

Os rappers e os hip hopers tratam a língua portuguesa de forma diferente dos cantores e dos fadistas?

Sim, aquilo que gosto muito no rap é o carácter democrático, poder pegar no calão, na língua do quotidiano, no português que as pessoas falam ou que os putos falam e utilizar isso como matéria-prima para a criação artística. Isso é uma coisa muito subversiva até porque a literatura ou a poesia ou as grandes canções são feitas com o português canónico e o rap alimenta-se do português da rua. Na adolescência escutava Dealema, Mind Da Gap, Matoozoo e Circuito Secreto que tinham um rap sem clichés americanos, como havia em Lisboa. O pessoal do Porto tinha o hábito de pegar nas expressões tripeiras e no sotaque muito local e de a transformar em refrões. Além de ser subversivo, é um empowerment. Essa escola fez-me repensar um aquilo que é o poder da palavra falada. Se eu não fosse do rap provavelmente não me tinha apercebido o quão versátil, interessante e infinito é o poder da língua portuguesa na escrita de música. É uma matéria-prima inesgotável e esse manancial de informação condensada nas mixtapes, nos discos, nas músicas que temos do rap português dava muito boas teses de doutoramento em sociologia e antropologia.

O Chuck D dizia que o rap era a CNN do gueto, o rap cá é o Correio da Manhã TV do bairro?

Ao mesmo tempo é o guetographic, é o Correio da Manhã porque também há muita cusquice, mas também conta as estórias das pessoas. A estória do poder não é contada pelas pessoas, é contada pelo discurso dominante, por quem tem o megafone na mão, e a música, o cinema, a televisão, têm de ter um papel fundamental em contar essas estórias do povo. Na literatura portuguesa também há muita tendência para falar no abstracto, nunca se conta as estórias do nosso quotidiano. O rap tem essa ligação à realidade, não só através da língua, mas também dos temas. Isso foi muito importante para mim e acho que é uma riqueza muito pouco reconhecida e que no futuro vai ser muito interessante de analisar.



Nesta arte ou ciência das rimas tiveste mestres?                                           

Sim, os Dealema. Não só a nível musical, pela linguagem, pelos temas, mas pela postura ética que têm no hip hop até à relação que mantêm com os media, a postura discreta, que sempre me influenciou. Os Dealema ensinaram-me a manter uma postura de genuinidade e verdade. Não estou a falar da cena de “ser real”, mas sermos nós próprios, fazermos a nossa música, para nós mesmos, termos uma postura despretensiosa, fazermos isto porque gostamos muito, acho que esse exemplo é mesmo importante. Esse sentido de comunidade, de ética, de estética, em relação ao hip hop e à valorização da nossa língua local foi-me transmitida pelos Dealema e até hoje deve ter sido a banda que mais vezes vi ao vivo. E se hoje for a um concerto deles, sei que me vou emocionar como me emocionava.

No teu percurso escolar, que livros – obrigatórios ou não – te marcaram?

A Sophia de Mello Breyner sempre me marcou muito, porque, tal como ela, que também é do Porto, tenho um fascínio em relação ao mar e ela, em toda a sua obra, fala permanentemente da água, do mar – à posteriori apercebi-me que tenho um álbum chamado “A Sereia Louca” e outro chamado “Medusa”. Sempre vivi ao pé do mar e identificava-me muito com os temas que ela escrevia, tanto nos livros que lia em criança, como na parte mais poética da obra dela já ao longo da minha vida. Também sempre tive uma paixoneta por aquela escrita cómica, sarcástica e de jogos de palavras do Alexandre O’Neill.

E tens outros poetas que façam parte do teu panteão?

Aquilo que mais me marcou a nível do meu percurso escolar, e depois como leitora, foi a poesia, gosto mesmo de rimas. Apesar de toda a gente endeusar o Pessoa, sempre tive uma relação difícil com ele porque muitas vezes não escrevia rimas – até tem um poema em que diz que não gosta de rimas. Mas, numa fase mais adulta, em que o entendi melhor, também foi uma bela descoberta.



Se o rap é uma língua falada nas ruas, é próxima das pessoas, porque é que não se usa para cativar os alunos?

Não sou uma boa pessoa para me perguntares isso, eu gostava das aulas de português, embora por vezes não gostasses dos livros que me mandavam ler, nem percebia porque é que vinham naquela ordem ou naquela idade. Sempre gostei muito do português por causa das figuras de estilo e pela compreensão do duplo sentido das frases, tentar descodificar o que se esconde na língua. Mas tinha a noção que a maior parte dos meus colegas não tinha interesse nenhum porque impingir a leitura como um xarope que se tem de tomar à força afasta as pessoas. Devíamos começar por outro tipo de abordagem, e não digo só a escrita criativa, porque quase todos os putos têm coisas para dizer ou gostam de música ou escrever.

Nunca tiveste um professor no teu público a convidar para falares da tua música nas aulas dele?

Sim, já me convidaram e já fui a conversas com alunos de filosofia, sociologia, português. Em filosofia já trabalharam muito a música “A Sereia Louca”. Já recebi um email de uma professora de português na Universidade de Bordéus que gostaria que eu fosse lá porque utilizaram letras minhas para o ensino do português; e outro de uma professora brasileira. Nós estamos muito presos ao português canónico e não se reconhece o valor do português que estamos a criar agora. O português é muito menos sagrado para os brasileiros, a língua é muito mais elástica. Aqui, este grande debate do acordo ortográfico revela o quão importante é para nós que a língua se preserve intacta: mesmo que já ninguém diga aquele som, a letra tem de lá estar. É importante que se crie uma certa elasticidade na língua para que depois se possa validar o português de todos os dias como o português do dicionário. Se houvesse abertura e tivéssemos uma perspectiva menos canónica do ensino do português, podíamos de facto olhar para essas formas de utilizar a língua e o putos iam curtir bué esse exercício de analisar as diferenças.

Para além de “Vayorken” tens mais palavras inventadas?

Não, nem sou um bom exemplo de utilização de calão nas minhas letras porque sou dos rappers que menos encripta palavras. “Vayorken” é a única coisa que tenho a acrescentar de novo ao dicionário por enquanto. Não sei dizer a “Nova Iorque” bem dito, mas o mais difícil não é dizer bem, é pôr toda a gente a dizer errado. Era importante que nos habituássemos a dizer as coisas como queremos.



E em termos de processo criativo és dessas pessoas que de repente ouve uma palavra no autocarro ou no café aponta para usar numa rima?

Não, mas aponto ideias, coisas que quero falar e reflicto sobre a melhor que abordagem. Nunca sinto escassez de palavras, falo muito, as palavras chegam-me. O que às vezes tenho pânico é se um dia não tiver mais ideias, temas para falar, sentir-me desinteressante, sem nada para falar porque. Sempre tive muita dificuldade em fazer músicas sem tema, como muitos rappers fazem.

Há pouco falávamos de maternidade: já pensaste na quantidade de temas que terias?

Este ano fui ao Brasil ao Terra do Rap e conheci a Nega Gizza, o que foi muito importante para mim porque ela falou-me como foi quando teve a primeira filha e os concertos e toda aquela experiência de deixar a filha em casa ou levar com ela [para os concertos], uma fase em que estava exausta da maternidade, da amamentação, esquecer das letras ou misturá-las. Todas essas estórias que contou foi algo que nunca tinha pensado porque nunca tinha conversado com ninguém sobre isso. Nunca tinha tido essa conversa com uma mulher mais velha do que eu, que tivesse tido essa experiência e foi importante. Sei que provavelmente vou conciliar a maternidade, o rap e acho que é assunto que deve dar muito pano para mangas.

Mencionaste que deixaste de escrever no papel, que escreves no computador. Isso mudou alguma coisa na tua escrita?

O que mudou no processo de escrita no computador é que agora tenho mais facilidade em trocar a ordem das frases. Tenho uma escrita que é muito hermética no sentido em que escrevo uma letra de rap como se fosse um texto. Há muitos MCs que escrevem em parelhas ou quadras e estas podem depois ser trocadas de uma forma bastante livre. Com o computador, essa possibilidade de trocas começou a ser mais prática porque olho para o texto de forma mais gráfica e não tenho de reescrever tudo para trocar a ordem das coisas. Uma coisa que uso muito é a ferramenta de sinónimos do Word, porque é uma questão de organização do pensamento. Evito repetir palavras, mas por vezes vou apenas ver para abrir uma janela, para ir por aqui e ali.

Tens alguma palavra favorita?

“Água”, pelo som e pelo significado. Mas também gosto de “azul”. Gosto de palavras com ‘às’, o meu nome também tem dois ‘às’. O fogo e a água dão muitas metáforas. Apercebo-me também que há palavras que depois têm muitas expressões: “água pela barba”; “meter água”, coisas idiomáticas que lhes estão associadas e que dão jeito. Por vezes construímos muito do que é o discurso a partir desses lugar comuns que ajudam a tornar mais pictórico e fácil o entendimento da coisa. O “fogo” e a “água” são os dois elementos que me dão mais potencial para metaforizar à volta. Agora tenho de começar a pensar em falar mais do “ar” e da “terra” para compensar (risos). Depois há palavras que não gosto como “buço”, é fechada.

E há alguma palavra que te assombre?

Quando me encontrava com o Deau ou a Eva no Porto para fazer umas rodas de freestyle uma das palavras mais temidas era “fiambre”, porque nada rima com “fiambre”. Mas não tenho nenhuma palavra que me assombre.


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