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Fotografia: Lucas Creighton
Publicado a: 07/02/2024

Um reforço de Leonardo Pereira aos discos de hip hop que ficaram pelo caminho.

Burburinho: Janeiro 2024

Fotografia: Lucas Creighton
Publicado a: 07/02/2024

Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.


[evilgiane] #HEAVENSGATE VOL. 1

evilgiane entra em cena com o coletivo Surf Gang em 2018 e nunca olhou para trás. Em menos de 5 anos, tornou-se num dos mais conceituados produtores nova-iorquinos, procurado e encontrado tanto por artistas up and coming como pelos pesos pesados da indústria como Kendrick Lamar e Baby Keem (produziu a sua “The Hillbillies”) ou Earl Sweatshirt (“Making The Band (Danity Kane)”). O seu estilo é eclético e não se identifica como beatmaker de um só estilo, e isso é perceptível imediatamente depois de se ouvir qualquer uma das suas faixas. Pouco se importa com o número avassalador de texturas e temas sónicos que aborda, e o seu estilo de produção é único e singular — o segmento do hip hop em que se insere já é conhecido pela vasta experimentação, e mesmo assim contam-se pelos dedos de uma mão os produtores que arrisquem tanto como ele em enveredar por tantos caminhos musicais. 

Este #HEAVENSGATE VOL. 1 representa perfeitamente esta sua independência sonora. De uma ponta à outra, nunca sabemos bem para onde estamos a ser levados. Passamos por baladas cantaroladas emocionalmente, com refrões a pingarem amor; traps diretos das ruas a ribombarem graves abrasivos; beats extremamente dançáveis a roçarem o house; pluggs psicadélicos lado a lado com drills etéreos, e até um toque ou dois de phonk a temperarem o cozido. Da mesma maneira que vai mudando de género como se se muda de roupa interior, todos os seus convidados fazem por valer a pena a sua presença das suas próprias maneiras, seja pela flow disparada de Slimesito, as melodias harmonizadas de LUCY, as explorações auto-tune de 454, o quase spoken word gritado de Rx Papi, ou pela outra mais de uma dezena de rappers que aqui se fazem ouvir. Juntem-se ao culto. 


[ITSOKTOCRY] HESH

Quando ouvimos ITSOKTOCRY em HESH, estamos perante alguém que se recusa a não admitir todas as figuras constrangedoras e momentos desconfortáveis em que já participou. A carreira do rapper do Colorado já se vem traçando desde 2017, nunca se afastando muito de um rage puro e duro, proveniente dos cantos mais recônditos da internet, usando todo o vocabulário online das redes e abordando temas que podiam ter vindo de uma thread do X (antigamente conhecido como Twitter). Tudo isto causaria embaraço a ouvir se o próprio vocalista não carregasse consigo uma lucidez diferenciada. Este fato deixa-o naquela linha ténue de não se levar a si próprio tão a sério que se desloca completamente da sua personalidade, mas também não se nega a gabar-se que sabe o que está a fazer e dos frutos que isso lhe deu. No final de tudo, há que respeitar alguém que ostenta a sua riqueza dizendo “I been stacking bricks up, I’m at Lego Land”.

As beats não descansam nem um minuto e o álbum é permeado de uma intensidade que faz dos seus 20 e poucos minutos serem um ataque constante de hype e a habitual stank face. Se a vossa playlist de festa vai de Baby Keem a Playboi Carti, experimentem um bocadinho de ITSOKTOCRY na rotação. Fará todo o sentido, e prometemos que não chorarão (apesar de ser OK fazê-lo).


[Unknown T] Blood Diamond

Unknown T é, ao mesmo tempo, sombrio e carinhoso, nas mesmas vias: nas suas comunidades, no amor, na maneira como navega a indústria, no caminho que traçou para chegar aonde está, nas suas inspirações e nos seus orgulhos.

A fórmula em Blood Diamond se baseia já é uma a que estamos habituados — o UK drill equilibra-se em pilares bastante reconhecíveis — mas há aqui uma tentativa de ir mais longe, muito mais longe. A quantidade de esforço, de lustro e de trabalho que se sente neste disco separa-o completamente dos seus pares. O samplework é brilhante e torna todas as canções em que é um elemento significante orelhudas; as flows nunca se distanciam umas das outras, mas são executadas com uma pontaria incrível; a coesão do álbum vai compondo uma experiência total, onde sentimos que estamos legitimamente a ser introduzidos a um artista na sua integridade. 

Toda a gente conhecerá o seu nome através de Homerton B, mas nem toda a gente conhecerá a profundidade da sua mestria. Com este seu terceiro projeto, todos deixarão de estar ignorantes.


[999 Heartake Sabileye] LORD FORGIVE ME

Este será um bocadinho diferente de todos os outros álbuns que fomos abordando no Burburinho. LORD FORGIVE ME é um disco de mashups e regista-se como o quarto álbum oficial de 999 Heartake Sabileye, um projeto paralelo de edodisco, que despontou à boleia da vaporwave do final da década passada. Com este pseudónimo tem sido mais prolífico nos últimos anos, lançando uma bela quantidade de mixes, EPs e remixes desde 2019, e em 2024, no primeiro de janeiro, chega-nos este que é um dos álbuns mais emocionalmente impactantes dos últimos tempos. Não pelos métodos habituais, mas pela pura expressão pessoal que se sente no trabalho de juntar e misturar outras músicas. Parece haver uma pontaria para todos os sentimentos que são evocados ao mesmo tempo que a nostalgia — ideia principal do disco. E desta ideia constrói-se um monumento a todas as maiores vertentes da cultura do hip hop.

Talvez não seja a expressão mais elegante dessa cultura e desse género, mas a junção de tantas referências da ideologia vivida do hip hop, tanto dentro dele (a própria música) como fora dele (os desportos que se acompanham, as suas celebridades, os media consumidos e a própria vivência das comunidades à volta dessa cultura) tornam-no um álbum notável. As samples do discurso de MVP de Kevin Durant ou da vitória final de LeBron James com os Cavaliers, a conversa casual de amigas e amigos do produtor que se vai dividindo pelas faixas, relembrando um podcast, entrevistas do canal de Youtube Channel 5, conhecido pela sua excentricidade, a junção do instrumental de um funk brasileiro com vocais de Celine Dion e melodias de Phoebe Bridgers — todas as transformações e beat switches que fazem com que cada canção seja uma experiência única, mesmo depois de as termos ouvido milhares de vezes. Não há limites para a imaginação humana. E se pensavam que a “Shake It Out” dos Florence + The Machine não poderia ser retrabalhada para ter um instrumental de drill, está aqui a prova em contrário.

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