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Publicado a: 14/03/2016

Sam The Kid: a arte superior de um contador de histórias – Parte I

Publicado a: 14/03/2016

[TEXTO] Francisco Noronha [FOTO] Ricardo Miguel Vieira

[PRIMEIRA PARTE]

É sabido como o storytelling é um elemento co-natural ao hip hop, circunstância que pode ser testemunhada pelo facto de inúmeros rappers (e já nem vamos aos proto-rappers, dos The Last Poets a Gil Scott-Heron) a ele se dedicarem desde que o género deu os primeiros passos, bastando, para isso, pensarmos em gente, e para abreviar, como Slick Rick (“Children’s Story”), Notorious B.I.G. (“I Got a Story to Tell”), Common (“I Used To Love Her”) ou Gang Starr (“Soliloquy of Chaos”). Com o passar do tempo, a arte e o engenho de contar, de forma encadeada e metódica, determinada história ou episódio através de um vocabulário rimado em batidas sincopadas ganhou contornos de tradição, não havendo, hoje em dia, praticamente um grande rapper que não tenha no seu repertório pelo menos um exemplar. Se da música não se pode dizer, com tanta segurança como alguns dizem do cinema (embora redutoramente), que ela é um meio de contar histórias, a verdade é que, não sendo apenas isso, também o é. E se, na música em geral, o “contar histórias” é algo transversal (desde logo nos blues, cuja influência no hip hop ainda está por avaliar, focados que os estudiosos têm estado, até esta parte, na soul e no funk), no hip-hop, o storytelling tornou-se um campeonato à parte, quase um género, servindo mesmo para se catalogar alguns rappers como sendo “de” storytelling.

Trata-se, para o intérprete, de um exercício intelectual e técnico exigente, uma vez que implica uma engenharia complexa, de conjugação de vários elementos e recursos, isto para além da habitualmente necessária destreza no manejar das palavras, a escolha do termo ou expressão certa para sugerir algo de uma determinada forma ou a capacidade de alternar entre um léxico ora mais erudito, ora mais popular (e brejeiro, até). Complementarmente, então, exige-se a criação de uma história cativante para o ouvinte e a qual o mantenha permanentemente interessado e curioso em acompanhar o desenrolar dos acontecimentos; a habilidade para o fazer visualizar aquilo que só está a ouvir (como que uma extrapolação dos sentidos, audição e visão); a capacidade, enfim, de aliar um discurso mais realista (no sentido da descrição de um espaço-tempo), focado no particular, com um discurso mais abstracto e de alcance universal. Afinal de contas, as grandes histórias são sempre aquelas que, no seu particularismo, fazem ressoar as vidas e as questões de todos nós. Bigger than life: é assim no cinema e não o deixa de ser também na música.

No hip hop português (no espectro mais lato da música portuguesa, há uma enorme tradição de cantautores férteis neste campo, desde Sérgio Godinho a Fausto, de Zeca Afonso a Jorge Palma, até gente mais recente, como B Fachada ou Nuno Prata), dir-se-ia que os Dealema (de quem talvez o expoente máximo seja a velhinha “O Começo”), Pacman (“O Remorso”, dos Da Weasel, é a canção-ressaca da chegada da sida a Portugal), Boss AC (os seus dois primeiros álbuns são riquíssimos no género), Valete (“Roleta Russa” é incontornável para meio Portugal nascido algures em 80), Sam The Kid (“O Recado”, alegoria brilhante sobre a “crise de valores” de que tanto se fala, é justamente uma canção que faz a tal ponte entre o particular e o universal) e, mais recentemente, Nerve (conferir “O Serviço”, com Blasph, canção noir que merecia um videoclipe protagonizado por um James Cagney), são alguns dos melhores praticantes que temos por cá (a lista não pretende ser exaustiva).


 

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“Na obra de Sam The Kid (STK), porém, o storytelling atinge níveis superlativos, em virtude da carga introspectiva presente, a que se aliam agudas descrições sensoriais e de tempo-espaço, num hiper-realismo altamente estimulante para os (cinco) sentidos do ouvinte.” Foto: Paulo Romão Brás

Na obra de Sam The Kid (STK), porém, o storytelling atinge níveis superlativos, em virtude da carga introspectiva presente, a que se aliam agudas descrições sensoriais e de tempo-espaço, num hiper-realismo altamente estimulante para os (cinco) sentidos do ouvinte. De facto, é impressionante o grau de minúcia, quase neurótico, com que visualizamos, cheiramos ou tocamos – e saboreamos, até, como acontece com as bebidas que o narrador vai bebendo – o “quadro” que nos é descrito, como se efectivamente estivéssemos naquele local, envolvidos pelo seu ambiente, a presenciar as pessoas que o ocupam, as suas vozes e gestos, as luzes, as cores, o ruído, o silêncio, a temperatura (literal e metaforicamente falando). Estamos totalmente a par de como esta ou aquela “personagem”, ou o próprio narrador, se sente: o que lhe vai na cabeça, se está confortável, sentado ou em movimento, ofegante ou com a respiração tranquila, sentindo frio ou calor, o modo como interage com as pessoas em seu redor, o efeito das substâncias que lhe correm no sangue. Daí que não seja estranho aludir, a este propósito, a uma certa dimensão cinematográfica, na medida em que a voz do narrador funciona como a câmara – uma câmara ao ombro, oscilante, quase documental, ao estilo de uns Jean-Pierre e Luc Dardenne, os manos mais importantes do cinema belga contemporâneo – que serpenteia pelo local em que a acção se desenrola.

Não é um storytelling, digamos, convencional, em que ouvimos uma história bem contada do princípio ao fim. Mais do que um fio narrativo, estão constantemente a ser introduzidos descrições de movimento, tempo e espaço, acompanhadas de apontamentos introspectivos, ora irónicos e humorísticos, ora graves e carregados de um sentido moral. A reflexão subjacente a esses apontamentos – e o tempo, a lentidão lhe está associada – contrasta, pois, com a aceleração ou “imediatividade” do que se está a passar, dessa forma quebrando-se a distância entre narrador e ouvinte, no sentido em que o primeiro, quando os faz, deixa de estar imerso no ambiente descrito e passa a ser um sujeito consciente e reflexivo – um espectador (cinema, uma vez mais) – como nós, ouvintes. Ele é narrador e voyeur, e a sua narração a “janela indiscreta” hitchcockiana que permite ao ouvinte, como a James Stewart em Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954), observar, a par e passo, os movimentos (e os segredos) do narrador e dos terceiros que com ele se cruzam. Mas como estar absolutamente seguro da fiabilidade do seu relato quando ele próprio, como iremos ver, já está com a percepção alterada, nomeadamente, pelas bebidas que tomou?…

O que acontece frequentemente no storytelling mais tradicional é o facto de a história, por melhor que seja, ser à partida perspectivada pelo rapper já como isso mesmo: uma história passada, um acontecimento mais ou menos remoto que vai ser relatado a alguém. O ponto de partida de quem a constrói é, assim, o proverbial “Era uma vez…”. “It Was A Good Day” é a história cantada por Ice Cube e que, ainda antes de a ouvirmos, já nos remete para o passado (“was”), para algo já vivido, algo no qual, por isso, nem o narrador nem o ouvinte vão poder participar activamente. Ora, isso é algo que não acontece no storytelling de STK, que é, neste sentido, muito menos previsível, já que a narrativa é co-contemporânea do momento em que o ouvinte a está a escutar, como se os passos do narrador estivessem a ser acompanhado in loco, naquele preciso momento, pelo ouvinte, como se este estivesse nas suas costas ou mesmo, para utilizar a expressão dos americanos, in the shoes do narrador. É, assim, um storytelling revestido de uma forte actualidade, de tal modo que momentos há em que nos fundimos mesmo com a personagem central (o narrador) e passamos a ver o exterior através dos seus próprios olhos.

Na segunda parte deste artigo, olharemos para o modo como estas principais características ou linhas de força no storytelling de STK são vertidas, em concreto, em algumas das suas canções, as quais agruparemos em torno de um tema ou ambiente comum (e muito específico): a noite e o jogo de sedução com uma mulher. “Tu estás livre e eu estou livre / E há uma noite para passar…”.

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