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Publicado a: 14/08/2015

Sons & Visões (com batida) V

Publicado a: 14/08/2015

[TEXTO] João Pedro da Costa [FOTO] Direitos Reservados

 

A quinta parte de uma história videomusical do hip hop assinada por João Pedro da Costa.

[PARTE I aqui.] [PARTE II aqui.] [PARTE III aqui.] [PARTE IV aqui.]

 


 

[THE ROOTS] “What They Do”
(Chuck Stone, 1996)

Na segunda metade da década de 90, o vídeo musical é incontestavelmente o veículo promocional de eleição dos gigantes da indústria discográfica e a sua eficácia era facilmente comprovada no protagonismo que assumiu na conturbada ascensão do hip hop ao mainstream. A maioridade do formato, no entanto, ficou também a dever-se à sedimentação de um conjunto relativamente restrito de tropos visuais, ora comum à totalidade do espectro da música popular, ora específico de um determinado género musical (com destaque para o heavy metal, o rock, o country e, claro está, a música rap). Pouco a pouco, o uso repetitivo e pouco imaginativo destas marcas visuais identitárias transforma-se num atalho utilizado por realizadores e bandas na produção de uma vasta e pouco estimulante galeria de pastiches videomusicais. Era por isso apenas uma questão de tempo até aparecer alguém que parodiasse este arsenal de fórmulas híper-codificadas: se Spike Jonze foi sem dúvida o genuíno precursor desta abordagem no hip hop (e não só), deve-se aos The Roots o exemplo mais completo e impiedoso de crítica ao status quo do prolífero sub-género do teledisco rap.

O clipe que Chuck Stone realizou para o tema “What They Do” dos The Roots coloca, com um sarcasmo que não prima pela subtileza, os elementos da banda submersos no marasmo de clichés videomusicais que o movimento tinha construído e consolidado nas últimas duas décadas. Este genuíno manual satírico do vídeo rap inclui, como não podia deixar de ser, a imprescindível dose de beldades a dançar em fato-de-banho, os manos a beber o champanhe da praxe junto à piscina de uma mansão luxuosa, um MC indiferente à presença obrigatória de três damas voluptuosas na sua cama ou os inevitáveis carros minuciosamente encerrados a reflectir os néones da grande cidade – sem esquecer, como é óbvio, as indispensáveis cenas filmadas nos bairros sociais. Numa meticulosa construção dos cenários, quase todos os adereços são fetichizados na ânsia de legitimar o estatuto de estrelas dos protagonistas: o telemóvel (objecto relativamente raro e sofisticado em 1996), o microfone brilhante da década de 50, os copos de cristal, os bólides de alta cilindrada, o pitbull ameaçador, os cameos de celebridades, as comitivas submissas sempre estrategicamente colocadas em segundo plano e, claro está, as super-modelos de tez branca e cabelo aloirado. Cinematograficamente, os lugares-comuns também abundam: do abuso dos fondus entre planos ao recurso ostensivo da câmara lenta, passando por panorâmicas, contrapicados, sumptuosos travellings e indomáveis movimentos de handycam – tudo é articulado de forma propositadamente gratuita e artificiosa, sem qualquer nexo biográfico ou alento narrativo que não seja o de denunciar a forma como a utilização indiscriminada destas fórmulas fossilizadas nos telediscos da música rap aniquila o ethos realista que está na génese do hip hop.

No entanto, o que torna o clipe ainda mais cómico (e acutilante) é a inclusão por parte do realizador Chuck Stone de três dezenas de legendas espirituosas que vão paulatinamente identificando ou comentando cada um dos seus Big Willie-isms (tradução livre: sinais exteriores de rufias armados ao pingarelho). Perante a reacção negativa dos seus pares à teledifusão do vídeo, os The Roots acabariam mesmo por ceder e substituir o original por uma nova versão sem legendas. Curiosamente, este acto de auto-censura apenas confirmaria a pertinência da empreitada: se exceptuarmos a mítica cena da cãibra na nádega de uma bailarina, é fascinante reparar como a mera supressão das legendas acaba por esbater quase por completo o que pareciam ser as inequívocas características paródicas da primeira versão, transformando o clipe num mero pastiche que, não por acaso, faria grande furor junto do público da MTV e catapultaria o respectivo single para o Top 40 da Billboard. É difícil imaginar um desenlace mais eloquente para um tema cuja letra apregoa que “The principles of true hip-hop have been forsaken / It’s all contractual and about money making“. Fica a lição: nem mesmo quando os meios têm princípios eles se tornam justificados pelos fins.

 


 

[THE NOTORIOUS B.I.G.] “Sky’s the Limit”
(Spike Jonze, 1997)

Eis um problema novo que a década de 90 trouxe para a produção de vídeos musicais no hip hop: como fazer um clipe para uma estrela que, por motivos que vão do encarceramento ao homicídio, se encontra indisponível para o protagonizar? Se um número considerável de telediscos póstumos de 2Pac contorna o problema através do recurso ao corte e cose de imagens de arquivo e de todo o tipo de memorabilia com outtakes de vídeos anteriores, o sempre surpreendente Spike Jonze encontraria uma solução bem mais imaginativa e subtilmente perversa para o clipe de “Sky’s the Limit” de The Notorious B.I.G.: a reencarnação.

O clipe abre com um plano esverdeado de um Mercedes a singrar por um túnel. Depois de passar por uma câmara de vigilância, o veículo pára na entrada de uma mansão luxuosa cujo jardim está decorado com réplicas de estátuas helénicas. Logo após um conjunto impressionante de seguranças se precipitar para abrir a porta da viatura, surge um plano da porta de entrada por onde saem uma figura imponente e dois caniches brancos. Se dúvidas houvesse até aquele momento, elas são de imediato dissipadas pela trilha sonora que anuncia “So everybody in the house give a warm round of applause for The Notorious B.I.G.”: todos os intervenientes no vídeo têm entre dez e treze anos, incluindo os miúdos que emulam na perfeição as poses e a indumentária da dupla de protagonistas. Quando entram num clube nocturno, Spike coloca a câmara ao nível do chão e, por um breve momento, a ilusão é total: parece mesmo que estamos perante Biggy ressuscitado e o genuíno Puff Daddy em carne e osso. Para além de versões júnior de Busta Rhymes a partir a loiça num ecrã de televisão e de Lil’ Kim com uns óculos de sol e um boné de pêlo encarnados, todas as personagens-tipo dos vídeos rap (seguranças, bailarinas, fãs, músicos, etc.) são interpretados de forma tão imaculada por esta trupe de jovens actores que se torna rapidamente evidente que afinal não são eles que estão a mimar o comportamento de adultos, mas sim as estrelas do hip hop que se comportam como crianças mimadas quando se movem no universo estereotipado de privilégio e consumo dos telediscos rap.

Apesar de ecoar as críticas aos clichés videomusicais do hip hop de “What They Do”, a empreitada de Spike Jonze é decididamente mais subtil e ambígua, sendo notório que o exercício paródico não procura jamais disfarçar o seu sincero apego às convenções do género. É por isso que a teledifusão de “Sky’s the Limit” não gerou as reacções adversas provocadas pelo clipe dos The Roots: a esmagadora maioria do público da MTV interpretou-o apenas como uma sentida homenagem a um talentoso rapper precocemente desaparecido. A realidade, no entanto, é que o vídeo estava igualmente ao serviço da impiedosa máquina da indústria musical e soube capitalizar com tremenda eficácia e elegância a máxima de que não há nada melhor para fazer disparar as vendas de um músico do que a sua morte. The show must go on, dawg.

 


 

[BUSTA RHYMES] “Put Your Hands Where My Eyes Can See”
(Hype Williams, 1997)

Por falar em clichés videomusicais, um recurso cinematográfico que rapidamente se tornaria recorrente no hip hop ao longo da segunda metade da década de 90 é a objectiva de olho-de-peixe. Para além de a sua utilização nos telediscos rap ser particularmente pertinente devido à forma como os MCs tendem a antagonizar a câmara, a sua popularidade deve-se quase inteiramente a Hype Williams, que consolidou a sua carreira videográfica em torno da forma inventiva como explorou as suas amplas possibilidades. Quis o acaso que as duas obras-primas do realizador não apenas recorressem de forma abundante à famigerada objectiva como aterrassem na MTV no Verão de 1997 com apenas um mês de intervalo, tendo como protagonistas as duas mais fascinantes personagens que o hip hop produziu em toda a década para o formato videomusical: Busta Rhymes e Missy Elliott.

Reza a lenda que durante as remisturas finais de “Put Your Hands Where My Eyes Can See” estava a passar no televisor do estúdio Coming to America, o clássico de 1988 realizado por John Landis e protagonizado por Eddie Murphy. Inspirado pela coincidência da narrativa do filme ecoar de certa forma a sonoridade tribal da batida que o produtor Buddha tinha engendrado sobre um sample obscuro de “Sweat Green Fields” dos Seals & Crofts, Busta Rhymes propôs a Hype Williams o desafio de elaborar um clipe que gravitasse em torno do imaginário africano. Tendo em conta que o realizador se atirou ao projecto logo após ter concluído o vídeo de “I’ll Be Missing You” de Puff Daddy (unanimemente considerado um dos mais confrangedores telediscos de sempre da história da música rap), era expectável que o resultado fosse apenas mais uma das muitas excentricidades inconsequentes nas quais o hip hop foi pródigo sempre que uma editora abria os cordões à bolsa. No entanto, o clipe acabaria não apenas por superar as expectativas mais optimistas como por deixar para sempre os nomes de Hype e Busta gravados nos anais do formato videomusical.

Recorrendo à objectiva de olho-de-peixe que já tinha testado um ano antes com o rapper de ascendência jamaicana para o clipe de “Woo Hah (Get You All In Check)”, Hype Williams concebe uma novela deliciosamente absurda cujos ornatos africanos servem apenas de pretexto para transformar um já de si frenético e hiperactivo Busta Rhymes num autêntico efeito especial com pulso. A utilização da lente grande angular, para além de potenciar a criação de imagens convexas de grande efeito cómico e estético, denuncia igualmente a tendência do realizador em distorcer ou manipular a realidade a seu belo prazer, um desígnio a que está igualmente subordinando o expediente da supersaturação das cores. Para além da megalomania dos cenários, do sumptuoso guarda-roupa e das elaboradas coreografias, a característica porventura mais admirável do vídeo é a forma como Williams conjuga com grande mestria a técnica do stop-motion com a edição das imagens, imprimindo ao vídeo uma cadência que acompanha a trote não apenas a batida cambaleante da trilha sonora como uma narrativa sincopada que se limita a desfilar o catálogo maníaco de encantos e delícias colocados à disposição de um caprichoso e inolvidável King Busta. Veredicto final? Provavelmente o orçamento milionário mais bem gasto da história do formato.

 


 

[MISSY ELLIOT] 
The Rain (Supa Dupa Fly)”
(Hype Williams, 1997)

 Se na segunda metade dos anos 80 as mulheres tiveram um protagonismo inegável na cultura hip hop graças à voz bem audível de uma talentosa geração de rappers feministas (com destaque para Queen Latifah, MC Lyte, Roxanne Shante e as Salt-N-Pepa), na década seguinte o sucesso de artistas como Missy Elliott e Lil’ Kim constituem as raras excepções de um panorama exclusivamente dominado pelo sexo masculino. Numa época que assistiu à emergência da obra influente de escritoras afro-americanas como Joan Morgan, Toni Blackman, Rha Goddess ou dream hampton, o contraponto musical feminista da cultura hip hop não surgiria na música rap, mas no denominado movimento “neo soul”, que, através do labor de artistas como Mary J. Blige, Meshell Ndegeocello, Jill Scott e Erykah Badu, traria de volta o groove e a sensibilidade feminina à música negra. Particularmente emblemáticos foram os casos de Lauryn Hill e Angie Stone que, após terem integrado influentes grupos rap (Fugees e The Sequence, respectivamente), encontrariam no neo soul o habitat ideal para a sua tão desejada emancipação artística.

Contrariamente a Lil’ Kim, Missy “Misdemeanour” Elliott não possuía os atributos físicos necessários para se assumir como um símbolo sexual perante o público da MTV. No entanto, seria precisamente nesta aparente lacuna que um sempre astuto Hype Williams ancoraria a estreia videomusical da rapper da costa leste, produzindo um teledisco que a transformaria instantaneamente num ícone cheio de estilo da facção mais alternativa do hip hop. Tendo como trilha sonora uma etérea composição musical baseada numa batida insidiosa de Timbaland sobre um sample de “I Can’t Stand the Rain” de Ann Peebles, o clipe de “The Rain (Supa Dupa Fly)” utiliza uma galeria de cenários inauditos cujo surrealismo é novamente amplificado ao limite pela distorção óptica da objectiva de olho de peixe. A opulência da protagonista deixa de ser assim um atributo físico para se transformar em apenas mais um adereço de um cenário hiperbolizado tanto pelas imagens convexas produzidas pela grande-angular como por um colorido guarda-roupa XL que inclui uma das peças de vestuário mais icónicas da história do formato: um saco de lixo insuflado. A maior virtude do vídeo reside, no entanto, no facto de tecer uma admirável e síncrona analogia entre a manta de retalhos sonoros criada por Elliot e Timbaland e a sequência alucinatória de imagens que, ao tornarem a música visível, acabam por fornecer pistas muito estimulantes sobre como ouvir o aglomerado de samples, batidas, ecos e texturas que se insinuam no tímpano do telespectador.

Missy Elliot voltaria a utilizar, com assinalável sucesso, a mesma abordagem sinestésica e onírica em outros vídeos, com destaque para “Get Your Freak On” (2001) e “Work It” (2002), ambos dirigidos por Dave Meyers (porventura o mais ilustre herdeiro da estética de Hype Williams). Contudo, nenhum destes premiados clipes se aproximaria da frescura e eloquência da sua histórica estreia no pequeno ecrã. Sintomático de uma década em que os telediscos foram dominados pela visão autoral dos realizadores, os clipes de “Put Your Hands Where My Eyes Can See” e “The Rain (Supa Dupa Fly)” ficariam na história não como o pico videomusical de dois fabulosos rappers mas como a fase áurea da obra de um dos criadores que mais contribuiu para dar cor, forma e movimento à cultura hip hop.

 


 

[JUVENILE] “Ha”
(Marc Klasfeld, 1998)

Quase duas décadas após a sua estreia, continua a causar uma certa perplexidade o sucesso que “Ha” conseguiu alcançar na MTV. O contexto sócio-económico, político e cultural não podia ser mais adverso. Perante uma televisão musical absolutamente controlada pelos grandes conglomerados da indústria discográfica e uma paisagem mediática que teimava em fazer capitalizar a rivalidade entre a música rap da costa leste e oeste, o hip hop do sul dos Estados Unidos (Dirty South) parecia condenado a permanecer um fenómeno de culto local. Apesar de terem lá nascido alguns termos incontornáveis do slang da comunidade afro-americana (como “bling bling” e “twerk”) e de ter sido em cidades como Nova Orleães, Miami, Houston e Memphis que nasceram sub-géneros inovadores como o crunk, o bounce, o miami bass, o trap ou o chopped & screwed, os únicos colectivos que tinham conseguido entrar no mainstream eram os 2 Live Crew e os Geto Boys, duas bandas manifestamente atípicas, pouco representativas da sonoridade do rap do sul dos Estados Unidos e que ficaram a dever muito do seu sucesso à sua polémica e incontrita apologia de temas como a misoginia e a necrofilia. Quando “Ha” entrou no Top 100 da Billboard, editoras independentes como a No Limit e a Cash Money estavam ainda muito distantes do protagonismo que assumiriam no novo milénio quer com artistas locais como Silkk The Shocker ou Lil Wayne, quer com estrelas consolidadas como Snoop Dogg, Drake ou Nicki Minaj. Em 1998, o Dirty South, definitivamente, ainda não figurava na geografia do hip hop que povoava o “sanitizado” mainstream.

Duas razões podem ser invocadas para explicar o inusitado sucesso de Juvenile. A primeira é o facto de, no mesmo ano, a Cash Money ter assinado um acordo de distribuição com a Universal que foi decisivo para abrir as portas da televisão musical. No entanto, uma coisa é conseguir entrar na playlist da MTV e outra, bem distinta, é conseguir passar em alta-rotação no canal semanas a fio. Tamanha façanha não pode deixar de estar relacionada com os méritos do videoclipe de “Ha”, realizado por um jovem talentoso que acabaria por deixar uma marca significativa no formato ao assinar mais de duas centenas de telediscos. No que toca o domínio das imagens em movimento detonadas pelo hip hop na década de 90, Marc Klasfeld representou não apenas o yin do yang surrealista da obra de realizadores como Hype Williams, Paul Hunter ou Dave Meyers como contrapôs à estética lustrosa e inofensiva do trio um estilo cru, sujo e de guerrilha. O clipe de “Ha” repesca o autenticidade do rap old school para elaborar uma série de instantâneos pungentes das crianças, mulheres, idosos e famílias que habitam um dos mais violentos bairros sociais dos Estados Unidos: o Magnolia Projects de Nova Orleães. A narrativa não apenas é elíptica como repleta de referentes temporais que, quando conjugados com uma galeria de cenas chocantes onde impera a miséria, a segregação e a violência, faz com que o vídeo se assemelhe ao hiper-realismo sórdido de um episódio de Cops. É mesmo provável que resida nesta semelhança com a popular série televisiva norte-americana a chave para explicar a facilidade com que os telespectadores da televisão musical conseguiram encaixar no seu horizonte de expectativas um teledisco que, nem que fosse pelo sotaque cerrado e nasalado de Juvenile ou pela baixa fidelidade do felino beat electrónico que assombra a trilha sonora, tinha tudo para ser recebido pelo grande público com a mesma desconfiança e nervosismo com que se recebe um alienígena no conforto do lar.

Infelizmente, seria praticamente necessário esperar pela tragédia humanitária provocada pelo furacão Katrina em 2005 para que a comunidade afro-americana de Nova Orleães, uma das musicalmente mais prolíferas das terras do Tio Sam, voltasse a merecer a atenção do pequeno ecrã.

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