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Fotografia: NashDoesWork
Publicado a: 20/11/2020

Da adolescência dos novos fados à importância de dar voz aos novos protagonistas.

Branko: “Sinto que estou a cumprir a minha função de levar as pessoas a descobrirem música nova e diferente”

Fotografia: NashDoesWork
Publicado a: 20/11/2020

Quando o mundo começou a fechar-se em Março, houve quem reagisse bem, houve quem reagisse mal, e houve quem reagisse como se estivesse a preparar-se para isto há anos. No caso de Branko, e em retrospectiva daquilo que acabou por fazer nos últimos meses, a sensação é que tinha pronto um plano B para accionar em caso de catástrofe. Mas não: “Foi uma reacção pura. Não tinha um plano para tomar conta do mundo pós-apocalíptico”, conta-nos, entre risos, numa conversa que aconteceu pelo Zoom. “Talvez seja por isso que gosto tanto de viajar: sempre fui um bocado de sentir que tudo é relativo, que nem tudo é fixo e que nem sempre a minha relação com as pessoas que me seguem e me ouvem tem de ser através do formato normal, de um concerto, de uma noite… Às vezes tem de ser diferente. E às vezes tem de ser diferente durante um período mais longo do que se pensava que era. E às vezes quando se pensava que já vai estar normal, ainda vai ter de ser diferente mais um tempo. É um bocado essa a realidade que temos estado a viver. Tenho-me tentado adaptar. Prefiro isso do que ficar um bocado aos gritos na redes sociais: ‘Deixem-nos trabalhar! A noite precisa de funcionar!’ Acho que não se precisa de nada. O que precisamos mesmo é que o mundo consiga superar este problema, esta crise de saúde que está a atravessar. A partir daí logo se vê. Se calhar há coisas que vão melhorar, outras que vão piorar. É tudo uma questão de ir reagindo.”

Se alguns artistas têm uma visão menos optimista, como é o caso de Capicua, que reflectiu sobre isso num texto publicado nos Cadernos da Pandemia, o co-fundador da Enchufada prefere olhar de uma forma mais positiva para tudo o que está a acontecer:

“A música sempre foi super autossuficiente e sempre foi uma das formas de arte que, mais automaticamente e mais rapidamente, chegou às pessoas a vários níveis. Nunca precisou de uma folha de sala, nunca precisou de se explicar, nunca precisou de absolutamente nada. E aquilo que eu sinto é que a música vai continuar a ser assim. Vai continuar a ser este parente ‘maluco’ das artes que não precisa de financiamentos. Precisa de um quarto e de um computador. De beats. De uma voz. De um gravador de quatro pistas. Precisa do que quer que seja para se fazer ouvir e chegar às pessoas. No meio daquilo que é a música hoje em dia, e no meio da forma como as pessoas consomem música hoje em dia, eu não sinto que tenha ficado desvalorizada, sinceramente. Aquilo que eu sinto é que, se calhar, quem tem — e a Capicua é um bom exemplo disso — conteúdo e alguma coisa para dizer através da sua música mais facilmente passou a sua mensagem nesta fase do que se calhar passaria numa fase normal, de concertos e de fazer espectáculos pelo país fora, em Queimas das Fitas e outras coisas, onde se calhar o público já está para lá do alcoolizado…

Tivemos aqui um bom momento — e estamos a ter ainda — para passar mensagens e para passar consciência. Se isso é de graça ou não, eu não sei. Eu acho que, inevitavelmente, nós encontramos formas de monetizar o que está a ser feito. Porque é que a minha escolha é, de tempos a tempos, meter um set no YouTube? É nesse sentido. Existe uma certa abordagem, mais livre e menos presa aos moldes normais da música ao nível do Instagram e tudo isso. Mas, de tempos a tempos, vou agarrar nisso e vou meter no YouTube. O que é que acontece? Tenho muita gente que se queixa, ‘é complicado ouvir os teus sets aqui porque tem sempre anúncios entre as músicas todas’. Eu faço questão de responder a esses comentários. Para mim são esses anúncios que estão a pagar a minha vida e a das pessoas que estão a tocar. Ou seja, cada vez que ouves um anúncio, a música que vem antes ou depois ganhou [algo], nem que seja 10 ou 15 cêntimos. Muitas vezes essas músicas são da Enchufada e muitas vezes esse ciclo acaba por se completar nesse formato. Se eu acho que a música está a receber o dinheiro que deveria estar a receber? Não. Mas cabe-me a mim lutar e encontrar formas de a monetizar. De tentar sobreviver com isso. Eu sinto que ainda não existe uma plataforma paga de concertos online que funcione perfeitamente e em que as pessoas estejam super habituadas a consumir. E uma das razões para isso acontecer é que ainda ninguém inventou nada plenamente funcional a esse nível. Eu não sou programador, por isso estou longe de conseguir inventá-la. A mim só me cabe tentar fazer aquilo que sempre fiz, que é hack the planet e tentar dar a volta, tentar monetizar a coisa.”

De rooftops em Lisboa a sets na Serra da Estrela, passando por lives no Instagram por esse Portugal fora ou, também, uma actuação no Eléctrico, João Barbosa não perdeu o foco, transformando as adversidades em oportunidades de repensar alternativas para futuros menos físicos e mais digitais:

“A principal moral da história que tirei é que o meu diálogo com as pessoas deixou de ser um diálogo de acção-reacção ou acção-consequência. Essa relação directa em que eu escolho uma música e a pessoa escolhe reagir a essa música — ou canta e salta, vai à casa de banho ou vai ao bar, fala com o amigo sobre o trânsito que estava para chegar ao festival… Eu sinto que isso é uma relação importante mas, ao mesmo tempo, consegue ser tida de outra forma. Entendi que não é necessário, tirando o lado muito especial da energia que se vive numa sala — isso sim acho que é impossível de replicar. A ideia deste diálogo com as pessoas que estão a ouvir, seja virtualmente ou fisicamente, pode existir na mesma e, se calhar, até é um diálogo mais interessante. É um diálogo que não passa necessariamente por tentar perceber quantas cervejas é que eu consigo beber do início ao fim deste concerto, mas passa muitas vezes por ficar a pensar, ‘qual foi o terceiro som? Que música era aquela? Que versão era aquela que não conheço?’ É ir à procura. Recebi muitas mensagens de pessoas para tentar decifrar tracklists, perceber se aquela música já saiu ou não saiu. Isso, para mim, é um diálogo muito interessante para se ter. Para quem está a fazer sets para a NTS há tantos anos e as coisas ficam um bocado naquela bolha da Internet que ninguém liga nenhuma, de repente conseguir contactar com uma série de pessoas que estão realmente a tentar conseguir saber qual é a tracklist para adicionarem aquelas músicas à sua playlist no Spotify ou no YouTube acaba por ser gratificante. Sinto que estou a cumprir com a minha função de estar a levar as pessoas a descobrirem música nova e música diferente. Isso foi, se calhar, uma das grandes conclusões que eu tirei. É uma ferramenta que eu vou usar para sempre. Mesmo que inventem a vacina amanhã e toda a gente seja vacinada no espaço de 24 horas, essa minha ideia de olhar para aquilo que é a relação da Internet com a música vai sempre prevalecer.”



Quando subiu à Serra da Estrela, Branko não foi sozinho, levando dois artistas que no seu entendimento “representam uma nova forma de olhar para a tradição portuguesa”:

“Acho que eles representam a mesma coisa. Ambos brincam muito bem com as palavras, brincam muito bem com uma série de influências e têm um universo cultural muito interessante, que tanto é ultra sofisticado como ultra tradicional. Ambos estão a fazer esse caminho. O Pedro Mafama de um forma mais digital e mais suja, por assim dizer. Mas um bom sujo [risos]. A Rita, pela forma de cantar, está ali mais próxima da tradição. Mas também, ao mesmo tempo, não tem de ser necessariamente assim para sempre e tu percebes que há ali um certo veneno que está mesmo a querer gritar ao mundo todo. Sinto que são mesmo dois artistas que ainda têm muito que dar ao mundo. Vai ser muito bonito ver o que é que dois artistas como eles vão conseguir fazer em 2021.”

As investigações rítmicas podem ter ganho novos avanços nesta declaração de interesses na serra, mas a verdade é que “Vinte Vinte”, canção em que se juntou a Ana Moura e Conan Osiris, já denunciava estes caminhos ainda por palmilhar, pelo menos da forma que Branko ambiciona fazer. Do kuduro progressivo para o fado progressivo…?

“É possível, sem dúvida. Aquilo que eu sinto é uma mudança que me faz olhar para a música portuguesa e para o fado, não pondo tudo no mesmo saco. Passa por sentir que está cada vez mais forte a relação e a presença da música tradicional na música electrónica. E acho que, enquanto criador, a minha cabeça tem várias direcções e vou escolhendo ir mais para a esquerda ou mais para a direita, mais no futuro ou mais no presente, ou o que quer que seja, mas essa viagem e essa informação sempre estiveram presentes, tentar aperceber-me desses ritmos e tentar crescer ao conhecer patterns diferentes. Ouvir texturas de instrumentos e aperceber-me quais é que eram os problemas que eu sentia na música que ouvia e que estava a tentar fazer essa reinterpretação. Tentar chegara uma versão disso que eu gostasse. Comecei a ouvi-la em alguns artistas.

Não me cabe a mim dizer o que está bem feito ou mal feito, mas, na minha cabeça, nunca senti bem concretizada a contextualização da música tradicional portuguesa e do fado com a música electrónica. Ao ponto de não me fazer sentir que eu não estava a ouvir um remix ou a uma coisa mais diggin’ in the crates, de trazer o passado para o presente. Senti sempre que era um destes dois ângulos.

No fundo, aquilo que eu sentia falta e que, de alguma forma, tentei fazer com o ‘Vinte Vinte’ foi a concretização disso, desse formato de 2020 sem ser samplado, sem samplar nada e sem querer que fosse um remix de pista. Sem ser voz de fado com delays, sem ser uma guitarra portuguesa trabalhada em loop de forma a atingir a repetição, ou seja, fui mesmo agarrar no formato de canção, no caso do fado e da música tradicional. Tens um fado mas o pattern rítmico é de chula reproduzido através de kicks e snares electrónicos. Foi essa a experiência que eu senti que ainda poderia ganhar mais espaço — para acabar por contagiar mais um bocadinho aquilo que é a música das nossas cidades.”



E o que não falta são novos autores desta abordagem digital e moderna, e em que se podem incluir nomes como os anteriormente mencionados Mafama e Vian, mas também João Não ou Mike 11, por exemplo. Um AbaFado à espera de sair das casas de fados para locais onde se permeie o contacto físico e se dê preferência a gritos em vez de silêncio. Ouvir no mesmo alinhamento Madredeus, “Vinte Vinte”, “We Vibin”, faixa que ainda não foi lançada de Fumaxa, “Medo”, canção de Lina_Raül Refree ou as remisturas de “Sereia” e “Lacrau” dá a entender que Branko compreendeu a ligação (que nem é assim tão óbvia) entre todas estas linguagens:

“Esse disco [Lina_ Raül Refree] é incrível! O tema ‘Medo’ acabei por utilizar no set. A forma como despe o fado e transforma aquilo em quatro acordes e uma voz. Para mim foi até uma abertura de olhos. Quando eu falo em formatos que encaixem na música moderna de hoje em dia sem terem de ser coisas aquecidas no micro-ondas de há 30 anos [, é disso que estou a falar].

Às tantas, acho que, a brincar a brincar, acaba por caber ainda mais coisas nesse caldeirão. Um dos instrumentais que eu toco no início desse set da Serra da Estrela foi uma coisa que o Fumaxa me mandou que eu senti que encaixava perfeitamente nessa vibe também, apesar de não ter necessariamente um pattern chula ou malhão ou o que quer que seja, mas a melancolia e a forma como ele trabalhou aquele beat para mim encaixou perfeitamente com tudo aquilo que estava a acontecer.

E depois se sairmos ainda um bocadinho de Portugal ainda conseguimos chegar a artistas como, por exemplo, o Baiuca, que é da Galiza e que acaba por ter uma conexão enorme também com Portugal. A mema. [também]. No fundo, é toda uma geração que está a acontecer.”

Para o autor de Nosso, este conjunto de pessoas que estão a surgir são reflexo da chegada à adolescência de uma geração à procura da identidade entre a tradição e a misturada que se respira na Internet, mas também da “força dos fenómenos que estás a ter a nível internacional”:

“Tu vês a força de uma Rosalía e é impossível não olhares para trás e tentares perceber que está aqui também essa matéria prima e muito mais. Não dá para voltares as costas a isso.

Se estivéssemos a olhar para a música portuguesa como uma pessoa, e pensando que se calhar essa pessoa tinha nascido no início dos anos 2000… eu senti que só a meio da primeira década dos anos 2000 é que começaram a surgir estes formatos mais electrónicos, experimentais, o hip hop, etc, a um nível diferente e com um impacto diferente. E se pensarmos que isso foi o nascimento de uma série de coisas, agora estamos a passar aqui uma fase de adolescência. E o que é que se faz na adolescência? É a descoberta da identidade, não é? Começas a usar os sapatos mais esquisitos que tens, vais ter borbulhas, vais ser meio feio, meio bonito, vais estar ali com a voz a mudar, vais estar um bocadinho atrapalhado em termos de hormonas, mas aquilo entretanto, [com] mais um par de anos em cima], fica tudo ok. E se calhar fica muito mais sólido e consegue-se afirmar no mundo já sem ir neste rio que é a música latina, que inevitavelmente acabamos por ir um bocado a reboque. Mas merecemos a nossa própria avenida. Merecemos o nosso próprio caminho.”



Na sua editora houve alguns motivos para celebração em 2020, desde o lançamento de Da Linha (“um disco que precisava de vir ao mundo com estrada”) à edição do segundo volume da compilação Enchufada na Zona (que ficou com uma tour mundial por concretizar), passando ainda pela utilização de “Drenas” num espectáculo da Savage x Fenty, marca de RIHANNA.

Chegados aos meses finais deste ano interminável, Branko volta a subir aos palcos. Esta noite, a partir das 21 horas, no Campo Pequeno, em Lisboa, o músico dá retoques cirúrgicos em relação ao espectáculo que levou ao Tivoli em Julho e leva dois convidados, Rita Vian e EU.CLIDES (com quem acaba de lançar “Tempo Torto”). E é nesse último factor que reside a grande (e importante) diferença:

“Eu sinto que as pessoas podem eventualmente não estar a chegar à quantidade de música nova que estariam a chegar se o mundo estivesse a funcionar normalmente. Ou seja, não estares a ir àquele festival para ver a banda do palco principal e a cruzares-te com bandas dos segundos e terceiros palcos que se calhar até vais passar a gostar. Não estás a tropeçar ou passar noites em sítios e em espaços onde está um DJ que nem sequer conhecias e passaste a gostar. Há uma série de ligações que a meu ver podem não estar a acontecer em termos de música nova e do público. Portanto, a meu ver, faz-me todo o sentido usar os meios que tenho para trazer música nova e artistas que estão a começar a dar música às suas visões para o concerto.

Tirando isso, continua a ser um concerto que é uma viagem audiovisual pelo universo da música que eu toco e que eu faço. Sendo que, já para o Tivoli o tinha feito e vou voltar a fazer agora, terei a participação de músicos e artistas que intervêm de forma a acrescentar alguma coisa às músicas. E não estou necessariamente a tocar as versões de estúdio ou o que quer que seja dos temas. É um bocado a minha discografia toda mas aplicada a um formato audiovisual e reinterpretado. 

A minha ideia é mesmo chegar a todos os sentidos e às pessoas de uma forma mais completa para que não seja basicamente um concerto em que elas ficam uma hora a pensar quando é que se vão levantar para dançar.” 


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