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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/08/2023

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Julho 2023

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 02/08/2023

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[Video Dave & Controller 7] ArticulatedTexTiles

Se o que estavam a precisar era um conjunto de momentos de aprendizagem ou de uma mão cheia de lições dadas por aquele tio divertido, mas sensato, está aqui a resposta divina para as vossas necessidades. Video Dave, nascido em Chicago, convida Controller 7, produtor nascido na Califórnia, para um disco editado pela editora Fake Four Inc, baseada no Connecticut. Reparem bem na mistura que vai para aqui. Heady na lírica, como seria de esperar de alguém com as credenciais de Video Dave, mas por cima de beats leves, veranis, harmoniosos, que não são feitos para assustar nem serem avassaladores. Sempre um belo pano de fundo para música amorosa, emocional – não necessariamente triste, mas tingida de uma melancolia quase nostálgica, com Dave a ser claramente ciente de quem é, olhando para o seu passado e para as suas experiências, contando-as sem vergonha e sabendo que está a ser o melhor que consegue ser. Todas estas experiências e todos estes passados vão sendo explicados, adjetivados e descritos com a ajuda de referências de cultura fílmica, musical e filosófica dos anos 90, criando imagens mentais ornamentadas e muito detalhadas para os ouvintes. 

De 43 minutos de duração, aproveitam-se todos os segundos, saboreia-se a coesão e a coerência dos crescendos e dos diminuendos, deliciamo-nos com a seleção de batidas, e ainda temos direito a um dedo com condão para a escolha de features – que acrescentam sempre um belo ponto aos contos tecidos por Dave.


[Ja’king the Divine & Javi Darko] Fear & Loathing in Long Island

Escuro, sombrio, assustador em partes e palpavelmente real ao mesmo tempo que é fantasioso nos cenários supernaturais que vai enleando. Ja’king the Divine e Javi Darko são rappers nova-iorquinos que assumem as personalidades de Doctor Wayne e Professor Kubrick, respetivamente, personagens estas que mergulham em Long Island na perseguição do sonho americano, sempre sobre a influência de drogas pesadas – o conceito aqui é homólogo à história e ao conceito originalmente de Hunter S Thompson no seu livro com nome praticamente igual. Tal como o jornalista do Kentucky que fez a sua vida reportando um jornalismo na primeira pessoa, os nossos dois poetas descobrem todas as partes sujas, vis e sangrentas da sociedade americana – e contam todas as maneiras de como esta sociedade os trata – dois homens negros constantemente sujeitos à uma diminuição desumana.

A vibração que emana e as influências que usa nas mangas são de um horrorcore gutural e sangrento, tanto nas rimas, cuspidas com intensidade agressiva e apontadas diretamente ao coração dos adversários, como nas batidas, que vão viajando entre um boombap brooklyniano do mais tradicional até às novas introduções mais experimentais nos ritmos e nas percussões. Um cativante take sobre o medo e o ódio, desta vez na costa este.


[Pro Dillinger & Wino Willy] Dirty Work

Iniciado e acabado com um monólogo de uma apresentação que soa a Ted Talk – onde uma voz feminina descreve os “trabalhos sujos” e discorre sobre as perspetivas externas sobre eles e sobre as reações que eliciam —, Dirty Work é o novo trabalho colaborativo entre o rapper Pro Dillinger (mais um nova-iorquino) e o produtor do Louisiana Wino Willy.  Sugerindo novas perspetivas e um olhar interno sobre os mais marginalizados, é uma ode a todos os trabalhos sujos, sejam eles de que tipo forem, berrada diretamente na cara do ouvinte, com uma voz pujante, em que se sente na primeira sílaba a experiência e a história do seu braggadocious. Nas mesmas linhas desse envaidecimento e engrandecimento, há também um sentido enaltecimento às comunidades que revolvem à volta do “trabalho sujo”, em que se sente a força das ligações humanas criadas dentro dele, sejam elas familiares, laborais ou platónicas. Tudo o que nasce e cresce dentro delas torna-se quase bélico na sua intensidade, e os sentimentos que brotam parecem ser sempre os extremos do espetro emocional humano, talvez porque estas vidas ocorrem nos extremos da sociedade, sem a atenção que merecem, condenando uma faixa demográfica a viver nesses ditos extremos. É uma glorificação do hustle, do trabalho duro, da urgência e da necessidade de fazer dinheiro, de todas as maneiras de sobreviver no mundo e numa sociedade impiedosa.


[Yungwebster] Yungwebster

O album homónimo de Yungwebster, o primeiro (!) da curta carreira do rapper baseado em Nova Iorque (prometo que esta propensão não é intencional, mas é a capital do hip hop por alguma razão), parece ser o reduto final para as correntes mais ambientais que foram introduzidas no hip hop mainstream há pouco mais de uma década. Este lançamento da Sferic, editora de Manchester, soa-nos à conclusão do caminho que tem sido traçado por Future e por Travis Scott, onde a escolha de sons e de batidas passa muito por panoramas sonoros que vão buscar muita inspiração às sonoridades psicadélicas, lentas e nubladas. A bandeira axadrezada, é então, uma execução sónica com uma atenção milimétrica ao detalhe, seja ele aplicado nas texturas usadas, na cadência nas faixas, na inovação no uso de técnicas como o autotune, ou na distorção irreconhecível dos graves. Yungwebster é uma experiência sónica total de uma ponta à outra, e sentimos as canções a transformarem-se completamente dentro delas próprias, em que quase podíamos aplicar o conceito de “movimentos” como na música erudita. Entramos numa espécie de mar de som em que as mudanças de tom, de ritmo, de vocais, de flows são vagas e vagas de ondas a lavarem-nos os ouvidos. É difícil apalavrar mais as sensações quase saudosas, sempre ampliadas exponencialmente por um reverb ou um filtro, que esta música causa. Audição absolutamente obrigatória se vos interessa um marco novo na expansão do hip hop.


[Big Bllakk & Rock Danger] ERREJOTACULTDRILL, Vol. 2 – Esquema Novo

Em que outro sítio do mundo poderia uma vertente do drill sensual, carinhosa, quase erótica nascer exceto no Brasil? A discussão fica aberta. Nesta nova edição da Rock Danger, editora canarinha que tem vindo a expor alguns dos nomes mais excitantes do hip hop brasileiro, as batidas contêm dois mundos, que não lutam entre eles, mas se completam – o dos graves poderosos e pesados a que estamos habituados neste género, e o da suavidade quase lasciva na samplagem, nas harmonias e na instrumentação. Os vocais partilham esta ambivalência – a voz grave e tensa de Big Bllakk, rapper do Rio de Janeiro, soa-nos sempre a pillow talk, mesmo quando se afasta de temas mais íntimos e parte para o hustle, o struggle, a ostentação ou até a luta de classes. De qualquer maneira, seja no amor ou na vida, economicamente ou psicologicamente, há sempre uma esperança bem significante na lírica. Não surpreende, dadas as suas declaradas influências neste projeto: a capa e o nome são tributos a Jorge Ben Jor e as inspirações baseiam-se na MPB de Vinicius de Morais, de Djavan e de Bebeto, nomes que o próprio referiu em entrevista ao Reino Literário, em que descreve um pouco sobre o que são as faixas e a sua intenção nelas. Vale a pena ler, e vale a pena ouvir.

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