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Publicado a: 20/02/2016

Quanto custa um sample? De Sam The Kid a Kendrick Lamar

Publicado a: 20/02/2016

[FOTO] Marko Roca

 

Há alguns anos estive no centro do que julgo ser o único processo de tribunal que decorreu em Portugal por causa de sampling. A foto que uso acima, do home studio de Rocky Marsiano, aka D-Mars, meu sócio na época da Loop:Recordings, inclui uma MPC da Akai intimamente ligada a esse processo. Foi com essa MPC que se sequenciou o álbum Beats Vol. 1: Amor que a Loop:Recordings editou em 2002. O disco teve o impacto que todos os que já se encontravam sintonizados com a cena musical da época recordarão: disco do ano em várias e importantes publicações, referência para uma geração, etc. Nesse tempo, não eram nada comuns as edições de registos instrumentais de hip hop e esse disco de Sam The Kid tocou num nervo geracional qualquer e a sua reputação só cresceu na quase década e meia que entretanto passou. Mas não é para avaliar a dimensão de Beats Vol. 1: Amor que por aqui escrevo hoje. Quando o disco de instrumentais de Samuel Mira começou a receber rasgados elogios dos jornais, um advogado contactou a Ananana, loja e distribuidora discográfica que foi responsável pela colocação de parte do catálogo da Loop nas lojas. A Ananana obviamente remeteu o contacto desse advogado para mim – que vim a descobrir ser um proeminente actor e autor de telenovelas com uma carreira paralela nos domínios do Direito. A razão de tal contacto, rapidamente percebi, prendia-se com a utilização de um sample da voz de Victor Espadinha no tema “Sedução”: “Quando eu era mais novo havia uma coisa muito bonita que era a sedução”, afirmava Victor Espadinha na introdução desse tema.


 


 

Sam The Kid imaginou o seu álbum de instrumentais como a banda sonora do filme do romance dos seus pais e procurou para essa banda sonora elementos dramáticos que se prendiam com as suas memórias pessoais. Mas na intrincada filigrana de samples desenhava-se também um conjunto de homenagens a sons, músicos, estilos que Sam encarava como formativos da sua identidade. Usar Victor Espadinha era, obviamente, uma homenagem. O tal advogado e o próprio artista agradeceram a vénia e apresentaram a conta. A Loop achou que nada lhes era devido e o caso seguiu para tribunal. Mas, depois da respectiva instrução, o caso apresentado pelo cantor e o seu advogado nunca chegou a julgamento. O juiz responsável deu-nos razão: as declarações de Espadinha, proferidas num programa de televisão, eram domínio público e obviamente não estavam protegidas pelo direito de autor. Não eram uma obra, uma canção, que Sam The Kid tivesse citado a partir de um disco ou de uma qualquer banda sonora. Eram frases ditas no âmbito de uma entrevista. E o sample ficou-se por aí. Em consequência desse caso, Samuel fez “À Procura da Perfeita Repetição” em Pratica(mente), de 2006, brilhante resposta a Espadinha e séria reflexão sobre o acto do “corte e costura” que tantas vezes define o hip hop.


https://www.youtube.com/watch?v=svLIEwCZE7c


 

Claro que o hip hop português continua a samplar e a reinterpretar. E a verdade é que, tanto quanto eu sei, nunca ninguém teve problemas – embora muitos produtores já tratem de obter autorizações formais, sobretudo em casos de maior notoriedade – sobretudo porque o nosso mercado é de dimensões microscópicas quando comparado, por exemplo, com o dos Estados Unidos onde o hip hop é uma indústria de biliões.

Ontem mesmo, na Forbes, publicou-se uma entrevista com Deborah Mannis-Gardner, descrita como a rainha do sample clearing na América. Não seria necessário escrever “na América”, na verdade, porque a profissão de sample clearing não deve existir em mais nenhum local do mundo. Trata-se de empresas e profissionais devotados unicamente a negociar direitos em casos de sampling. A empresa da senhora Mannis-Gardner tem importantes clientes – de Kendrick Lamar e Kanye West a Puff Daddy ou toda a Cash Money por exemplo. Quando um artista termina um álbum, passa os seus masters a essa empresa, juntamente com uma lista de todos os samples usados pelos produtores envolvidos em cada projecto e cabe à senhora Mannis-Gardner negociar depois com os detentores dos respectivos direitos.

Se Kanye West – e tomando o recente álbum The Life of Pablo como exemplo – sampla Nina Simone em “Famous”, para citar apenas um dos samples e um dos temas do álbum – conheçam aqui mais – , há uma série de diligências que empresas como as da senhora Mannis-Gardner têm que tomar. Atente-se à ficha técnica:

Famous
Contains samples of the recording “Do What You Gotta Do” performed by Nina Simone, used courtesy of Sony Music Entertainment. Written by J. Webb, published by EMI Sosaha Music Inc. (BMI)/Songs of Lastrada (BMI)/BMG Rights Management US LLC d/b/a R2M Music (BMI).

Quem souber ler a informação contida acima perceberá que há pelo menos três entidades diferentes com que será necessário lidar para “limpar o sample“: os herdeiros de Nina Simone, a Sony Music e os herdeiros de Jimmy Webb.

Comecemos pelo fim: Jimmy Webb – ele é o autor do tema, “Do What You Gotta Do”. Se Kanye não usasse o sample de Nina Simone, mas apenas tivesse pedido a Rihanna para reinterpretar as palavras e a melodia da canção original interpretada por Nina Simone, a senhora Mannis-Gardner só precisaria de fazer um telefonema – para a BMI, a sociedade que administra o publishing de Jimmy Webb, que escreveu o tema original.

Mas há mais, os produtores envolvidos na arquitectura final de “Famous”, Kanye e Havoc mais um verdadeiro batalhão de pessoas –

PRODUCTION KANYE WEST & HAVOC
CO-PRODUCTION NOAH GOLDSTEIN, CHARLIE HEAT & ANDREW DAWSON
ADDITIONAL PRODUCTION HUDSON MOHAWKE, MIKE DEAN #MWA & PLAIN PAT
 – samplaram “Do What You Gotta Do” a partir de um disco e a entidade detentora desse master, dessa gravação, é a Sony. Por isso mesmo, Deborah Mannis-Garnder teve igualmente que falar com a Sony para obter as devidas autorizações – pagando uma quantia acordada, claro – para legalizar o sample do seu cliente.
Finalmente, Nina Simone: aos seus herdeiros compete a administração da sua obra gravada e neste caso em concreto, mesmo não sendo Nina Simone a autora original da canção, ainda é ela a intérprete e há direitos conexos que a protegem. Portanto, para libertar esse único sample, a empresa de sample clearing contratada por Kanye West teve que negociar com três entidades diferentes: o artista que interpretou a obra samplada, a editora que possui direitos sobre os masters dessa obra gravada e o autor que escreveu a canção.
E só em “Famous” há mais uma série de samples. A ficha completa:

Famous Contains samples of the recording “Do What You Gotta Do” performed by Nina Simone, used courtesy of Sony Music Entertainment. Written by J. Webb, published by EMI Sosaha Music Inc. (BMI)/Songs of Lastrada (BMI)/BMG Rights Management US LLC d/b/a R2M Music (BMI).Contains samples of the recording “Bam Bam” performed by Sister Nancy, licensed courtesy of Technique Records by arrangement with The Royalty Network, Inc. Written by Winston Riley and published by Roynet Music (ASCAP)/Westbury Music.

Contains samples of the recording “Mi sono svegliato e.. Ho Chiuso gli occhi” performed by Il Rovescio Della Medaglia, used courtesy of Sony Music Entertainment Italy S.p.A. Written by L. Bacalov, E. Vita, S. Bardotti and G. Scalamogna and published by Universal Music – MGB Songs (ASCAP)/Universal Music Publishing Ricordi Srl. (SIAE)

Nove entidades diferentes só numa música. E o álbum contém 17 faixas. Começa-se assim a ter uma correcta dimensão da tarefa quando se trata de samplar discos nos Estados Unidos.
A leitura da entrevista completa com Deborah Mannis-Gardner é por isso muito aconselhável para todos os produtores que trabalham habitualmente com samples, para todos os MCs que gostam de rimar em cima de beats construídos com samples, para todos os apaixonados por hip hop que queiram entender um bocadinho melhor as dinâmicas da sua arte preferida.
Há muitas lições importantes e curiosidades fantásticas nas respostas de Deborah Mannis Gardner:
* Prince recusa qualquer autorização para qualquer sample da sua obra;
* O processo movido pelos herdeiros de Marvin Gaye no notório caso de “Blurred Lines” de Robin Thicke foi absurdo e até Stevie Wonder o condenou;
* Um “hey hey” de James Brown nos anos 90 custava 500 dólares;
* O rap é tratado de forma injusta na indústria nos casos de direitos quando comparado com outros géneros musicais;
* Puff Daddy já desbloqueou samples sentando-se cara a cara com os artistas samplados, como aconteceu por exemplo com David Bowie;
*O sample mais caro desbloqueado por esta empresa orçou-se nos “seis dígitos”;
* O disco de Kendrick Lamar, To Pimp a Butterfly, soava, pelos vistos ainda melhor antes da mistura final, onde alguns samples devem ter sido eliminados.
Há, pois claro, como em tudo na vida, formas criativas de samplar e formas preguiçosas. O que os produtores têm que perceber, em Portugal ou em qualquer outro recanto do mundo, é que estão a lidar com obras alheias e que uma boa dose de imaginação, de respeito e de conhecimento das regras é aconselhável. Sobretudo se estiverem decididos a contornar ou a ignorar essas regras. Fazê-lo, também será uma opção válida. Mas só se se entender o alcance das possíveis consequências de tais opções.

Bom diggin’!


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