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Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 09/08/2023

Uma outra perspectiva sobre o concerto da guitarrista e compositora norte-americana em Lisboa.

Ainda sobre Mary Halvorson no Jazz em Agosto’23: Rock Bottom foi a chave para decifrar a música da Code Girl

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 09/08/2023

5 de Agosto de 2023. Noite quente, perfeita, em Lisboa. O anfiteatro ao ar livre da Fundação Calouste Gulbenkian – o palco mais belo onde já assistimos a concertos – está repleto para receber a norte-americana Mary Halvorson e o seu projecto Amaryllis [nome de planta, a capa do disco inspirou graficamente o cartaz desta edição do Jazz em Agosto]. Amaryllis é um sexteto composto por Halvorson (guitarra), Adam O’Farrill (trompete), Jacob Garchik (trombone), Patricia Brennan (vibrafone), Nick Dunston (contrabaixo) e Tomas Fujiwara (bateria). Uma aragem tranquila que J. J. Cale descreveu como “sweet summer breeze” cria um movimento de dança na vegetação que ladeia o acesso subterrâneo dos artistas, num gesto de boas-vindas a alguém que já é próximo. 

Não era a primeira apresentação de Mary Halvorson no Jazz em Agosto. Em 2008 vimo-la na estreia com o sexteto do trompetista Taylor Ho Bynum; em 2011, integrada no fabuloso colectivo Anti-House liderado pela saxofonista alemã Ingrid Laubrock, no mesmo ano em que o gigante do free jazz Cecil Taylor se despediu deste festival (Taylor viria a falecer em Abril de 2018). No ano da morte de Taylor, na John Zorn Special Edition, a edição que o Jazz em Agosto dedicou nesse ano ao consagrado músico nova-iorquino, Mary Halvorson apresentou-se com Zorn e o seu Masada e com o projecto Code Girl para interpretar Book of Angels. Mary Halvorson afirmava-se definitivamente como uma das guitarristas mais importantes e influentes do jazz avant-garde da actualidade.

Mary Halvorson começou por aprender violino, mas a guitarra rock falou mais alto depois de ouvir Jimi Hendrix. O pai, melómano e colecionador de jazz, incentivou a sua formação neste instrumento. Estudou com o guitarrista Joe Morris, que desde logo a aconselhou a desenvolver um estilo próprio. Guiada pelo papa do free jazz Anthony Braxton – com quem se apresentou no Jazz em Agosto de 2013 – desenvolveu capacidades formais de análise, composição e interpretação que lhe permitem hoje apresentar uma música vibrante e original. Numa citação da revista JazzTimes publicada em MaryHalvorson.com lê-se “no one is making music like this”. Mary Halvorson alia técnica e virtuosismo a composição e liderança. Numa amálgama de influências, cria um jazz que segue, em certos aspectos, os ensinamentos de Zorn, na forma como os vários estilos em que se revê se interconectam de forma natural e harmoniosa.

Na noite anterior o anfiteatro ao ar livre tinha já recebido Halvorson, bem como Laubrock, integradas no colectivo Fire and Water, um combo feminino de excepção que traduz a complexa escrita para jazz de câmara da veterana pianista avant-garde norte-americana Myra Melford. E se nesta edição do Jazz em Agosto dedicada às mulheres o recital de Fire and Water teve o formalismo académico (no bom sentido) mais do que suficiente para receber Sua Santidade, o Papa Francisco, de visita a Lisboa, já Amaryllis abriu as portas do Céu. A chave foi uma guitarra semiacústica lindíssima e que soa maravilhosamente, encomenda à medida de Halvorson a Flip Scipio, um luthier de origem holandesa radicado nos Estados Unidos.

O concerto abriu com a composição “Amaryllis”, do álbum com o mesmo nome que Halvorson lançou no prolífico ano de 2022. Uma mariposa voou direcção da Catedral da Cantuária, mas longe de nós imaginar que seria esse o destino traçado. A seguir o sexteto apresentaria apenas material inédito. A fechar o concerto, ficámos a saber por Halvorson que o encore tinha servido de soundcheck nessa noite. Música criativa, concisa, capaz de surpreender a cada segundo. Percebe-se uma ténue ligação ao grande cancioneiro popular norte-americano e, mais evidente, uma relação às correntes psicadélicas do jazz. Em determinado momento, num curto diálogo entre a guitarra e o contrabaixo, parece remeter para “Knocking on Heavens Door” e pouco tempo depois a trompete de Adam O’Farrill sugere “Many Rivers to Cross”. O vibrafone, excelente, de Patricia Brennan recorda o quarteto de Gary Burton na transição da década de 60, com Larry Coryell, Mick Goodrick, e depois em quinteto com Pat Metheny, num jazz muito influenciado pelo flower power, que se espraia, em meados da década de 70, para o continente europeu através da ligação de Burton ao compositor de jazz-rock inglês Michael Gibbs e ao contrabaixista alemão Eberhard Weber. Competentíssimo e com uma longa relação com a música de Halvorson, o baterista Tomas Fujiwara fez-nos lembrar o trabalho sumptuoso de John Marshall em Silent Feet (álbum de Weber).

No geral, Amaryllis apresentou-se com estética inspirada (não evidente) na Canterbury School e em particular em Rock Bottom – a obra-prima que Robert Wyatt editou em 1974, uma das obras mais importantes da história do rock e o disco que mais terá influenciado Mary Halvorson. Numa entrevista concedida em Outubro de 2020 ao Progarchy, ela recorda o convite que endereçou a Wyatt para dar voz a três faixas do álbum Artlessly Falling compostas especialmente a pensar na sua voz. Desafio lançado e naturalmente aceite por Wyatt, Mary Halvorson descreve-o como “um sonho tornado realidade”. Sobre Rock Bottom, afirma o impacto que teve na sua formação como compositora, confessando ter ouvido o disco centenas de vezes e de ter sido, a partir daí, o ponto de partida para todas as suas explorações.

Em determinada altura do concerto foi quase como se Halvorson se transformasse no Capuchinho Vermelho [suscitou o imaginário musical de “Little Red Riding Hood Hit the Road”, composição superlativa de Rock Bottom]. No subconsciente ouvimos a voz de Robert Wyatt e atrás do palco murmúrios evocativos dos Hatfield and The North e até de “Atom Heart Mother” (a faceta Canterbury dos Pink Floyd). Os arranjos dos metais sugeriam Carla Bley em meados de 70, Whatever She Brings We Sing (álbum de Kevin Ayers), e saudosas lendas do jazz inglês como Paul Rutherford e Kenny Wheeler. A vegetação ondulava em cadência natural, sem que uma ordem tivesse sido proferida, na distorção do tempo provocada pelo efeito pitch-shifter da guitarra de Halvorson, num sonho tão real.


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