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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Rodrigo Godinho
Publicado a: 22/07/2023

Tradição em tempo real.

Ana Moura e o seu Arraial Triste: não há festa como esta na casa da neta de Guilhermina

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Rodrigo Godinho
Publicado a: 22/07/2023

“Que volte para o ano que cá estaremos, certamente”, prometíamos em Julho do ano passado. Voltou o Arraial Triste, voltámos nós também a cair nessa cantiga de sereia, persuasiva quanto baste sobretudo para quem não se conforma com finais felizes: Santo António já se acabou, São Pedro e São João idem. Mas quer a tradição que “doravante e para o futuro” (já dizia Vasco Santana num outro Pátio das Cantigas) se encerrem as festividades populares já fora d’época em Lisboa. Remédio santo (e popular, pois claro) para melancólicos inconsoláveis.

Da tristeza da impossibilidade de concretização plena na sua estreia no Beco do Rosendo ao primeiro “arraial (nada) triste” na Voz do Operário, só a terceira foi derradeira no que deste lado nos diz respeito. E desta vez, por oposição à anterior, não só se pôs um pé na modernidade, mas dois: romaria ao Village Underground Lisboa, em Alcântara, com direito a “Música Popular Portuguesa Ao Vivo” e DJ sets de Gonçalo Afonso, Mílian Dolla, Umafricana e Yizhaq a uma quinta-feira, vigésimo dia do sétimo mês.

Chegados ao recinto pós-modernista, as características e indispensáveis fitas coloridas cruzam os autocarros de dois andares e os barracões que edificam o espaço-vizinho do Lx Factory. Garante-nos quem lá chegou ainda o dia raiava que, até o sol se pôr, não só a música, mas também o espírito se fazia sentir verdadeiramente português — que é como quem diz cerveja (a seis euros por 25cl, ao que isto chegou…), sardinhas assadas, enchidos, bifanas e apit’ó comboios. Já de noite, a palavra de ordem, com Gonçalo Afonso ao comando, impôs-se outra: dança, dança.

Caras conhecidas várias, desde Holly, Branko, o próprio Pedro Mafama e, imagine-se, Nelly Furtado (surpreendentemente acessível, por sinal), todas elas de olhos fixados no palco onde, pelas dez menos um quarto, viria a dar o ar da sua graça a anfitriã desta triste festa — com uma ou duas ou uma mão cheia de cantigas na manga. Mas antes de fazer as honras com, precisamente, “Arraial Triste” — tema que estreou na edição anterior do dito-cujo —, promete uma outra surpresa para o certame deste ano, descrito pela própria, maravilhada, como “uma festa tão diversificada”.

“Agarra Em Mim” pede por Mafama em pessoa, que se junta à parceira em palco, à primeira fila, enquanto, ao seu jeito, lhe dedica o respectivo verso do terceiro single de Casa Guilhermina — ele que viria a voltar a saudar a multidão quando, após a actuação de cortesia de Ana Moura, Gonçalo Afonso voltava a assumir o controlo dos decks e acertava no “Preço Certo” (tema dominante na nossa praça por estes dias). “Antes Que Eu Morra” deturpa a nossa noção de tempo e espaço, percepção acentuada pela movimentação graciosa das ancas sedutoras, autêntica dança do ventre, desta encantadora de gentes e serpentes. Tempo e espaço, ainda, para mais uma do último disco da fadista de Santarém, com “Mázia” a merecer essa escolha decisiva (mesmo sem — e infelizmente — a presença de Paulo Flores), antes da dita surpresa finalmente se cumprir: 

“Lá vai ela, lá vai ela / Lá vai ela pela rua / Enquanto espreitam pela janela / Ela chega ao fim da rua”

De tradição em tradição, Ana Moura volta a estrear uma canção perante quem com ela se aprontou (até porque o acesso era gratuito) a festejar. Vem aí coisa nova, mas o que é de ontem continua a soar a hoje: “Desfado”, revitalizada por uma batida cerrada já a antever a segunda parte da festa, deu por encerrada a conta certa que a cantora nos trouxe às traseiras do Museu da Carris. Deixou-nos com a mesma aura magnânima com que entrou, de barriga cheia em matéria de arraiais de Verão. Tanto que, já sem forças para embarcar na segunda volta da programação, por sua vez virada para o registo club (que o dia seguinte se avizinhava, ainda, útil), saímos com o encerrar da pista exterior pelo irrepreensível set de Gonçalo Afonso, e acabamos a noite de hambúrguer na mão numa roulote, ao lado de Pedro Mafama a trocar uma fotografia por uma pita shoarma (em tom de brincadeira, claro está). Haverá final mais feliz que este para um Arraial Triste?


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