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Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 05/08/2023

Provocação e cacofonia.

Myra Melford’s Fire and Water no Jazz em Agosto’23: comichão no joelho direito

Fotografia: Vera Marmelo / Jazz em Agosto
Publicado a: 05/08/2023

O joelho. Objecto de estudo anatómico, mas não neste caso. Sobre o joelho não haverá particular fascínio como no filme de Eric Rohmer – O Joelho de Claire. Será sempre difícil medir o grau de satisfação de um concerto, mas seria de todo conveniente e de utilidade indesmentível se houvesse por perto estetoscópio e lupa. Medir um certo grau de comichão localizada, porque não no joelho direito. Estamos em crer que parte dos espectadores que assistiram ao concerto Myra Melford’s Fire and Water de ontem à noite no Jazz em Agosto 2023 padecerem de tal sintoma. E quando assim é, assume-se como axioma que a noite foi de incalculável valor e o festival atingiu um dos seus objectivos, não declarados, mas implicitamente assumidos – trazer propostas de confronto, cruzamentos desconfortáveis. Assim aconteceu e por isso um mais que justo elogio. Na ausência de instrumento quantificador e de variáveis mais precisas, bastava conversar com dois ou três à saída, no bar e no átrio, para assinalar a divisão e definir claramente dois grupos – os que padecem de comichão e os que não. Não há, nem haverá grupo intermédio.

O título (“Fire and Water”) remete forçosamente para a divisão e choque entre dois elementos aparentemente contraditórios – água e fogo. Acrescentar que Myra Melford, pianista e mentora, inspirou-se na obra do pintor norte-americano Cy Twombly, reconhecido como um dos “simbolistas românticos” de pinceladas largas, de estilo caligráfico e pinturas em grafite de grande escala e como descrito no texto de apresentação – “para quem o impulso do gesto era fundamental”. Um dos pontos de partida e premissa a anotar. Admiração perfeitamente assumida e acarinhada no próprio título do álbum For The Love of Fire & Water (Rogue Art, 2022). O segundo, que Myra Melford comunga do mesmo encantamento pelo “impulso do gesto”, pelo processo de construção, mais do que pelo objecto acabado. No caso do pintor, como se desenha uma linha; em Melford, como se estrutura uma composição e as suas infindáveis modelações nas apresentações ao vivo. O terceiro, que Melford sempre procurou o que a própria define como uma “boa química”. Tendo como adquiridos estes três pontos não terá sido difícil convidar instrumentistas de eleição – Tomeka Reid (violoncelo), Mary Halvorson (guitarra elétrica), Ingrid Laubrock (saxofones tenor e soprano) e Lesley Mok (bateria) em substituição de Susie Ibarra. Considerado, justamente, como um supergrupo pela qualidade de cada uma das músicas. Atrevemo-nos a concordar e acrescentaremos: qualidade sem dúvida, mas sobretudo por comungarem de uma ideia interiorizada de composição semi-livre e em que o desenho de infindáveis tangentes a estilos – jazz, erudito, nalgumas aspectos mais folk, sobretudo nas tonalidades da guitarra de Halvorson – encaminhar-nos-ão para um objecto novo, mas de corpo coeso, conexo entre as diferentes partes. Como se cada uma estivesse no estúdio de Cy Twombly e às escuras desenhassem uma linha que no seu conjunto moldasse uma pintura de grande escala, provocando em quem a vê, neste caso em quem escuta, uma incomodidade tão urgente quanto necessária. As redondezas temporais e geográficas assim o exigem. Há urgência. Não gratuitamente adjectivam-na como uma obra provocativa e cacofónica. E é-o, na globalidade e em separado. E ainda bem que o é. Comichão.

O piano de Melford dá o mote. O primeiro traço. Desconstrução. Acompanham-na, à vez, as restantes instrumentistas, nem sempre em simultâneo. Há espaço para que cada uma acrescente a sua visão. O silêncio — micro-silêncios — é aqui pedaço de tela e abertura para a espacialização sonora. A guitarra de Halvorson, no seu dedilhar tão característico, que ganha nova dimensão nesta formação, por momentos pouco aprazível, mas conforto não é termo que se possa associar ao que se ouve. Um lado mais jazzístico e até certo ponto mais clássico nos sopros de Laubrock e a bateria de Mok, a soar de forma particularmente intrigante e somente em aparentes solos. O solo, momento tão associado ao jazz, pôs-se em fuga como as momentâneas palmas que se apercebem estarem desajustas. Desvanecimento. Todas são uma. A força sempre residiu nesta concepção. O dilema, na maior parte das vezes, é como coloca-lo em prática. Não há desfasamento entre o discurso e a práxis. Discurso e prática são um só. Há crescendos e calma. Convocatória para participação colectiva. Socorrendo-nos, outra vez, da filmografia de Rohmer – Conto de Verão – “Sinto-me como se o mundo existisse à minha volta, mas não estou lá.” A descoberta permanente entre crescendo e calma quase absoluta. Novidade e perplexidade. Uma tenda na Adraga, à noite, para sentir a tempestuosidade do mar, o poder e a imprevisibilidade dos elementos naturais. A lua que sobe montanha. A incomensurável pequenez humana perante elementos de tão magnânima escala.

Uns perscrutam o joelho. Outros perplexos, mas aconchegados. Ambos a aprender a técnica do Kintsugi em exercício metódico e prudente de reconstituição dos pedaços quebrados. A certeza que alguns ainda se encontram entre as árvores do auditório.


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