[FOTO] Marko Roca
Há alguns anos estive no centro do que julgo ser o único processo de tribunal que decorreu em Portugal por causa de sampling. A foto que uso acima, do home studio de Rocky Marsiano, aka D-Mars, meu sócio na época da Loop:Recordings, inclui uma MPC da Akai intimamente ligada a esse processo. Foi com essa MPC que se sequenciou o álbum Beats Vol. 1: Amor que a Loop:Recordings editou em 2002. O disco teve o impacto que todos os que já se encontravam sintonizados com a cena musical da época recordarão: disco do ano em várias e importantes publicações, referência para uma geração, etc. Nesse tempo, não eram nada comuns as edições de registos instrumentais de hip hop e esse disco de Sam The Kid tocou num nervo geracional qualquer e a sua reputação só cresceu na quase década e meia que entretanto passou. Mas não é para avaliar a dimensão de Beats Vol. 1: Amor que por aqui escrevo hoje. Quando o disco de instrumentais de Samuel Mira começou a receber rasgados elogios dos jornais, um advogado contactou a Ananana, loja e distribuidora discográfica que foi responsável pela colocação de parte do catálogo da Loop nas lojas. A Ananana obviamente remeteu o contacto desse advogado para mim – que vim a descobrir ser um proeminente actor e autor de telenovelas com uma carreira paralela nos domínios do Direito. A razão de tal contacto, rapidamente percebi, prendia-se com a utilização de um sample da voz de Victor Espadinha no tema “Sedução”: “Quando eu era mais novo havia uma coisa muito bonita que era a sedução”, afirmava Victor Espadinha na introdução desse tema.
Sam The Kid imaginou o seu álbum de instrumentais como a banda sonora do filme do romance dos seus pais e procurou para essa banda sonora elementos dramáticos que se prendiam com as suas memórias pessoais. Mas na intrincada filigrana de samples desenhava-se também um conjunto de homenagens a sons, músicos, estilos que Sam encarava como formativos da sua identidade. Usar Victor Espadinha era, obviamente, uma homenagem. O tal advogado e o próprio artista agradeceram a vénia e apresentaram a conta. A Loop achou que nada lhes era devido e o caso seguiu para tribunal. Mas, depois da respectiva instrução, o caso apresentado pelo cantor e o seu advogado nunca chegou a julgamento. O juiz responsável deu-nos razão: as declarações de Espadinha, proferidas num programa de televisão, eram domínio público e obviamente não estavam protegidas pelo direito de autor. Não eram uma obra, uma canção, que Sam The Kid tivesse citado a partir de um disco ou de uma qualquer banda sonora. Eram frases ditas no âmbito de uma entrevista. E o sample ficou-se por aí. Em consequência desse caso, Samuel fez “À Procura da Perfeita Repetição” em Pratica(mente), de 2006, brilhante resposta a Espadinha e séria reflexão sobre o acto do “corte e costura” que tantas vezes define o hip hop.
https://www.youtube.com/watch?v=svLIEwCZE7c
Claro que o hip hop português continua a samplar e a reinterpretar. E a verdade é que, tanto quanto eu sei, nunca ninguém teve problemas – embora muitos produtores já tratem de obter autorizações formais, sobretudo em casos de maior notoriedade – sobretudo porque o nosso mercado é de dimensões microscópicas quando comparado, por exemplo, com o dos Estados Unidos onde o hip hop é uma indústria de biliões.
Ontem mesmo, na Forbes, publicou-se uma entrevista com Deborah Mannis-Gardner, descrita como a rainha do sample clearing na América. Não seria necessário escrever “na América”, na verdade, porque a profissão de sample clearing não deve existir em mais nenhum local do mundo. Trata-se de empresas e profissionais devotados unicamente a negociar direitos em casos de sampling. A empresa da senhora Mannis-Gardner tem importantes clientes – de Kendrick Lamar e Kanye West a Puff Daddy ou toda a Cash Money por exemplo. Quando um artista termina um álbum, passa os seus masters a essa empresa, juntamente com uma lista de todos os samples usados pelos produtores envolvidos em cada projecto e cabe à senhora Mannis-Gardner negociar depois com os detentores dos respectivos direitos.
Se Kanye West – e tomando o recente álbum The Life of Pablo como exemplo – sampla Nina Simone em “Famous”, para citar apenas um dos samples e um dos temas do álbum – conheçam aqui mais – , há uma série de diligências que empresas como as da senhora Mannis-Gardner têm que tomar. Atente-se à ficha técnica:
Famous
Contains samples of the recording “Do What You Gotta Do” performed by Nina Simone, used courtesy of Sony Music Entertainment. Written by J. Webb, published by EMI Sosaha Music Inc. (BMI)/Songs of Lastrada (BMI)/BMG Rights Management US LLC d/b/a R2M Music (BMI).
Quem souber ler a informação contida acima perceberá que há pelo menos três entidades diferentes com que será necessário lidar para “limpar o sample“: os herdeiros de Nina Simone, a Sony Music e os herdeiros de Jimmy Webb.
Comecemos pelo fim: Jimmy Webb – ele é o autor do tema, “Do What You Gotta Do”. Se Kanye não usasse o sample de Nina Simone, mas apenas tivesse pedido a Rihanna para reinterpretar as palavras e a melodia da canção original interpretada por Nina Simone, a senhora Mannis-Gardner só precisaria de fazer um telefonema – para a BMI, a sociedade que administra o publishing de Jimmy Webb, que escreveu o tema original.
Mas há mais, os produtores envolvidos na arquitectura final de “Famous”, Kanye e Havoc mais um verdadeiro batalhão de pessoas –
PRODUCTION KANYE WEST & HAVOCCO-PRODUCTION NOAH GOLDSTEIN, CHARLIE HEAT & ANDREW DAWSONADDITIONAL PRODUCTION HUDSON MOHAWKE, MIKE DEAN #MWA & PLAIN PAT
Famous Contains samples of the recording “Do What You Gotta Do” performed by Nina Simone, used courtesy of Sony Music Entertainment. Written by J. Webb, published by EMI Sosaha Music Inc. (BMI)/Songs of Lastrada (BMI)/BMG Rights Management US LLC d/b/a R2M Music (BMI).Contains samples of the recording “Bam Bam” performed by Sister Nancy, licensed courtesy of Technique Records by arrangement with The Royalty Network, Inc. Written by Winston Riley and published by Roynet Music (ASCAP)/Westbury Music.
Contains samples of the recording “Mi sono svegliato e.. Ho Chiuso gli occhi” performed by Il Rovescio Della Medaglia, used courtesy of Sony Music Entertainment Italy S.p.A. Written by L. Bacalov, E. Vita, S. Bardotti and G. Scalamogna and published by Universal Music – MGB Songs (ASCAP)/Universal Music Publishing Ricordi Srl. (SIAE)
Bom diggin’!