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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 28/10/2020

Em nome próprio.

Cabrita: “Não sou do jazz, do funk ou do rock. Sou saxofonista e pronto”

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 28/10/2020

Dos Sitiados aos Cais Sodré Funk Connection, de Prince Wadada a Cacique’97, há um nome que se repete nas histórias destes projectos: João Cabrita, músico que lança em 2020 o seu primeiro longa-duração a solo, numa edição da Omnichord Records, editora que aponta o lançamento deste trabalho em vinil para o próximo dia 6 de Novembro.

Saxofonista e compositor com 30 anos de experiência, Cabrita fez o chamamento para que alguns dos artistas com quem se cruzou durante a sua carreira se juntassem a ele nesta estreia: Tó Trips, Ivo Costa, Hélio Morais, Sam The Kid, João Gomes, Selma Uamusse, The Legendary Tigerman, Gui, David Pessoa, Milton Gulli, Sandra Baptista e João Marques aparecem creditados no disco.

Há umas semanas, antes de mais uma sessão de E Agora?, sentámo-nos à conversa e revisitámos a carreira deste experiente working musician: enquanto não chega a autobiografia oficial, podem sempre começar por esta entrevista…



Há quanto tempo tinhas na cabeça fazer um disco em nome próprio?

Na verdade, essa ideia só apareceu depois de eu começar a trabalhar no disco em si. Comecei a compor por um motivo muito simples: ia ter um Inverno assim fraquinho de concertos em 2018 e resolvi fechar-me em casa a compor. Como já tinha acabado de fazer o Back on Track dos Funk Connection — estava a misturá-lo só –, achei por bem fazer outra coisa como exercício académico, um quarteto de saxofones, que era uma coisa que nunca tinha feito, com uma secção rítmica, e fui fazendo, fazendo e fazendo temas, uma média de um por dia, até que isto começou a ganhar alguma forma. Quando eu “empanquei” ali ao fim de 10 temas, lembrei-me de pedir ao Tó Trips uma ideia que ele tivesse — muitas vezes os Funk Connection pegam em ideias dos outros e transformam-nas em temas. Peguei num tema do Tó que correu muito rapidamente, o gajo mandou-me aquilo às 10h30 da manhã e ao meio-dia já tinha reagido àquilo e devolvido por mail a coisa já terminada, praticamente. E aí, como me comprometi com outras pessoas e abri uma porta, achei que aquilo já tinha um objectivo mais à frente, já era um objecto que podia vir a ser um disco. E fui continuando até chegar aos 20 e tal temas, depois foi deitar fora e eliminar as gorduras, vá. 

Há uma coisa interessante no que tu acabas de dizer: há um Inverno um bocadinho mais parado com que tu deparas, mas para um músico profissional não pode haver tempos mortos. Foi um bocado por necessidade que tu pensaste, “ok, se eu tenho este tempo livre, de certeza que a matéria que vai sair daqui vai ser útil mais à frente”.

Sim, sim. Normalmente é isso o que eu faço. Guardo ideias, tenho uma gaveta de riffs e de malhas que posso reutilizar para quando me pedem arranjos ou ideias para um futuro disco daquilo em que eu esteja a trabalhar na altura, portanto na verdade nós enquanto músicos estando parados de concertos na verdade no que é que isso se traduz? Não estamos parados; não estamos é a ganhar dinheiro fazendo concertos, que é basicamente a função que nos traz maior retorno financeiro. De maneira que a trabalhar estás sempre, aliás, enquanto fiz isto estava a misturar o disco dos Funk Connection, andar para frente e para trás com as coisas com o Francisco Rebelo e tal.

Mas há um bocadinho aquela ideia romântica que os não-músicos alimentam em relação aos que são músicos: o artista é o tipo que se senta no sofá à espera da inspiração divina que o atinge como um raio. E que de repente ele tem um álbum inteiro dentro ou uma canção incrível ou uma sinfonia que nasce assim dos dedos para o papel. E isso não acontece, pois não? É preciso trabalho. 

É isso, muito trabalho. Pelo menos da maneira como eu vejo as coisas. Há duas formas de trabalhar: reacção, ou seja, a fazer arranjos sobre outras [ideias] que cá estão ou a construir a partir de uma ideia inicial de outro; ou, então, há um sítio qualquer a que eu acedo para ir buscar ideias, um imaginário qualquer que existe na minha cabeça. Essa porta de acesso tem de ser ginasticada, e daí esta ideia de todos os dias trabalhar um bocado: sentava-me no computador, abria uma sessão e começava do nada. Começava com um beat, depois podia fazer um baixo, metia uns saxofones em cima…

Tenho andado a entrevistar muitos músicos americanos de jazz e há um conceito, que é uma coisa que por cá não existe — quer dizer, na realidade existe e tu és um bom exemplo, acredito, mas já me dirás se és ou não –, ou que não é muito reclamada pelos nossos músicos e que é a ideia do working musician. O músico não como artista mas como operário ao serviço da música. Tu sentes-te um working musician?

[Risos] Sim, sinto. Em boa parte porque sou uma pessoa curiosa por natureza e farto-me muito facilmente de estar sempre a fazer a mesma coisa, portanto estou sempre a ouvir coisas novas e a querer fazer coisas novas e a querer surpreender-me a mim próprio, porque se não… pá, 30 anos a tocar saxofone, quer dizer, há um limite para fazer sempre a mesma coisa, tens de arranjar uma maneira de te entreter e de justificar o que fazes neste tempo todo.

O working musician tanto faz uma digressão com o Legendary Tigerman como se lhe telefonarem para ir tocar na orquestra do Tony Carreira vai. 

Mais ou menos. Eu tenho limites [risos]. 

Quais são os teus limites?

Uma orquestra do Carreira já seria uma coisa que eu teria de pensar duas vezes, por exemplo. Aliás, cheguei a ser convidado para uma do filho e disse logo que não porque o principal critério era se eu era gajo para tocar de tronco nu e eu achei que isso era um bocado parvo [risos]. Mas há alguns limites, é como tocares para partidos políticos, há uns com que tu te identificas mais e vais até a um certo ponto, outros não. 

Selfies com o Ventura não?

Nunca vais ver isso [risos]. Muito pelo contrário [risos]. 

Numa entrevista perguntaram ao Lester Bowie qualquer coisa do género, “que tipo de músico é que tu respeitas mais?”, e ele respondeu, “aquele que me põe comida na mesa with is horn“. Ou seja, o gajo que usa o instrumento para alimentar a família. E nesse sentido o que eu penso que ele queria dizer era: “eu acho que não há trabalhos que nós enquanto músicos não possamos fazer”. Mas também sabemos que a realidade americana é bastante diferente… 

Tu consegues safar-te muito mais num mercado gigantesco como aquele sem que ninguém dê por ti a tocar com um Carreira qualquer ou outro pimba qualquer. Aqui toda a gente se vê e sabe. E não é musicalmente desafiante. Eu sou mesmo muito sortudo neste aspecto, não só pelos amigos todos que consegui angariar nesta história do disco como naquilo que faço porque só estou a fazer o que gosto. Inacreditável, nem sequer preciso de dar aulas para compensar financeiramente a minha vida. Faço os Funk Connection que é uma coisa nada mainstream, toco com o Paulo Furtado em bandas sonoras e em Tigerman, fazemos coisas incríveis, todas elas fora da norma e isso é maravilhoso, conseguir viver só disso. Sou mesmo muito sortudo.

Vamos falar sobre isso, o teu percurso, antes de dissecarmos o disco. Como tu próprio estavas a dizer, já são 30 anos disto. Explica-me só, mesmo que por traços largos, como é que tu vais parar ao saxofone? Como é que alguém da tua geração agarrou num saxofone e não numa guitarra eléctrica?

Isso foi sem querer [risos] Lá em minha casa éramos três filhos e os dois pais. Os meus pais eram cientistas e eu fazia banda desenhada, a minha mãe andava no piano, numa senhora velhinha da Encarnação, e os meus irmãos começaram a ir para lá também. 

Se não é indiscrição, cientistas em que área?

Meteorologia. Trabalhavam no Instituto de Metereologia. 

Como eles tinham aulas de piano na senhora da Encarnação, lá ao pé do aeroporto, a minha mãe achou a certa altura que era interessante ter aulas de teoria porque só tocar não leva a lado nenhum. Descobriu a Filarmónica dos Olivais, que é uma banda que anda sempre com 60/70 elementos e tem uma escola de música muito vibrante com muita malta nova do bairro e faz um trabalho social muito interessante. Basicamente, a malta da minha criação acabou por ser aquela.

Então, [a minha mãe] chegou lá e viu que era muitos putos na escola da música, teve vergonha e obrigou os três filhos a ir [risos]. Dos três filhos, dois andavam no piano e estavam na boa e eu é que fui o contrariado porque só queria desenhar. Acabei por ir e de repente nas aulas da teoria começou a fazer-se um clique muito óbvio, parecia que estava a ter respostas para todas as questões do universo que me estavam a assolar na altura. Estava com 17 anos, portanto já não era novo. Nem sequer tinha acesso a música pop na altura nos anos 80 porque os meus pais, sendo cientistas, só tinham discos de música clássica ou de cantautores brasileiros, a rádio só apanhava onda média portanto nem sequer podia ouvir as cenas da FM. Só o Top+ e uma rádio, Radio Luxembourg, que eu apanhava num transistor antigo quando ia para a quinta. Era a única maneira de eu aceder ao que se ouvia na altura nos anos 80. Aquilo tudo me fascinava mas era paisagem sonora na minha vida.

Aquelas aulas de teoria começaram a dar-me explicações para aquilo e mudou tudo. De tal forma que eu deixei de desenhar por completo e comecei a tocar logo passados três meses, em Maio de ’89, e deram-me um clarinete para a mão. Eu fiquei assim a olhar para aquilo… pá, com 17 anos um clarinente não é uma coisa que dê para engatar miúdas. Entretanto fui de férias com aquilo, lá me habituei, comecei a gostar daquilo e a trabalhar e a estudar. 

O clarinete é normalmente o primeiro passo para se chegar ao saxofone, não é?

É porque é mais difícil. E não é só. Na realidade das bandas, os clarinetes são como os violinos: precisas de ter muitos para poucos saxofones, poucos trompetes e poucos trombones. Para haver um equilíbrio de som. E os clarinetes é o que faz sempre mais falta. Qualquer miúdo que chegue lá e diga, “ah, quero tocar um instrumento”, “ah, tu vais tocar clarinete”. São todos “escorraçados” para o clarinete porque é um bom princípio. Quando eu volto das férias já a pensar “sim senhor, vou tocar clarinete”, o meu colega do saxofone engravidou a namorada, fugiu com ela e deixou o saxofone na banda [risos]. Ofereceram-me a vaga, “olha, tu queres passar para o saxofone?”, e eu, “ah, ’tá bem, sim senhor”. E pronto foi assim que fui lá parar, por uma série de acasos que me levaram para ali. 

Depois no teu percurso musical não demoraste a encontrar o caminho do pop rock…

Sim. Antes disso lá na banda tínhamos um grupo de baile e fazíamos uns bailaricos ali na zona de Sacavém, Loures, Bobadela e Olivais. Aqueles bailes de quatro horas que acabavam sempre com pancadaria dos bêbados. Foi uma bela iniciação de palcos para nós. Entretanto, o teclista dos Sitiados, que foi uma personagem que durou muito pouco tempo nos próprios Sitiados, era gerente de um banco onde trabalhava um tipo da banda dos Olivais e ele pediu-lhe, “olha, a gente vai gravar uns sopros num projecto que eu ’tou aí começar, tu conheces alguém lá da tua banda e tal?” E eles chamaram o João Marques, o Jorge Ribeiro e outro tipo que era o Gustavo que era irmão do Renato Junior, também produtor musical, e foram eles os três que gravaram o primeiro álbum dos Sitiados. Entretanto, o Gustavo saiu, eu entrei para a banda e eles disseram, “olha, se quiseres, vens tocar aqui connosco”. E eu fui. Sem saber ao que é que ia. E aí foi desde ’90 até ’96, para aí, foram seis aninhos de ouro dos Sitiados. 

E tu inicias-te com uma banda que na altura era a Carolina Deslandes, o ProfJam e os Xutos & Pontapés juntos em termos de notoriedade. Era uma banda de primeiríssima linha. 

Sim, é verdade. Apanhámos o fim da subida e ‘tivemos nesse patamar, naquela coisa dos 150/160 concertos por ano, uns bons períodos. Depois foi acalmando, claro, à medida que foram surgindo coisas novas, o Abrunhosa e por aí fora, mas foi um período muito saboroso porque entre o grupo de baile e os Sitiados houve um ano, salvo erro em ’93, que eu, o João Marques e o Jorge Ribeiro alugámos um Ford Fiesta para andar a bailar entre concertos. Pegámos nele em Junho e entregámo-lo em Setembro. Portanto só vínhamos a Lisboa receber e lavar roupa. Foi incrível.

Olha, achas, e é uma pergunta paralela, que já se deu o valor devido ao João Aguardela? Que a música portuguesa já o celebrou como ele merecia ser celebrado? Quer dizer, há um prémio com o nome dele, mas que eu sinto que é demasiado discreto.

Eu também acho que sim. As coisas não estão suficientemente documentadas, também acho. Não encontro muitos vídeos no YouTube, parece que falta documentação das coisas. Nós realmente andávamos entretidos a tocar e não nos preocupávamos particularmente com isso. Não havia uma preocupação com a imagem como há por exemplo hoje com a Internet e constante exposição. De maneira que, de facto, se calhar será esse o preço a pagar: as coisas vão desaparecendo, ficam os discos e dois ou três videoclipes e, em termos de exposição, a coisa não tem. E alguém que volte a pegar nisso. Se calhar já não há viabilidade comercial que também seria necessária para pôr as coisas outra vez cá fora. O João teve um trabalho incrível porque basicamente pegou numa coisa que era assim meio maldita até na malta do rock em Portugal, que era a parte mais tradicional e popular, e transformou-a naquilo que nós costumávamos chamar o punk rural [risos]. 

É possível ver um arco na tua carreira de aproximação à música negra. Tu começas com o tal punk rural, passas para os Despe e Siga que já têm a componente ska ali no meio e já se começa a acercar da Jamaica. Kussondulola, já com os pés plantados em África/Jamaica. O Wadada a mesma coisa. 

Depois os Cool Hipnoise e os Cacique. 

O blues no Tigerman. 

E os Funk Connection. 

Podemos ver isso no teu percurso? Uma fuga de um “universo branco” para um “universo negro”?

Pá, isto na verdade não foi uma aproximação, foi uma reaproximação, porque a minha mãe nasceu em Angola, eu vivi cinco anos em São Tomé com os meus país até ’81, portanto cresci a ouvir música africana na rádio. Vivi lá e andava em coqueiros a fugir de cobras, brincava com uma catana [risos]. Quando comecei a achar que era séria esta questão de tocar, a minha mãe inscreveu-me na escola do Hot-



Em que altura fazes isso?

Eu fui para lá em ’90. Foi logo a seguir a entrar para os Sitiados. 

Portanto cruzaste-te com músicos dos Cool Hipnoise no Hot.

Depois fiz aquilo em várias incursões. Em ’90 não apanhei a malta dos Cool, apanhei-os depois em ’92 quando voltei outra vez. Fui colega de turma do Gomes, do Tiago e do Chico. E do Nuno e do Paulo. Portanto todas estas coisas sempre estiveram lá. Não sendo um maluco do jazz, porque não é de facto o género musical que mais me fascina, embora me fascine bastante, mas apesar de tudo é um bocadinho hermético. Às tantas sentes mais contaminações de sub-géneros nestes formatos como a pop e a rock que são mais latos, mas adoro muito tocar jazz e dá-me um prazer brutal a liberdade que me é dada quando posso fazer um solo e improvisar. Mas depois tem outros senãos. Como é um género hermético é um bocado mais académico, e depois há um síndrome de comparação entre os músicos que não é muito saudável. É muito académico e muito olímpico e depois às tantas é um bocadinho mais estigmatizado se tocares menos rápido ou… tens os seus senãos, pronto. Mas quando tocas com malta com quem te entendes, é maravilhoso. Isso aí é em toda a música assim. Quando tu consegues perceber que a conversa é um obstáculo e a música é o que faz aparecer ali um objecto extra-pessoas, não tens hipóteses.

Olha, tu vês fases na tua carreira? Só começo a reparar no teu nome nos últimos 10 anos, talvez. Tu identificas uma fase mais conotada com o que é o teu presente ou foi tudo em catadupa?

Há duas fases distintas para mim, que é a dos Sitiados e pós-Sitiados. Enquanto tive nos Sitiados não fazia quase mais nada. E ‘tava ali, fazia o meu trabalho na banda e a verdade é que depois houve uma altura em que nos chateámos todos, eu saí da banda e não tinha nada para fazer. Fui-me bastante baixo, e tive um momento behind the music nessa altura. Então resolvi voltar para o Hot, estudar e a partir daí percebi que nem era saudável para mim fazer sempre a mesma música com as mesmas pessoas o tempo todo. E aí tomei a decisão de diversificar o mais possível e, de facto, a minha carreira de freelancer começou a disparar a partir daí, dos Despe & Siga, quando o Gui disse que ia voltar para os Xutos. Encontrou-me ali à porta do Coliseu, “olha, vou sair dos Despe & Siga, tu não queres ficar com aquilo?” E eu, “pá, claro que sim, adoro os gajos, tocam incrivelmente bem e têm uma banda super trabalhadora”. E a partir daí é que as coisas começaram a desdobrar-se todas de umas para as outras. Dali surgiu o convite para o [Sérgio] Godinho, dali surgiu o convite para a Linha da Frente, que depois deu a passagem para os Kussondulola, que depois deu para o Wadada. E dessas coisas todas do Wadada passei para os Cacique 97 por causa do saxofone barítono; dos Cacique para os Cool Hipnoise; e essas coisas iam todas ramificando cada vez mais. Claro que depois, ao longo deste tempo todo, também fiz uma coisa que foi gravar cento e não sei quantos discos e a escrever arranjos de sopros e a ter uma mão criativa nas coisas, e cada vez mais liberdade criativa porque à medida que as pessoas iam ouvindo as coisas que eu fazia iam-me pedindo mais coisas da minha lavra. 

Já são cento e tal discos?

Ah, sim, na boa. Eu parei de contar para aí aos 120/130 e já foi para aí há uns 10 anos [risos]. Não dá, é impossível. 

É um frame of mind completamente diferente, e tu já experimentaste as duas coisas, o ser um membro de uma banda, mas um membro de uma banda com uma voz activa ou um freelancer que presta serviço aqui e acolá. Qual é a situação mais confortável para ti?

São iguais. Se tu fores da banda e existirem coisas com as quais não concorde à cabeça, porque acho que não são éticas ou que não são correctas, aí vou-te sempre dizer. Acho que essas coisas do karma depois encarregam-se de devolver. Imagina que, por exemplo, os miúdos com quem eu às vezes toco, os DAMA, convidam-me para ir tocar e depois dizem-me que afinal é no congresso do Chega. Eu digo, “olhem, desculpem lá, gosto muito de vocês, vocês são super trabalhadores, super profissionais, mas ao congresso do Chega não vou, portanto se quiserem arranjo um substituto mas não vou”. Não sou da banda, mas tenho esta decisão e espero que respeitem. E arrisco-me a que nunca mais me chamem, mas é a minha consciência. Se eu for da banda, não. Evito que os próprios DAMA vão tocar para o congresso do Chega. É a única coisa que muda. 

Esta situação já aconteceu?

Não. Houve algumas coisas nos Funk Connection por causa de irmos tocar a um jantar de uma empresa. Em vez de ser em troca de dinheiro, era em troca de espaço publicitário. Discutimos, discutimos, discutimos e acabámos por ir porque a maioria votou e assim decidiu. Aí todos temos votos na coisa. É uma democracia meio torta e freak, mas é uma democracia. A única coisa que é comum aos dois frames of mind é que eu ’tou ali, há pessoas que pagam dinheiro para ver um espectáculo, e se estão a pagar dinheiro para ver um espectáculo estão a tirá-lo de outros luxos que poderiam ter. Se estão a abdicar disso para ver um espectáculo, é minha responsabilidade ajudar o meu amigo que me chamou para tocar com ele ou a minha banda a dar o melhor espectáculo possível a estas pessoas. Aí, a postura vai ser sempre a mesma, que é fazer o melhor espectáculo possível. Como é que eu faço, o que é que eu posso fazer para que isto seja incrível para as pessoas que estão a assstir. 

Tu, neste momento, tens uma banda, que são os Cais Sodré Funk Connection. Eles são a tua banda. 

Sim, sim. É onde eu componho e onde tomo mais decisões executivas. Estou mais imiscuído na parte do management. Por motivos mais práticos só alguns de nós é que tomam algumas decisões mais importantes, vá.

Como é que encaras essas duas vertentes? Por um lado és um músico, por outro lado és compositor. O que é que tem ganho mais espaço na tua vida?

O compositor, sem dúvida. Começou nos Cacique e depois ganhei bastante mais espaço nos Funk Connection. 

Os compositores são todos guitarristas ou pianistas, não é?

Normalmente é isso, sim, é verdade, mas eu também toco guitarra e piano, embora não tão bem como as pessoas com quem toco.

Tu escreves em que instrumento?

Normalmente em guitarra. Guitarra ou piano. Se quiser uma coisa mais mellow… olha, digo-te já que nos discos dos Funk Connection todos os meus temas mais soul foram feitos no piano e todos os temas mais funk foram feitos na guitarra ou no baixo. 

Não há composições que nasçam de um lick de saxofone?

Ah, o “Back on Track” sim. O “Back on Track” nasceu ali de um lick de saxofone. 

Portanto, neste momento Cais Sodre é a tua banda e depois tens actividades paralelas, e agora a mais importante será Legendary Tigerman. Certo?

Sim, em Legendary Tigerman eu não tenho como pôr um substituto porque a maneira como toco ali é a minha personalidade. É mesmo uma coisa personalizada. Eu conheço muita gente que toca muito melhor do que eu, mas que tocasse assim e que fizesse aquilo da mesma maneira não conheço, então até lá vou ter sempre de… não é porque receba mais ou menos, não tem a ver com isso, ali não posso ser substituído. 

Olha, fora do palco, em termos de loucura, o que é que é mais rock’n’roll: Cais Sodré Funk Connection ou Tigerman?

Cais Sodré Funk Connection. São muito mais malucos e irresponsáveis. Somos muito mais parvos. No Tigerman também temos os nossos momentos de gritaria na carrinha no fim dos concertos, aliás houve uma altura, numa decisão muito inteligente do nosso management, que era pôr-nos a tocar num sítio e pôr-nos a dormir no sítio do dia a seguir. Então íamos com aquela energia toda na carrinha aos gritos com uma grade de cervejas trazida do camarim, todos felizes e a dizer disparates. Agora entretanto não tem acontecido tanto porque já não há assim tantos em cadeia, e em COVID menos há. Mas isso foi uma decisão muito interessante porque não nos metíamos em alhadas e não arranjávamos problemas. E no dia a seguir já acordávamos calmíssimos para almoçar no sítio do concerto seguinte. Foi genial essa medida. 

Tal como perdeste a conta aos discos gravados, também deves ter perdido a conta ao número de quilómetros e às milhas de voo acumuladas. Onde é que tu te sentes mais confortável? No estúdio ou no palco?

Olha, há 15 anos eu diria no palco. Agora já não. Ambas são divertidíssimas porque para já os estúdios ficaram mais baratos e tu não sentes tanto aquela pressão das horas a pagar. Depois também porque mais de metade do que eu gravo hoje em dia, de freelancer e para outras maltas, é em casa. Nem sequer me desloco. ‘Tou em casa, gravo, mando por e-mail e tenho condições para o fazer com qualidade. De maneira que divirto-me imenso a gravar porque é, e isso se calhar só consegues a partir de uma certa altura de facto, aquele nervoso prazeroso de “não sei o que é que vai sair daqui”. No palco é outra coisa completamente diferente. Tens a lição sabida, ensaiaste, ensaiaste, ensaiaste, e isso aprendi logo com os Sitiados, que era uma banda que de segunda a sexta, se fosse preciso, estava fechada ali em Alfama a ensaiar e depois sexta, sábado e domingo estávamos na estrada. E mesmo que não tivéssemos concertos, estávamos sempre a ensaiar. Era o nosso trabalho. Basicamente todos os dias [ia] para ali para Alfama, ensaiávamos 10h30, 11h, às 14h almoçávamos e depois logo decidíamos se queríamos continuar ou se íamos à nossa vida. A verdade é que me fez perceber que depois o concerto é muito mais prazeroso, a entrega é muito mais solta porque não estás preocupado, “pá, será que é Dó, será que é Ré”, nem sequer pensas nisso, deixa de ser mecânico, passa a ser instintivo. 

És músico de quê? Ópera, jazz, funk, soul?

Não digo. Digo que sou saxofonista. Não me meto nessa alhada, se não é uma chatice. O pessoal é logo, “então tocas jazz não é?” “Sim, também toco jazz, mas eu sou do rock’n’roll”. É muito redutora essa definição.

Mas isso é o que tu dizes para fora. O que é que tu dizes para dentro?

Nem sequer penso em mim enquanto saxofonista [risos]. A verdade é essa. Penso [em mim] como músico. Se me deres uma pandeireta também me vou divertir à grande. Claro que não será uma coisa incrível, mas se for para um concerto com uma pandeireta também faço um bom serviço de certeza. Porque, pelo menos, vou garantir que me vou divertir e alguma dessa diversão vai passar para as pessoas.

Saxofones, tocas todos?

Todos. Quem toca um toca todos. Embora não toque soprano, por causa do Kenny G. Fiquei com anti-corpos [risos].

Podias tocar soprano por causa do Coltrane.

É verdade. Mas também não sou grande fã do Coltrane no soprano. Gosto do Coltrane é no tenor.



É? O “My Favorite Things” soa tão bem…

É. Soa. Mas está um bocado desafinado em certas versões e tal. É o que é.

“A afinação é um conceito pequeno-burguês”, já dizia o Jorge Lima Barreto [risos].

É verdade, é verdade [risos].

Então, és um saxofonista, mas não sentes que és mais de um saxofone do que de outro?

Não, não. Sinto que sou mais saxofonista do que guitarrista ou pianista.

Mas não sentes que és mais tenor ou soprano?

Não. Durante muito tempo era mais tenor. Mas a verdade é que o barítono teve um papel muito importante na minha vida. Nos Sitiados começámos a ouvir Morphine nos anos 90 e aquilo pegou de tal forma que eu, na filarmónica, pedi para mudar para barítono, para não ter de comprar um e poder usá-lo no Sitiados, o primeiro disco em que eu gravei. Aliás, a minha entrada para os Despe e Siga deu-se precisamente por eu ter e tocar barítono. Não havia muita gente. A minha entrada para os Cacique foi a mesma coisa. O Chico Rebelo convidou-me, “tu tocas barítono, não tocas?” “Toco”. “Então tenho ali uma banda de afrobeat e dava jeito que tu viesses”. Foi também daí que fui para os Cool Hipnoise. Portanto, o barítono foi ganhando tamanho na minha vida.

Não há uma grande tradição de barítonos em Portugal, pois não?

Não. É verdade. Porque é um instrumento caríssimo. O barítono que eu gostava de ter custa 12 mil euros. O que eu tenho custa 5 mil, que ainda é uma pipa de massa [risos]. Com os descontos ainda consegui uma coisa mais em conta, mas só o consegui comprar há um ano e meio.

É um BMW ou um barítono?

Exactamente. O meu carro custa só um bocado mais do que o barítono. Mas não muito mais [risos]. Eu tenho uma história engraçada. Nos anos 2000, depois de gravar o 99.9 dos Despe e Siga, fui gravar um disco dos Santos e Pecadores ao Mário Barreiros. Estava a falar com o representante da Selmer cá em Portugal, que era o Paulo Castanheiro, e disse-lhe, “vou ao Porto gravar ao Mário para a semana, se calhar falávamos um bocadinho porque eu estava mesmo a querer comprar um barítono como deve de ser para os Despe e Siga. Estou a tocar com uma lata muita manhosa”. E o gajo “sim senhora, a gente encontra-se lá”. Fui lá, estava a gravar e ele apareceu no estúdio. Depois fomos almoçar e ele faz-me um grande preço… Na altura o barítono custava 2 mil contos, ou seja 10 mil euros. E o gajo fazia-me aquilo por 900 contos. Era um grande desconto. Mais de metade. Eu virei-me para ele e disse assim, “olha, isso é espectacular, mas eu mesmo que venda o meu Renault 5 não vou ter dinheiro para pagar essa corneta. Portanto, eu mais para a frente volto a falar contigo” [risos]. E assim foi. Durante muito tempo andei com aquele remendado. Depois comprei um melhorzinho, que me custou para aí 500 ou 600 contos, na altura, e que era tão mau que eu, uma vez, aluguei-o a um saxofonista italiano incrível — fui vê-lo ao Onda Jazz — e ele tocava soprano e tenor de uma forma incrível e chegava ao barítono e baldava-se todo, coitadinho. No fim entreguei-lhe o dinheiro de volta e disse, “olha, desculpa lá. Não devia ter pedido dinheiro por isto” [risos]. Portanto, eu andei a safar-me com aquele animal durante muitos anos até o vergar à minha vontade. Tipo cavalo selvagem. E finalmente há um ano e meio consegui comprar uma corneta de jeito.

Entrando na tua casa, no teu espaço de criação, que instrumentos é que nós descobrimos lá, além desse barítono?

As cornetas estão todas enfiadas nos estojos, num armário, porque são as que rodam mais neste momento.

Quantas tens neste momento?

Tenho três. Um alto, um tenor e um barítono. São basicamente os que usei aqui no disco. Tenho uma guitarra e um baixo sempre à mão, pendurados na parede. Porque aquilo, qualquer ideia que tu tenhas, é só ligar um cabo e mandar para o computador. Tenho um piano, do meu filho, e um teclado MIDI para os sintetizadores. E há maracas, pandeiretas e coisas assim espalhados pelo espaço.

Quanto aos saxofones, tens manias? Em relação às palhetas, por exemplo?

Não, não. É desolador falar desses assuntos comigo. Os meus colegas ficam todos desanimados. Ainda por cima é uma coisa que eu sempre achei piada, porque muita gente me elogia o som.

Que muitas vezes tem que ver com a palheta, não é?

Ou a boquilha. Há uma febre entre os saxofonistas, de trocar de boquilha de X em X tempo. “Epá, isto não está bom. Vou trocar de boquilha”. E eu não. Eu tenho sempre as mesmas boquilhas, desde sempre. Tirando uma, que ma roubaram. Tentei procurar uma igual e vi-me à rasca porque não me lembrava qual era a que me tinham roubado. As palhetas, uso sempre a número 3 para tudo. São as médias/duras. Se quero tocar mais alto, tenho de tocar com aquelas. Se quero tocar mais baixo, ainda posso ir para uma 2,5. Mas é sempre na mesma palheta.

Foi o Toscano que me disse que gosta de as meter dentro do whiskey. Tu não tens nenhuma mania dessas?

Provavelmente é vodka. Mas não faço nada disso. Se não, depois, bebia a vodka… Esquece lá isso [risos].

Falemos agora deste disco. Eu toquei-o num programa de jazz. Mas isto é um disco de quê?

É um disco de música [risos]. É a única explicação que eu tenho. A filosofia que eu tenho destas histórias todas é que a música é uma e os sotaques é que vão mudando.

É uma boa ideia.

Ou os maneirismos da conversa são diferentes. De facto, eu estou a conversar contigo e o meu discurso é este. Se ‘tivesse com a malta do hip hop, provavelmente utilizaria mais o calão do hip hop. Se ‘tivesse com a malta do reggae ou mais afro, vinha-me ao de cima o sotaque e aquelas dicas. As coisas começam a vir ao de cima. Eu sempre fui um bocado assim. E na música também sou. Portanto isso, curiosamente, foi a coisa que me deu mais trabalho a construir para este disco. O perceber se havia uma identidade e para onde é que eu queria levar as coisas. Quando comecei a compor para isto, primeiro saiu-me um afrobeat. Uma peça para aí de 19 minutos que nunca mais acabava. Era uma jam contínua de afrobeat. A seguir fiz o reggae, que é este “Faray”. Depois fiz o “Whatever Blues”, uma coisa começada com um beat electrónico. Às tantas, “não sei o que é que estou a fazer, vou continuar a apalpar terreno e logo se vê o que é que acontece”. E basicamente aqueles 10 primeiros temas foram todos cada um para seu lado. O “Caravan” também foi nessa fase. O “Afronaut’s Lament” era um semba, que depois o Hélio transformou noutra mais à frente, muito mais tarde. Só quando o Tó Trips entra ao barulho-

Portanto, eras tu a dizer “deixa-me ver quantas línguas é que eu falo”?

Era um exercício académico. Basicamente, a única identidade que havia naquilo era o formato do arranjo, dos quatro saxofones com a secção de ritmo. Depois, quando entra o Tó Trips ao barulho, percebi que aquilo já podia ir para outro lado. Na altura, o DJ A Boy Named Sue andava a mostrar-me coisas muito engraçadas, desde os Khruangbin aos clássicos do rock’n’roll instrumental. “Epá, tu tens de ouvir estas coisas”. E há coisas fantásticas de música instrumental rock’n’roll dos anos 50, 60 ou 70.

Com saxofone.

Exacto. Com saxofone. E eu, para além de ter incorporado muito disso no que faço com o The Legendary Tigerman — fui sempre um gajo da secção de sopros durante muitos anos —, de repente vi-me a ter de fazer coisas à frente do palco e sozinho, sem a minha secção. Isso muda a tua maneira de tocar.

Não dá para te esconderes no meio da multidão.

Não. E não posso fazer a coisa como se estivesse a fazer um solo contínuo de saxofone, porque não é bem isso o que se exige num espectáculo inteiro. Seria uma seca do caraças. Então tive de arranjar uma maneira de me imiscuir no som da banda. A minha maneira de tocar mudou. Todas estas coisas contribuíram para construir este som, que não é bem jazzístico mas também não é bem rockeiro… É um bocado de tudo, não é?

Não vamos já falar nos convidados. Já lá iremos. No departamento de recursos humanos deste disco, além de ti, quem mais está na base?

Sou só eu. Podemos fazer uma excepção para o Ivo Costa, que foi uma espécie de baterista de sessão em, para aí, cinco temas. O resto é tudo convidados. Malta que deu alguns inputs. Tirando o Rui Alves, dos Funk Connection, a tocar bateria numa [faixa] e o Sérgio Nascimento no “Caravan”, o resto são beats ou o Ivo a tocar com contribuições da malta. Uns iam lá a casa almoçar e depois, a seguir, íamos gravar. Os outros gravavam em casa deles e mandavam-me.



Passa-me, então, em revista os convidado de cada tema.

No “Whatever Blues” temos o Gui.

É o nome mais curioso aí no meio. Entendo que a ligação há-de vir dos Despe e Siga, não é?

Dos Despe e dos Sitiados. Fizemos muitas primeiras partes dos Xutos.

É o único saxofonista que nunca fez mais nada a não ser aquilo.

Porque não quer! Não é por falta de talento. É porque não quer. É um “anhante” do caraças. Está sempre a dormir. “Epá, não me apetece. Eu prefiro jogar ténis. Tenho a minha vida orientada. Não quero saber disso, tenho filhos para criar”. Está sempre nesta conversa o gajo. A desperdiçar talento e a não fazer muito mais do que isto. Mas é um amigo de longa data, porque já era o Gui, um gajo grande do saxofone em Portugal, quando eu comecei a tocar. Na altura eles eram para aí uns seis. Havia o Edgar Caramelo, o Nanã Sousa Dias, o Jorge Reis, o Artur dos Trovante, o Rão Kyao, que já tinha deixado de o ser, e o Gui. Eram estes. Depois apareci eu, que não era ninguém, andava ali… Mais tarde, o Rui, dos Santos e Pecadores, também apareceu. Portanto, o Gui era um dos grandes. Achei piada, porque eu estava a fazer o soundcheck dos Sitiados e ele vem ter comigo para me cumprimentar, sem me conhecer de lado nenhum. “Grande malha, já tive a ouvir umas coisas tuas nos Sitiados e curti bué. Sim senhor”. Eu achei incrível esta boa onda do Gui e, desde então, sempre fomos amigos. O “Whatever Blues” foi exactamente isso. Eu acabei o tema e fiquei a olhar para aquilo tipo, “isto está fixe, mas precisa aqui de qualquer coisa diferente. Não sei muito bem o quê. Um solo não, porque já tenho aqui cornetas que chegue. Só se eu pedir o solo a alguém…” Então lembrei-me de que havia um saxofonista que eu gostava muito de ter ali. É o único que eu gostava muito de ter ali, que é o Gui, o meu compadre. Cravei o gajo e ele recusou. “Epá, não. Não vou estar a estragar isso”. E eu, “vá, grava lá essa cena, três/quatro takes, e eu escolho os melhores. Não te preocupes que vai ficar muito bom”. E ficou muito bom. Ficou uma grande malha.

Ele gravou em casa?

Gravou no estúdio dele e mandou-me três, quatro pistas e eu fiz um best of. Basicamente, a única coisa que fiz foi trocar o primeiro solo com o segundo, porque servia melhor a canção. Depois temos o “Snake Eyes”, que tem o featuring do Ivo Costa. Isto já foi quando eu abri a cancela aos compositores exteriores. Estava já com aquela engatada de pedir ao Ivo para gravar baterias, como baterista profissional e amigo que é. Já tinha falado com o Tó e perguntei ao Ivo, “tu não tens por aí nenhum beat que tenha sobrado de alguma sessão, que gostes muito e que eu possa compor por cima?” E ele só me disse, “por acaso tenho aqui uma coisa que sobrou duma sessão do Agir, que não foi usado, e se quiseres posso-te mandar isso”. Eu disse, “manda sim senhor”. O gajo mandou-me aquilo e eu fiz um tema assim meio inspirado nos Budos Band, mais naquela onda meio dark funk, meio fantasmagórica.

Do foro psicadélico.

Exacto. Assim mais escurinho, para não descolar muito da onda dos rock’n’rolls que tinha ali. E foi o que ficou, o “Snake Eyes”. O resto é tudo tocado por mim. No “Afronauts”, era o tal que era um semba. Eu estava a pensar que aquilo estava a ficar demasiado standard e lembrei-me do Hélio, porque nós tínhamos feito a tournée do Rumble In The Jungle com o Tigerman e achei muita piada a forma como ele aborda a bateria. Aliás, eu também tinha colaborado com os PAUS quando eles fizeram um concerto com sopros, no Lux. Foi muita giro. Gostei muito desse concerto. Por acaso tive muita pena de não repetirmos a experiência. Foi assim uma coisa, uma abordagem mais afrobeat, mais escura, e com dois barítonos e dois trombones. Uma secção assim mesmo negra e densa. Foi muito fixe. Então cravei o Hélio para me oferecer uma ideia. Ele mandou-me uma maquete e eu disse, “sim senhora, não estava nada à espera mas pode ser exactamente aquilo que eu quero”. Fui lá, gravei no estúdio dele, e ficou maravilhoso. Ficou incrível. A seguir pedi ao João Gomes para meter teclas à vontade dele. Eu ao João Gomes não preciso de lhe dizer nada. “Olha, faz música nisto”. A nossa relação é maravilhosa nesse aspecto. Não precisamos de falar muito sobre isso. O gajo mandou-me logo aquela psicadelia toda daqueles clavinetes todos marados e os pianos arpeggiados. Foi muito fixe. Depois pedi ao David Pessoa, “grava-me aqui uma guitarrinha daquelas com wah-wah, mais seventies, que isto vai render”. E ficou. A seguir, no “Caravan”, aproveitei uma sessão de estúdio em que estava a fazer a música do Festival da Canção. Contratei o Sérgio Nascimento, meu grande amigo dos Despe e Siga e do Godinho, para gravar nessa música do Festival da Canção e disse-lhe, “já que tens isso montado, não queres gravar aqui este tema, se faz favor?” O beat era muito talhado para ele. E, de facto, foi. O gajo limpou aquilo em dois takes assim do nada e foi maravilhoso. Foi um dos quatro temas que mandei para o Paulo Furtado para ele escolher e meter um input. Ele escolheu este e depois perguntou-me, “tu queres guitarra ou queres sintetizadores modulares? Queres voz? Queres o quê?” Eu disse, “faz o que te apetecer”. Ele fez sintetizadores modulares e ficou maravilhoso, porque aquilo era uma espécie de “Baby Elephant Walk” do Mancini, mais pausado e pesado. E ele de repente deu-lhe uma densidade fumarenta, negra, muita boa, que ficou fantasmagórico, assombrado, super maravilhoso. A seguir temos o “Dancing With Boots”, que é a tal história que eu já contei do Tó. Pedi-he o tema e foi maravilhoso porque desbloqueou todo o processo de composição do resto do disco. Do tema 10 ao tema 21 foi tudo uma catadupa de inspiração. Foi ele mandar-me aquele riff com a guitarra e eu depois olho para aquilo… Já tinha corrido muito bem a parceria da Orquestra das Caveiras para o Odeon Hotel. Tive a sorte de ter gravado nesse disco. Confiei no instinto. Comecei a tocar aquilo e pensei, “está aqui uma coisa muita negra, acordes menores. Eu vou puxar isto para uma coisa mais exótica, meio estranha, tipo aqueles castanhos do pôr-do-sol e da palmeira do Havai”. Embora assombrado, foi mais parar aí. E foi muito rápido, lá está. Foram duas horas e meia para o tema ficar todo fechado e depois foi só gravar a bateria com o Rui Alves no estúdio do Chico Rebelo.

O “Desperado” começou como o “Whatever Blues”. Descobri um som de caixa de ritmos maravilhoso, com um sub-grave incrível, uma tarola daquelas que sobraram dos tempos do drum and bass. Construí o beat e depois, de alguma forma, os Dap Kings voltaram a assombrar-me e fiz um tema que foi parar mais à zona dos Budos Band mas, ao mesmo tempo, tinha ali uma coisa qualquer meio fadista, meio Dead Combo, meio Sitiados no início, antes da “Vida de Marinheiro”. Daí o casting para a Sandra, para o João Marques e para o Jorge Ribeiro, que são os colaboradores deste tema. Consegui juntar três ex-Sitiados aqui neste tema.

No “SOS” não tenho ninguém. Só o Ivo a tocar bateria, tal como a desenhei. É a única que não tem convidados. É um tema que foi feito já na fase em que andava a ouvir muito The Comet Is Coming, os BADBADNOTGOOD… A descobrir coisas novas e muito interessantes que andam aí. O “We Andrea” foi outra parceria de composição, com o Samuel…

É um bocado o coringa neste disco, não é?

Nós já trabalhámos juntos.

Já trabalharam mas, ao mesmo tempo, tendo em conta o universo que estás aqui a explorar, acaba por ser uma surpresa.

É verdade. Eu admiro muito a qualidade do Samuel como rapper mas também — se é que não admiro mais ainda — como produtor. Eu acho que ele escreve incrivelmente bem. É inacreditável a eloquência do Samuel. Mas acho que o gajo é um incrível produtor musical. Os beats do homem são incríveis. Ele tem um conhecimento enciclopédico da música portuguesa e dos baús todos que andam aí.

E é um grande arranjador.

Exactamente. É mesmo isso. Lembrei-me que, na cultura do hip hop — e tu saberás melhor que eu —-, há montes de malta que vai ter com produtores para pedir um beat para fazer o seu rap. Eu liguei para o Samuel, e nós até somos vizinhos, “arranjas-me aí uns beats para eu fazer a minha cena?” E o gajo, “epá, claro, aparece aí”. Eu estive lá com ele e varremos uma biblioteca gigante do homem, que tem lá beats feitos, uns mais acabados outros menos. ‘Tivemos ali duas horas a escrutinar ficheiros e não sei quê. Eu fiquei com dois. Um que era uma coisa mais suspensa, em ternário, uma coisa assim mais misteriosa, e este, que é o “We Andrea”. O outro, montei-o na sessão, reagi àquilo e deixei-me levar pelo instinto. Ficou uma coisa que faz lembrar o genérico do Game of Thrones. Portanto fiquei assim um bocado naquela, “fica aqui guardado, pode ser que algum dia sirva para alguma coisa”. Mas este não. Ficou uma coisa muito seventies, blaxploitation, muito marcada pelo funk, aquele p-funk lixado. Até começou por pecar por ter riffs a mais. Depois comecei a fazer o emagrecimento da coisa. Tipo o Prince. Gravava ideias a mais e depois ia esmiuçando até aquilo ficar fixe. Entretanto meto aquele piano, meio latino, na secção do meio e na secção final, e já começa a puxar aquilo para outra zona. Isso dá-me um feeling religioso e então aí tive de chamar a Selma para gravar um coro de gospel comigo. Aquele coro gigantesco que aparece no final, na verdade são para aí 10 Cabritas e 10 Selmas a fazer “oooh” [risos]. É muito fixe. Divertimo-nos muito a fazer isto e a Selma é uma daquelas irmãs… Tipo o Cabrita das cantoras. Está sempre espalhada entre mil projectos e é super versátil. Adoro trabalhar com ela.

O “Farai”, lá está, tinha sido das primeiras a ser feitas. Foi a segunda. Convidei logo o Milton — na altura estávamos a trocar ficheiros — e ele enviou-me a guitarra, que ficou maravilhosa. Tanto neste como num afrobeat que não saiu, ficou fora à espera de outras circunstâncias. O Ivo também gravou bateria.

Por fim, no “Never Gonna Give It Up”, fui chamado à razão pela minha mulher. “Tu tens tantos amigos cantores, como é que não tens um tema para os cantores? O pessoal vai ficar triste por não participar”. “Bem, tens razão”. Então aí fiz a letra, que é uma espécie de súmula da ideia do disco, que é “enquanto houver canções, a gente vai continuar a tocar.” Fiz uma espécie de coro, tipo Rotary Connection, “I Am the Black Gold of the Sun”, embora muito mais doce e sunset e rooftop. E pus o meu filho a tocar piano, também.

E isto vai acontecer num palco?

Já aconteceu! Já teve dois concertos. Um pré-COVID19 e um pós-COVID19.

Mas com esta gente toda? Era nesse sentido a pergunta.

Ah, não.

Mas vai acontecer?

Eu espero que sim. A minha ideia original era fazer o lançamento do disco assim. Só que com o COVID não podemos fazer estas coisas muito completas. Não há espaço… Está hipoteticamente guardado para o fim do ciclo. Quando acabarmos de dar a volta a este disco, que eu espero que seja uma volta bonita e grande, fazemos isso num sítio maior e com mais capacidade para pôr esta malta toda no palco. Acho que ia ser bonito.

Tendo em conta as nuvens pesadas que estão em frente, não achas que teria feito melhor o teu filho ir para a meteorologia, como os teus pais, do que para o piano, como tu?

Epá, não [risos]. Acho que não. Isso tem a ver com uma máxima do meu sogro — ele foi instrutor de condução toda a vida, sempre trabalhou por conta própria — que é “quando a gente faz um bom trabalho, o trabalho vai sempre aparecer”. E se tu fizeres com gosto… É o que digo aos meus filhos, sempre.

Mas ninguém estava preparado para o que estamos a viver.

É verdade. Não estávamos. Mas ele, felizmente, está a estudar e quando isto acabar ele haverá… Aliás, ele dá aulas a colegas e a miúdos mais novos.

Falavas-me de um concerto pré-COVID19 e um concerto pós-COVID19. Portanto, estiveste seis meses sem pisar um palco?

Não. Felizmente faço outras coisas. O último concerto que fiz, de Cabrita, antes da pandemia foi no dia 6 de Março, no Clap Your Hands, em Leiria. Depois estive até Junho sem fazer um concerto, sim. Comecei por ter o Eléctrico, do Tigerman e dos Funk Connection, depois tive alguns concertos do Tigerman, principalmente coisas de one man band e muitos concertos em streaming, contratados por câmaras, em sítios estratégicos da cidade, para oferecer à população, em digital, ou outros sítios até ao ar livre. Depois fizemos o CCB com os Funk Connection, o Teatro Stephens e mais uns concertos do Tigre. Fiz no dia 3 de Agosto, no Maria Matos, o concerto que será o concerto “normal” do Cabrita. Foi muito prazeroso, também. Diga-se de passagem.

Tem-te assustado a situação que estamos a viver, de ver salas vazias ou a 30/50% da capacidade?

Sim. É muito ingrato. Eu percebo que a segurança das pessoas está em primeiro lugar e não há como pôr isso em causa. Mas, de facto, o que acontece com esta história das lotações limitadas é que muitos dos espectáculos ficam inviabilizados. São muitas pessoas a trabalhar, muitas despesas que não conseguem ser mitigadas porque os bilhetes não rendem. A não ser que os metas mais caros, mas as pessoas, o resto do país, não estão a ganhar mais dinheiro. Portanto, não é comportável. Há algumas soluções que estão a ser tentadas, que são a questão das sessões duplas, concertos um à tarde e outro à noite, para rentabilizar recursos e bilheteira, basicamente. Mas enquanto não aparecer uma vacina que nos safe, aos nossos velhinhos e pacientes de risco, não vamos voltar ao normal. E isso custa-me um bocado.

Estás preparado para um futuro mais digital? Ou seja, toda a música que tu foste fazendo estes anos, do pop rock ao ska, do reggae ao afrobeat e ao funk, é uma música muito física e que exige muito da entrega do próprio público. Agora só dá para tocar para gente sentada. Imagino que te faça confusão.

Sim. E tens o exemplo clássico disso. Com o Paulo Furtado não, porque fazemos auditórios. Mas Cais do Sodré Funk Connection quase não tocam em auditórios. É quase um contrassenso pôr pessoas em cadeiras a ver uma banda de funk, em que mal começa o primeiro acorde começas a querer bater o pé. Portanto, vamos ter de nos reinventar. Vamos ter de fazer as coisas um pouco mais soul. Aliás, já estamos a preparar isso. Estamos a preparar um espectáculo um bocadinho diferente, exactamente para fazer frente a essas coisas. O Cabrita é uma coisa que, por exemplo, encaixa no formato de concerto de jazz. Já é mais viável acontecer indoors, com auditórios. Mas o mundo do digital é uma coisa assustadora. Principalmente porque nós, da velha guarda, não estamos habituados a toda a linguagem, a toda a comunicação que é feita, a toda esta cultura que tu vês na malta do hip hop, dos miúdos dos Wet Bed Gang… Desta malta toda nova que anda aí. Aquilo é assustador, a quantidade de tempo que é investido nas redes sociais, que é uma coisa que nós não temos enquanto geração nem enquanto cultura musical. Vamos ter de nos habituar a isto. Vamos ter de nos adaptar de alguma forma. Não acredito que seja de uma maneira tão radical, que consigamos obter milhões de views nos espaço de uma semana, mas alguma coisa teremos de fazer. O nosso público continua aí e ele também se está a adaptar às circunstâncias. Basicamente temos de nos encontrar do lado de lá.


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