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Publicado a: 22/07/2016

Debaixo da Língua com Carlão: “Todos os nomes que vieram do hip hop português têm sido importantes no tratamento da palavra”

Publicado a: 22/07/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] Direitos reservados

Esta é a primeira das entrevistas incluídas na edição original do livro Debaixo da Língua, um projecto do festival O Sol da Caparica, que iremos republicar por aqui. O Sol da Caparica, entretanto, regressa já nos próximos dias 11, 12, 13 e 14 de agosto e tem no cartaz deste ano nomes como Mundo Segundo & Sam The Kid, O Rappa, Orelha Negra, Jimmy P ou, entre tantos outros, Djeff Afrozila.

 

Carlão foi Pacman nos Da Weasel, mas agora, numa vida redescoberta primeiro nos 5:30 ao lado de Regula e Fred, e depois em 40, o seu álbum de estreia em nome próprio, assume um lado mais solitário na criação, mais exposto, sem a necessidade de ter uma banda em volta, como aconteceu também com o projecto Dias de Raiva (o homem de “Os Tais” lançou, já depois da publicação original desta entrevista, o EP Na Batalha). Carlão tem muito debaixo da língua, que na sua boca foi sempre solta e directa dando muitas palavras para uma geração se identificar. É disso que se fala a seguir.

O que é que sentes sabendo que há professores de português que usam letras dos Da Weasel nas suas aulas?

É um bocado irreal, é um peso gigante, é uma coisa que nunca esperei, é super estranho. Mas claro que fico contente, até porque a educação está a nivelar muito por baixo. É fixe, mas não é nada que almejasse. Uma vez os sobrinhos da minha mulher mostraram-me um livro do 5º ano com referências a Zeca Afonso e também uma fotografia minha.

Escrever uma canção é como escrever em pedra, fica para o futuro, para o bem e para o mal. Concordas?

Sim, isso é porreiro enquanto crítica social. Se, por um lado, é intemporal,, porque as coisas que lá estão são transversais às gerações, há outras que são muito específicas – como, por exemplo, o uso do telemóvel naquela época. Se eu fosse tocar o “Toda A Gente” ao vivo hoje em dia, teria de substituir a referência ao telemóvel por algo mais presente. Mas também é giro estar lá desse lado, consegues situar-te numa época, ir para um sítio muito específico. E acaba também por ser uma crítica social que também é uma crítica a mim próprio, o ‘tu’ é também um ‘eu’.

O Kendrick Lamar faz esse jogo muito bem no novo disco, com as músicas “i” e o “u”. É também uma crítica dirigida à imagem que está no espelho…

Sim, no fundo, toda a música de crítica social é assim, há é pessoas que o assumem e outras que não. Se tiveres isso assumido, resolvido, é um processo muito mais libertador e igualitário. Num ponto-de-vista completamente diferente, o Oscar Wilde dizia que um crítico estava a criticar-se a si próprio. Acho que um autor muitas vezes faz isso, só que nem sempre assume.

Pegando nesse exemplo que citas do livro de português com o Zeca e a tua fotografia: é certamente para esse panteão que um músico se atira se sobrevive ao teste do tempo e constrói uma carreira. Sentes hoje que vestiste essa pele de voz de uma geração?

Hoje sinto isso quando há gente mais nova que eu a dizer que os Da Weasel marcaram a sua geração. Na altura não percebia isso, nem embandeirámos seja o que for, mas a verdade é que isso aconteceu. Depois do primeiro e do segundo disco, em que eu tinha uma veia muito moralista e idealista, fruto da adolescência, caí na real e nunca tive grandes veleidades ou pretensões porque sei perfeitamente aquilo que valho enquanto escritor de letras que considero que são importantes e que têm o seu espaço enquanto letras de canções.



Hierarquizas isso face à escrita poética como estando uns degraus mais abaixo?

Não, há textos do Chico Buarque que são poesia para mim e que são da melhor que já li. Há é um lado de pretensão, mesmo académica, ou uma seriedade, um método, que não tenho nem nunca tive, daí que seja mais fácil comparar-me a um António Aleixo do que a um Pessoa. Fui lendo e escrevendo coisas ao longo da minha vida, mas sempre em estilo livre, não tive formação nenhuma académica nesse sentido. Não quer isto dizer que não tem valor e, em última análise, o ouvinte é que lhe atribui esse valor. Tento sempre ver isto como algo que gosto de fazer e considero a minha escrita muito verdadeira, para o bem e para o mal. É por aí e pela simplicidade que toca nas pessoas.

Começaste a escrever em inglês e depois abraçaste o português. Quando é que se deu esse clique? De que o português podia ser um caminho?

Comecei a escrever em português por imposição externa do pessoal da banda, não foi por minha vontade. Era relativamente fácil escrever em inglês e eu samplava, copiava mesmo, coisas dos discos que ouvia e mudava para ter uma letra. Começar a escrever em português significava que eu tinha de fazer o trabalho todo, de pensar nas coisas. Nós ouvimos – sem pensar – o que quer que seja em inglês e em português tu estás ali pendurado em cada palavra. Obrigou-me a um esforço que, na altura, não me apetecia fazer, mas assim que faço o primeiro disco em português e descubro ali uma identidade que nunca tinha existido com o inglês, então percebi que não mais conseguiria voltar a escrever em inglês. Foi em 1995, quando apareceu o Dou-lhe Com A Alma, que comecei a descobrir-me através do português.

Acabaste de editar o álbum de título 40, que é uma marca de vida muito importante. Tu vês-te a cantar palavras hoje que não escreverias quando tinhas 20 anos?

Sim, claro. Há 20 anos atrás era muito mais complexado em relação à nossa língua. Havia palavras que era quase piroso e impensável dizer. Por exemplo, “Bébé” era uma coisa horrível de se dizer, enquanto que ouves baby no inglês desde sempre. Mas a partir do momento em que tratava a minha namorada por “bébé”, pareceu-me perfeitamente lógico e legítimo meter isso numa letra, embora, das primeiras vezes que usei esse tipo de palavras, sentisse um certo desconforto nas pessoas. Hoje em dia não tenho muitos filtros, já fui mais asneirento a escrever, mas porque era mais asneirento a viver. As asneiras ainda são daquelas coisas que em metade de Portugal são um tabu complicado. Digamos que há 20 anos era pior, embora ainda vivamos muito outras culturas e línguas, o que até é bom porque nos dá uma grande abertura. Só que ainda não estamos tão pacíficos com a nossa língua como deveríamos estar e aí as ex-colónias têm um papel muito importante porque não se sentem tão presas. O português de Cabo Verde, Angola ou Brasil é muito mais descomplexado e nos últimos anos temos bebido muito desse português, o que só nos tem feito bem.



Quem é que te moldou enquanto escritor de canções?

Numa primeira fase, diria o Chuck D dos Public Enemy, o Jello Biafra dos Dead Kennedys, mais pela insatisfação e pelo cariz social das letras. Depois Gil-Scott Heron e Michael Franti e, só mais tarde, nomes portugueses e brasileiros, como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Carlos Tê, Caetano Veloso ou Chico Buarque, pelo universo feminino que aborda e me toca bastante. O Sam The Kid e o Regula também, de formas completamente diferentes e ambas bastante válidas para mim. O Regula é mais escrita de rua, que é muito a minha criação também; o Sam The Kid é uma mistura disso com algo mais. O hip hop, de uma forma geral, tem sido muito mais rico do que qualquer outro género em Portugal. Há uma preocupação bastante grande com a palavra.

Achas que o hip hop é uma das entidades responsáveis por esta inflexão da direcção do português?

Claro que sim. Todos os nomes que vieram do hip hop português têm sido importantes no tratamento da palavra. E, antes disso, o Pedro Abrunhosa foi muito importante. O Viagens foi um álbum que veio devolver a crença na música cantada em português, com ele a assumir que é português e um popstar. Ainda que não seja fixe para muita gente, isso veio devolver-nos uma crença naquilo que é nosso e esse álbum foi bastante importante.

Nós ligamos a TV todos os dias e somos assaltados por histórias da política, tragédias humanas. Alguma vez reagiste a alguma destas coisas escrevendo para o papel sem que viesses a cantar?

Fiz isso com Algodão, principalmente no primeiro disco. O exercício era mesmo pegar em coisas que foram escritas para serem lidas., nunca para serem musicadas ou cantadas. Não foram escritas com nenhuma preocupação métrica, foram pensamentos muito fortes e sujos e o Algodão permitiu pegar nessas palavras e fazer esse exercício. Raramente deito coisas fora, guardo sempre, há sempre ali alguma coisa que fica. Mesmo que seja mau, é bom guardar esses textos para perceberes e contextualizares e há sempre coisas que aproveitas. Acredito muito nesse impulso, tenho algumas coisas que saem e outras que ficam guardadas.

Que palavras dirias que utilizas mais na tua escrita?

Uso muito “Bébé”, e não foi por acaso que disse essa palavra. Há um valor muito importante das minhas ex-namoradas e da minha mulher na minha música e agora ainda faz mais sentido porque há de facto dois bébés na minha vida. Mas, “puto”, e algumas asneiras repetiram-se ao longo do tempo.

E há alguma palavra que odeies em absoluto?

Não, eu gosto bastante da nossa língua. Já tive alturas em que troquei sinónimos, faço um pouco essa escolha porque as palavras têm especificidades muito grandes, até na sonoridade. Há palavras que me é mais difícil utilizar num contexto mas que noutro é perfeitamente na boa. Não tem que haver barreiras, não há palavras proibidas desde que haja sentido. Há palavras feias, mas mesmo essas podem, por vezes, encaixar bem.


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