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Fotografia: Beatriz Freitas
Publicado a: 07/07/2022

Bailar para afastar as mágoas e encerrar as festas.

O arraial (nada) triste de Ana Moura na Voz do Operário

Fotografia: Beatriz Freitas
Publicado a: 07/07/2022

Já cantava Amália Rodrigues: “Tudo isto é triste, tudo isto é fado”; e assim, ao ouvirmos o anúncio pela parte de Ana Moura de um “Arraial Triste”, num primeiro momento fomos remetidos para um encontro onde se purgariam todas as mágoas com o pranto na voz, num ambiente decorado à moda dos bairros onde o fado nasceu, em Junho, de majericos, bandeirolas, sardinhas assadas e bifanas no pão. Pois desenganem-se — ou pelo menos em parte — porque, de facto, houve arraial, com tudo o que lhe deu nome, mas de triste não teve nada, assim como perceberíamos ao ler o cartaz com mais atenção: uma tarde solarenga de inícios de Julho seria animada por música popular a tarde inteira, digna da época, e, com o cair da noite e fazendo jus à anfitriã, a modernidade estendia o braço à tradição e chamava-a para dançar à volta do assador, com DJ sets de Pedro da Linha, King Kami, Saint Caboclo e Gonçalo Afonso.

O local escolhido para esta romaria foi o Recreio da Voz do Operário, que tanto invocou a nostalgia para quem passou a infância a fechar anos escolares em fins de Junho com o arraial da escola. A tarde foi dedicada maioritariamente à bebida, petiscos e um leve bater de pé ou um vira ocasional, de forma a reunir e poupar esforços para aguentar uma noite de muita música e surpresas; e havia quem rezasse aos santos — todos eles populares — na expectativa de que uma das mesmas fosse uma actuação da rainha da festa.



Por Santo António, ou não, as preces foram ouvidas e depois de toda uma tarde de “peitos da cabritinha” e “apita o comboio”, quase imperativas num castiço arraial, Ana Moura subiu ao palco, de sorriso e brilho estampados no rosto, contrariando as palavras que se liam no cartaz. Numa breve interacção com quem lá estava, a cantora falou da sua experiência com a maternidade pela primeira vez e explicou um pouco do conceito por detrás desta noite: depois de dois anos sem poderem celebrar, decidiram fazer uma festa que valesse por todas as perdidas, para reunir amigos e quem mais quisesse vir, onde estivessem presentes algumas das suas influências na criação deste novo álbum, num ambiente de festa rija, em noite de Verão. Aproveitou também o momento para anunciar o seu novo disco, que sairá em outubro, apresentando assim o single de estreia que deu também nome ao evento: “Arraial Triste”. 

Ignorando por completo a tão famosa expressão: “silêncio, que se vai cantar o fado”, assim que a voz inebriante da cantora passou por entre as bandeiras e fitas e se mesclou com o fumo das sardinhas assadas, a euforia do público subiu ao patamar mais elevado e os gritos, elogios, coro e danças expressivas subiram aos céus, expressando-se quase mais alto do que a lua, que tanto condizia com as palavras a serem debitadas: “Estou num arraial triste/ Hoje só vou bailar com lua cheia/ Estou num arraial triste/A balançar com as folhas da palmeira”. 

Para deleite dos presentes, este não foi o único tema que cantou, tendo apresentado também o apaixonado “Agarra em Mim”, juntamente com Pedro Mafama, que juntos nos presentearam com o momento mais bonito da noite. De olhos postos na musa, pouco importado com o que mais o rodeava e obedecendo à mensagem que esta bonita música pede, o cantor optou apenas por cantar por cima da faixa e dedicá-la inteiramente a Ana Moura, que o puxava para dançar ternamente. Aquando da parte da canção onde se ouve, “E quando eu já falar sozinho, lá no final do caminho/ Guarda o melhor de mim”, Mafama ajoelhou-se e declamou estas mesmas frases, de mão enlaçada com a cantora, arrancando sorrisos de todo o público, que vozeava aclamações e assobios, à medida que os dois terminavam, agarrados e em sintonia.

A artista brindou-nos ainda com “Andorinhas” e “Jacarandá”, temas recentes que possivelmente marcarão presença neste novo álbum, o primeiro projecto onde a mesma abriu as portas para experiências de modificação de voz, como explicado pela cantora. Exemplificando esta mesma linha comum que segue, já no fim da noite foi mostrado um novo tema, onde a sonoridade pareceu familiar às apresentadas — despertando seriamente o nosso interesse –, sempre com a sua pujante voz, distinguível a léguas. 

A noite era ainda uma criança para Pedro da Linha e King Kami, que incendiaram não só o palco como todo o recinto, com sets de fazer qualquer um levantar-se das tradicionais mesas corridas e dar tudo na pista, passando desde funk brasileiro a electrónica com pendor afro. De realçar a atmosfera sentida em frente ao palco, onde todos os participantes da festa dançavam, fogosamente, abanando leques e, alguns já tocados e sem grandes inibições, trocavam ocasionais beijos com sabor a álcool e abraços suados; algo tão bonito e comum a todos os arraiais mais antigos, mas desta vez ao som de uma banda sonora tão fresca e eclética, como pede esta Lisboa de 2022. 

Terminou assim a época dos Santos Populares, da melhor forma possível: um último arraial proporcionado por Ana Moura, que de triste só teve o facto de ser o último. Unindo tudo o que é de mais “castiço” e “tradicional” a uma novidade e frescura, com ritmos voltados para a dança, esta festa foi um verdadeiro sucesso, não só pelo furor sentido, como pela água na boca que deixou pelo seu novo álbum, de onde podemos esperar bonitos poemas, dignos de estarem agarrados a um manjerico, declamados em sentida voz sobre sonoridades que tanto puxam um tarraxo ou uma kizomba, de corpo unido a quem mais nos queremos juntar. Que volte para o ano que cá estaremos, certamente.


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