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Fotografia: Renato Stockler
Publicado a: 03/08/2023

As muitas ondas do Brasil surfadas num só disco.

Amanda Magalhães: “Em Maré de Cheiro, eu me despi, me desobriguei de uma série de coisas que eu me colocava”

Fotografia: Renato Stockler
Publicado a: 03/08/2023

Amanda Magalhães tem um sorriso fácil que mesmo à distância contagia. Autêntica, de voz potente e diferentes habilidades, seja cantando ou produzindo, ela é uma das artistas com grande potencial de ir além das barreiras impostas pela indústria e agradar os ouvidos mais exigentes. Maré de Cheiro, o segundo álbum dela, é uma boa amostra de que é possível fazer um projeto coeso sem excesso ou estereótipos e, ainda, mesclar as diferentes manifestações culturais que só é possível encontrar no Brasil.

“Eu tento reverenciar o passado com alguma possibilidade de frescor dentro disso. Se eu consigo ou não, eu não sei. Mas é uma coisa que estou sempre buscando quando crio”, observa ela. “É por isso que eu digo que tenho essa sensação de que o futuro está um pouco híbrido, morando nessa tentativa entre o passado e o que a gente imagina que seja o futuro. Ao mesmo tempo, a gente tem esse respeito pelo que já rolou, de quem veio antes, e a gente olha essas influências e tipo não tem como deixar de lado o samba, a ciranda, a praia, o calor, o suor, a ginga… tudo isso está no nosso DNA”.

Herdeira musical do avô Oberdan Magalhães, fundador da lendária Banda Black Rio, e do pai William Magalhães (atual líder da Black Rio), Amanda manteve a essência do soul, funk e samba-jazz no seu primeiro disco, Fragma (2020), mas no atual ela quis seguir por uma outra direção com mais influências regionais, principalmente do Norte e Nordeste. Essa também foi uma forma de se desvincular da herança familiar para trilhar o próprio caminho.

“Eu me despi, me desobriguei de uma série de coisas que eu me colocava, que eu sentia que me colocavam, e que agora meio que liguei o ‘foda-se’ (mas aí você coloca palavras mais bonitas [risadas]) […] Não queria fazer um disco muito comprido. Me interessava fazer algo um pouco mais enxuto, que pudesse dar conta de contar o que eu queria trazer num espaço menor de tempo”, diz.

Da sala da sua casa em São Paulo, acompanhada por Guiné, seu cachorro, Amanda compartilha via Zoom os detalhes da produção de Maré de Cheiro, consumo de música e dá um pequeno spoiler do seu futuro como atriz depois do papel de destaque que teve na série 3%, da Netflix.



Passado um tempo com o disco na rua, como você observa que as pessoas o receberam?

Eu tô muito feliz. Está sendo gostoso demais ouvir mensagens e palavras de encorajamento do pessoal que está escutando. A gente enquanto artista independente, por mais que faça pra gente, existe uma medida também de validação que criamos quando escutamos as pessoas se identificando. Então, tá sendo bem legal.

Observo que Maré de Cheiro tem uma certa diferença no estilo que você trabalhou em Fragma (2020). Neste, você traz uma gama maior de elementos da música brasileira. Como foi desenvolvê-lo, estando 100% na produção?

Eu não consigo não me envolver 100% nos meus processos criativos [risadas]. E foi um processo bem interessante, de muita entrega, foi intenso… Eu costumo mergulhar muito nas coisas, porque tenho uma veia obsessiva nas coisas que eu faço. Do tipo: quando estou fazendo alguma coisa, eu dou cada célula de mim para aquilo. Então, foram basicamente 6 meses vivendo esse disco. Foram 6 meses, 12 horas por dia enfurnada no estúdio, pesquisando, batendo cabeça, criando, mas também gozando muito (no sentido metafórico). Assim, eu sinto que há diferença sim. Em Fragma, eu estava num flerte das influências da música negra norte-americana, que sempre foram muito presentes em casa, juntamente com a MPB. Aqui neste disco a MPB é o carro-chefe, mas foco nos ritmos regionais do Brasil. Eu sinto que esse hiato de três anos não foi qualquer hiato, rolou uma pandemia entre os discos, e o fato de todo mundo ter vivido tanta coisa difícil nesse período, pelo menos a maior parte das pessoas, foi meio que uma catapulta, porque eu precisei fazer um mergulho dentro de mim… Isso esbarrou na música, na medida que isso passou por um lugar de olhar para as minhas origens, de onde eu venho, em que país eu nasci, quem eu sou e tudo mais. Eu acho que, muito imbuída dessas reflexões, eu fui caminhando para o que aconteceu sonoramente em Maré de Cheiro.

Nos seus primeiros singles e até no disco de estreia, você acha que ainda tinha aquele peso de manter a essência familiar da black music, e agora meio que se desprendeu disso?

Cara, antes de eu ter lançado o primeiro álbum, por exemplo, apresentei “Vai Ouvir”, que teve feat. com o Rincon [Sapiência]… Ali, já existia um amadurecimento de estúdio no quesito da produção musical, mas não existia a jornada da artista. Então, por mais que eu tivesse a musicalidade e outras coisas relacionadas à música mais madura, a Amanda artista estava muito na busca de encontrar quem ela era, de modo que eu diria que nem tentando satisfazer uma suposta expectativa em relação a esse legado da Black Rio, da minha família, e nem do que eu estou fazendo agora… Eu diria que nenhuma nem outra nos primeiros singles. Eu estava muito experimentando e tentando sacar quem eu era. Lançar single é uma brincadeira mais gostosa, no sentido despretensioso. Quando você está lançando um álbum, você está contando uma história de alguma maneira, há uma preocupação daquilo ter coerência, ter uma mensagem que faça a ligadura entre aqueles fonogramas, pelo menos é uma preocupação minha. Foi aí que a coisa começou a ficar séria, e eu acho que entrou um pouco na minha cabeça essa coisa que eu talvez tivesse que manter um DNA de samba-funk, samba-soul, de Black Rio (em alguma medida, dentro do possível). Isso norteou uma série de momentos e escolhas artísticas que eu fiz ali, e eu não me arrependo, mas em Maré de Cheiro, eu me despi, me desobriguei de uma série de coisas que eu me colocava, porque sentia que me colocavam, e que agora meio que liguei o “foda-se” (mas aí você coloca palavras mais bonitas [risadas]).

Essa palavra não deixa de ser um ponto final. O “foda-se” às vezes quer dizer: me desliguei disso e fui pra outro caminho… Você diz que o disco conta uma história e, apesar de ter diferentes musicalidades e estilos, ele é bem coeso. As músicas foram exatamente pensadas para se conversarem?

Sim, foi! A única faixa que entrou como bônus, que é com a Black Rio… Enfim, não me entendam mal, eu precisei matar simbolicamente esse passado para inclusive retornar pra ele em paz. Eu diria que essa colaboração, de uma faixa produzida pelo meu pai e com a participação da Black Rio, é uma espécie de batizado, de benção mesmo, de tipo: “Filha, segue aí o seu caminho.” E ao mesmo tempo que ela faz todo sentido pra mim dentro desse contexto, nessa coesão sonora, ela é a que se descola um pouquinho mais. Por isso, inclusive, ela vem a título de faixa bônus, que faz também esse sentido. A narrativa sonora não foi pensada num lugar muito racional, foi no campo do sensorial mesmo. Eu não sei quem é que estava falando pra mim, mas eu concordei muito: o quão é subestimada a arte do DJ. Do tipo: você colar uma faixa na outra, criar um clima que começa numa atmosfera e vai desembocar na outra… E essa arte, de você criar essa fluidez desse ponto de vista, que eu tentei trazer esses “brasis” numa ordem que me trouxesse essa maré, nesse contínuo. E eu acho que a coesão mora muito ai, em como tentar construir essa viagem, porque não deixa de ser uma  viagem pelo Brasil, do ponto de vista dos ritmos, cada um vindo de um canto.

Você chegou a cortar faixas? Porque ele vai naquele lance do fade in-fade out, daqui a pouco amansa um e começa outra e faz uma conexão, uma onda legal, que não dá vontade de pular faixa. Não é uma playlist… 

Você nem sente…

Realmente, ela vai te levando, e quando acaba você quer voltar novamente. Então, tirou alguma que destoava desse contexto?

Teve [risos]. Uma só, não foram muitas. Teve uma que eu tirei, chamada “Caminhar”. Eu tirei, mas pretendo desengavetar ela num futuro próximo. Eu achei que ela estava um pouco além do que o trabalho estava pedindo. E eu, já desde o início, não queria fazer algo que fosse muito extenso, não queria fazer um disco muito comprido. Me interessava fazer algo um pouco mais enxuto, que pudesse contar o que eu queria trazer num espaço menor de tempo. Por isso, eu senti essa intuição de tirá-la… Não quero falar muito dos porquês, se não vou dar muitos spoilers sobre o lançamento dela daqui a pouco [risos].

Esse título Maré de Cheiro tem uma essência bem brasileira. Traz essa coisa dos litorais, mas também do cheiro que traz diversos significados. Como foi a escolha dele?

Eu queria que esse pudesse ser um trabalho que no fim das contas ia atiçar os ouvidos de quem estivesse ali escutando. Cheiros, calores, sentidos, temperos… Tudo aquilo que remete ao Brasil no nosso imaginário — no nosso inconsciente — de alguma forma. Houve a tentativa de evocar isso, porque eu acho que esse também é um trabalho que traz o desejo como protagonista, sabe? Essa coisa do calor que atiça os sentidos e os desejos! A gente chegou… Digo eu e Mariana [Bergel], que compôs junto com meu pai “Com Ela Eu Vou”… A gente juntas fazendo brainstorm acerca desse trabalho, tipo: “Caraca, o que é que vai sintetizar esse caldeirão? Tem tanta coisa legal aqui, mas o que sintetiza?” Aí veio essa coisa do cheiro, mas do cheiro ambíguo também. O cheiro, que é também uma ação de se dar um beijo. Então, uma maré de beijos. Então tem essa coisa do desejo, do sensorial, um pouco de tudo ali, e juntas a gente chegou nesse título. Eu atribuo também a autoria dela [risadas].

As parcerias também trazem esse tempero para o disco…

Feliz que você gostou!. Eu concordo também. Acho que essas parcerias funcionaram muito bem! Do título a cada acorde escolhido, esse álbum é feito literalmente a muitas mãos. Foi tudo muito colaborativo, porque cada pessoa que integrou esses processos somou de uma maneira absurda. E acho que as parcerias não vêm em outro sentido que não seja esse da soma. Toda a representatividade que as cirandeiras pernambucanas de As Filhas de Baracho trazem quando começam ali no acapella numa faixa que é tão emblemática, a “Papai Vai”. Essa composição da Dulce Baracho é um exemplo. A Lurdez da Luz, que tem uma caminhada no rap nacional e paulistano, sobretudo, é incrível e assim como eu é uma mana de fé. E a gente compartilhava uma série de afinidades no sentido espiritual, no sentido musical, do feminino… Então, assim, o meu olhar sobre essas parcerias que se deram ali, inclusive da Black Rio, e Assucena, que eu sou fã desde As Bahias e a Cozinha Mineira… Enfim, acho que meu olhar sobre essas parcerias foram muito bem sucedidas, na medida que não só puderam trazer a representatividade que eu senti que faltava, de artistas que fossem trazer esse tempero das regiões que representassem, mas também na medida que clicou muito. Acho louco isso, a gente existe em um momento da indústria em que os feats são uma ferramenta de troca e também de expansão de público. A galera quer pegar o público do outro. Então, existe um elemento mercadológico ali, o qual em absoluto julgo, mas também acho foda quando no meio dessa dinâmica, que se instaurou por esse motivos, os verdadeiros encontros acontecem, saca? E uma coisa que me deixa feliz é entender esses encontros que rolaram ali como encontros muito verdadeiros, que muito me ensinaram. Eu diria que é uma honra ter esses nomes neste trabalho por conta disso.



Como tem consumido música atualmente? É 100% digital ou ainda tem preferência pelas mídias físicas, como CD e vinil, principalmente para pesquisar coisas novas, levando em consideração a sua veia produtora?

… Eu queria te mostrar os discos todos que tem aqui atrás, mas não sei como tirar esse efeito da câmera… [Risadas]

É, tá embaçado e não dá pra ver…

É, não tem como tirar… Eu sou uma senhora e acho que isso responde a muitas coisas [risadas]… Mas é mentira. Eu tenho consumido sim, digitalmente. Tipo, eu virei a cadelinha do Spotify para usar a gíria da geração Z. Eu estou consumindo muito de tudo um pouco, essa é a real. Eu estou consumindo muito de tudo um pouco e talvez eu esteja vivendo uma das minhas fases de vida com menos preconceitos, em todos os sentidos. Preconceitos sobre o que eu vou escutar, onde e como. E estou tentando muito me alimentar do agora, do passado e tentando pensar no futuro. Eu acho que, inclusive, a tendência é um futuro que a gente está construindo que será muito híbrido, entre o analógico e digital, entre o que é referência, tradição e o que é moderno. Eu acho isso interessante, principalmente pra gente que produz é importante estar antenado, independente de qualquer produção autoral e artística. Precisamos estar antenados no que tá rolando. Por que é isto: Hoje eu estou produzindo o meu som, mas amanhã chega aqui um artista, uma artista que me interessa colaborar, e aí vai pedir uma parada que eu não vou conseguir entregar. Então, nesse sentido, eu não consumo só as paradas que eu gosto. Eu faço esse exercício e, às vezes, é um exercício consciente, até de falar: “Tô sem saco.” Mas me obrigo a escutar, e tô escutando de tudo um pouco.

Mas é daquelas que vai pra pesquisar ou ver o que está em alta?

Daquelas que você abre a playlist e vai de Jorge Aragão a Daft Punk [risadas]. Mas eu dou uma olhada sempre nos “50 mais”, do que está rolando… E eu digo isso, não só porque enquanto produtora musical é importante pra mim estar consciente do que está rolando, mas porque eu tenho essa tendência também, como artista e pessoa, de me isolar bastante, principalmente quando estou criando. Então, eu fico no meu mundinho. E se eu não faço esse exercício de ir e ver o que está ao meu redor também, eu fico numas… Então, procuro ver os tops pra aprender alguma coisa aqui e acolá.

Ouvir outra coisa no seu momento de trabalho influencia naquilo que você está produzindo, por isso prefere ficar na sua redoma? E é também a sua forma de trabalho, de se desligar de tudo para não ter uma interferência externa?

Eu não tenho muito uma regra, mas em Maré de Cheiro… Tem uma coisa curiosa.  Em Fragma eu ia criando, fazendo e fazendo, e no fim olhava, tinha tantas feituras e falava: “Isso e isso faz sentido, então vai ser isso aqui.” Nesse não. Eu fiz a ordem contrária. Eu sentei comigo e me disse: “Isso, isso e isso me traduzem agora. Falar de Brasil e cantar o Brasil com a sonoridade daqui me interessa, e é isso que eu quero fazer.” Fui para o estúdio com esse norte e antes de começar os meus processos organizei uma playlist de referências. Então, eu escutei bastante Chico Science, BaianaSystem, Jorge Ben, coisas antigas, coisas atuais… Raquel Reis… Escutei coisas que estavam aguçando os meus ouvidos, a imaginação… Montei uma playlist e depois é isso: você pega as referências pra depois jogar no lixo e ver o que sai no estúdio. Mas no primeiro momento eu me alimentei.

O interessante é que o seu disco traz essa musicalidade brasileira, mas também possui uma essência do continente africano e da América Latina. E precisamos falar sobre esse assunto, porque muitas vezes o Brasil se desloca dessa América Latina, até mesmo por causa da língua, mas você traz toda essa identidade regional. Isso também é importante para mostrar ao público, principalmente o jovem, toda essa riqueza cultural. 

Sim! Olha, pelo que percebo, eu tenho um público jovem que tem um pouco de fome por novidade, mas que também olha para o passado com respeito e reverência. Acho que isso também é um pouco reflexo do meu som, inclusive — e não sei se isso soa pretensioso, espero que não — é uma tentativa minha. Eu tento reverenciar o passado com alguma possibilidade de frescor dentro disso. Se eu consigo ou não, eu não sei. Mas é uma coisa que estou sempre buscando quando crio. É por isso que eu digo que tenho essa sensação de que o futuro está um pouco híbrido, morando nessa tentativa entre o passado e o que a gente imagina que seja o futuro. Ao mesmo tempo, a gente tem esse respeito pelo que já rolou, de quem veio antes, e a gente olha essas influências e tipo não tem como deixar de lado o samba, a ciranda, a praia, o calor, o suor, a ginga… tudo isso está no nosso DNA. Estou tentando fazer isso.

Olha, posso dizer que está conseguindo. Esse disco traz essa identidade do Brasil, que é para ser compartilhada com o mundo. Você coloca Maré de Cheiro para tocar e ele te leva para uma viagem, e quando chega no final a gente fala: “Já foi?! Vamos ouvir de novo!”

Que legal! Ouvir isso, significa muito pra mim!

Você ainda está dividindo sua carreira de cantora/produtora com a de atriz?

Olha, no momento não e sem nenhum motivo por trás. Só naturalmente está acontecendo da música tomar mais conta da minha vida, de repente. Agora, se cair um projeto bom no meu colo e me der vontade, tô dentro. Acho que são fases. Eu fiz em 2022 um trabalho bem legal de cinema, que eu não posso falar agora para não mandar um spoiler [risadas]. O spoiler é que o bagulho está bem chique. É uma produção gringa em que pude aprender muito. É a primeira longa-metragem que eu faço e com grandes figuras que eu pude aprender muito. Mas de modo geral, eu estou bastante focada na música. Essa é a onda que eu estou surfando agora.


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