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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 11/02/2023

Cultura sem fórmulas.

xtinto: “Para já, o meu sonho é esgotar o cineteatro de Ourém”

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 11/02/2023

Apelidado por muitos como um dos mestres do wordplay, com trocadilhos inusitados e bangers que manjam da escrita, ainda antes de se lançar às longas durações – com os EPs Incabado e Ventrextinto mostrou-se exímio na arte de fazer frente à impaciência de quem o acompanha e demorar todo o tempo que viu como necessário à construção de uma arca indestrutível. Reforçando-a com “Marfim”, mirando no “Éden” e metendo a rota no seu “Android”, o rapper de Ourém encheu a embarcação com uma tripulação de luxo – MUNNHOUSE bordado nos uniformes – e finalmente zarpou nas águas, rumo a uma viagem de proporções bíblicas, que nem Odisseia de Homero; e com a proa entregue a nomes como benji price, Lunn, ou Beiro, só podia voltar herói.

Agora, pondo o fim à “procrastinação” e matando o final boss que é a curiosidade crepitante, nasce esta sua “preguiça” apelidada de Latência, o seu primeiro álbum, que chega a solo fértil com o estrondo de um meteoro, pronto para abrir cratera e ficar na memória, até que dela se faça cova e acolha o “Cadáver”, que se adivinhará como imortalizado, pelo meio das palavras cantadas em vida.

O Rimas e Batidas dirigiu-se à MUNNHOUSE, em dose tripla, para participar neste concílio dos deuses e ouvir o relato desta epopeia, faixa a faixa, verso a verso e cara a cara, desvendando todo o processo, desde a altura em que surge a ideia, à sua feliz concretização.



[Rui Miguel Abreu] Estava a pensar que muitos artistas, muitos projetos, muitas bandas, muitos grupos, passam a vida a lançar álbuns e a tentar daí extrair um single que lhes faça a carreira e que os projete para os círculos do sucesso; e tu parece que fizeste o processo contrário, foste lançando singles à espera daí nascer um álbum. Aliás, tu mencionavas, penso que a propósito do “Marfim”, que quando aquilo saiu como single, ainda nem imaginavas que o Latência iria tomar a forma que acabou por tomar e que nós estamos aqui a discutir. O que é que um álbum representa afinal de contas para quem já provou o sabor do sucesso como é o teu caso?

[xtinto] Espero provar ainda mais. Mas este álbum, Latência, para mim é mesmo a viagem toda. É a isso que eu dou o nome de “Latência”. Ou seja, o tempo entre o primeiro estímulo e a exposição ao público, se bem que esses estímulos foram exposições ao público; nessa altura o projeto por detrás ainda nem existia, mas eu já tinha na calha esse nome Latência, porque sempre me remeteu para um conceito fixe e que dava para esculpir. Acho que o que aconteceu foi um bocado isso: o álbum não nasceu de uma ideia, não foi uma preconceção, foi-se esculpindo só e fui adicionando conceito, fui limando as letras para encaixarem no conceito. Depois fui também pedir ajuda ao Billy e ao Santiago, que participou no design das cenas para que a capa e os visualizers representassem também isto que eu quero dizer. Mas sim, para mim isto foi muito mais a viagem, o processo em si do que propriamente… Lá está, o nome é a viagem, não é só o resultado e todo o progresso. Em relação à escolha dos singles, na altura, como não tinha um projeto, não estava a escolher single a single. Também tivemos a pandemia e tudo mais, que na altura foi um entrave gigante, porque tinha entrado no ano a fazer o concerto no Musicbox e tinha o “Marfim” na calha para lançar a seguir ao concerto. Entretanto fechou tudo e o Nélson e o Benji aconselharam-me a aguardar um bocadinho mais, porque ainda estávamos naquela azáfama toda e na expetativa de que ia voltar a abrir, então adiámos um bocadinho. Quando vimos que isto ia ficar fechado uns tempos, decidi lançar só, sem grande preocupação. Acho que se tivesse o projeto todo à minha frente — se o projeto já existisse antes de eu lançar os singles — provavelmente eu acho que escolhia os mesmos singles pelo statement. O “Android” talvez seja o que tem mais ambição comercial e, mesmo assim, acabou por nem ser, porque o “Éden” foi a faixa que comercialmente bateu mais. Mas também é uma conversa um bocado inglória, porque eu estou bué consciente das minhas ambições comerciais, vivo muito bem com isso, e sei perfeitamente que este projeto não é um projeto que vai vender incrivelmente. Se vender — espero que sim — nunca se sabe.

[RMA] Nunca se sabe. O “Éden”  não era aquele que estavas à espera que batesse mais de todas as que lançaste.

[xtinto] Não era, de todo. O “Android”, na minha cabeça, teria muito mais engagement. Mas eu acho que é só uma coisa difícil de prever, não bato muito crânio com isso. 

[Paulo Pena] Fiquei curioso com a tua resposta sobre o processo do álbum nascer e do próprio título, Latência, porque a rever entrevistas tuas antigas, mesmo antes dos teus primeiros EPs tu já falavas desse título.

[xtinto] Ya, tem bué piada por acaso, porque a primeira vez que mencionei que ia ter um projeto chamado Latência foi para aí em 2016 ou 2017. Encontrei um tweet meu mesmo antigo a mencionar e foi isso que eu achei piada no processo todo: tentar perceber porque é que essas coisas não saíram, se foi procrastinação, se foi outros planos que entraram à frente… Epá, eu chamo-lhe honradamente uma preguiça que eu fui tendo ao longo do tempo e que agora é a nossa preguiça.

[Beatriz Freitas] Será que foi uma maneira de tirar a pressão de ti? Do género: “eu já sei que procrastino ou que demoro bastante, então vou chamar-lhe Latência, porque depois ninguém me pode dizer nada” [risos]

[xtinto] [Risos] Exato, pá, agora vou aliando esses conceitos todos ao álbum e até o próprio processo não é só uma preguiça minha, é uma preguiça de muita gente que está envolvida nisto, tipo: “olha, não te esqueças de mandar aquilo para não sei quem”; “’Tá bem, juro que é amanhã.” Esse adiar, acho que faz tudo parte do conceito deste projeto. Até porque isto são tudo faixas com datas bastante diferentes e remetem-me sempre para sítios diferentes. O “Katrina” remete-me sempre para a casa do Billy e para a pandemia, o “Carvão” e o “Loop” remetem-me diretamente para casa do Lunn, e eu sei que sou e fui pessoas diferentes ao longo desse tempo todo. E a capa remete uma beca para isso, que é aquela mancha com as minhas caras com diferentes expressões. Remetem-me para os vários “eus” e o clipe do “Cadáver” é exatamente isso também. 

[RMA] Olha, uma das coisas que este álbum reflete — e também uma confirma — é um novo método, de um novo processo criativo: em tempos — e a tua memória alcança esse tempo certamente — um produtor criava um beat e um MC colocava dois versos em cima e um refrão; eventualmente podia ter um feature qualquer, mas eram tudo criações muito contidas e o próprio processo que foste descrevendo aqui, de beats que passaram por várias mãos, de tu sentires, quando estavas a criar, estar sempre rodeado de gente e destinos. Isso remete para uma nova maneira de criar hoje em dia, que acontece muito mais dentro de pequenos ecossistemas de amizades que se criam, cumplicidades criativas, etc. Sobre esse sentido, sentes que o hip hop hoje vive um novo dia, digamos assim?

[xtinto] Sim, eu acho que sim, se bem que não sei, nunca fiz muito essa reflexão acerca de processos criativos em geral, sem ser do meu próprio processo criativo ou das pessoas que disseste agora. Aliás, por exemplo, o “Pacemaker” foi um bocado assim: ouvi o beat, escrevi, gravei, o benji deu-me a pós produção e foi assim que aconteceu. Ainda há coisas que nascem assim, mas eu gosto muito de enaltecer toda a gente que está à minha volta, é quase batota, são produtores incríveis. Estar fechado num estúdio com o Beiro, com o Lunn, com o benji, com o Kidonov… O beat não vai falhar de certeza [risos]. Depois é a minha parte. E eu acho — sempre disse isto em entrevistas e vou continuar a dizer — que isto não é um one man show, eu não sou nada autónomo. Ou seja, no meu processo de escrita sou bastante autónomo, no meu processo criativo das faixas enquanto um corpo inteiro não sou nada autónomo e gosto de ouvir tudo o que eles têm a dizer e tudo o que eles têm a acrescentar. Eu entrego a produção quase inteiramente a todos eles, porque sei que está em boas mãos. E isto acontece com outras pessoas: acontece com o Billy, acontece com o Guire. Gosto bastante de criar com o Billy porque estou à vontade. Acho que o conforto é uma coisa importante no processo criativo, a meu ver, porque já tive várias vezes em contexto de estúdio em que não havia conforto, então também não havia produtividade. Mas pronto, eu também tenho vindo a experienciar outros métodos de criação, como por exemplo escrever para outras pessoas, e são coisas diferentes. Noto que são coisas diferentes, não é o meu trabalho e o meu processo criativo difere. Eu não tenho um método, digamos. Às vezes começa por eu ter uma letra, mas normalmente começa com alguém que está no estúdio, começa a fazer um beat, eu começo a gostar do beat, começo a sacar melodias na minha cabeça, vou para o microfone e saco as melodias e meto palavras em cima. Às vezes já as tenho no bloco de notas, outras vezes já existe o beat há mil anos. O Lunn abre um beat de 2016 e de repente ficamos, “eia fogo… Isto não é de 2016, é de 2030!” A partir daí… Eu não consigo dizer que tenho um processo criativo que seja sempre o mesmo, nada se repete.

[BF] Mas é engraçado falares nisso, porque tu dizes que este é um álbum muito emotivo e introspetivo e nas tuas letras fazes referências como: “se o coelho sai da toca não acontece, a cena pára”, assim como referes um “iglu”, que remete para um estado de confinamento, mas depois rodeias-te dessas pessoas todas; deve ser uma maneira muito livre de criar, estares a debitar tanto de ti nas faixas com toda uma crew — e “it takes a village” para fazer um álbum — é porque tens de ter aquela confiança naquelas pessoas. Sentes que isso te motiva ainda mais a trazeres cá para fora esse teu eu mais introspetivo para o rap?

[xtinto] É a tal zona de conforto que eu estava a falar e porque, no meu caso, o isolar-me socialmente, para mim, não inclui estas pessoas. Isolamento social para mim é um: “pá, hoje não vou sair para o Cais, vou para casa do Lunn” e vamos só nós para casa do Lunn. E essa zona de conforto deixa-me, lá está, confortável, para falar daquilo que eu sinto na altura, ou algo que eu já senti. Às vezes, quando me afasto do quadro, consigo ver melhor o caos que lá estava e consigo descrevê-lo bem e ser bastante transparente nas minhas letras, que era uma coisa que eu me lembro, desde que comecei a fazer rap, que eu lutava para que acontecesse. Queria mesmo que aquilo fosse o meu desabafo. Eu ouvia gajos tipo o Osíris. Tu ouvias o que o gajo estava a dizer e sentias mesmo: “foda-se, este gajo está a ser bué honesto de uma forma bué dope, a rimar bué bem. É isto que eu quero alcançar, desabafar de forma fixe e de forma que as pessoas consigam dar relate, consigam ver-se no que eu digo e perceber que é uma boa escrita, que o reconheçam.” E pronto, era isso que eu queria alcançar. Acho que o “Marfim” foi mesmo o meu pico nesse aspeto. Eu ainda hoje ouço o “Marfim” — e não é muito comum eu ouvir as minhas coisas e ficar surpreendido — mas quando ouço esse som fico: “fogo pá, o Xico do passado escreveu isto, não sei se consigo voltar a escrever isto.” É aquela saudável competição e comparação comigo próprio.



[PP] Ou seja, é, se calhar, aquele equilíbrio perfeito entre o desabafo e a técnica de escrita.

[xtinto] Sim, sim. Para mim isso era mesmo o auge, conseguir conciliar isso.

[PP] Passares de um rap muito técnico a começares a cantar assumidamente foi o sair da zona de conforto? E como é que dás esse salto?

[RMA] Há uma frase chave para isso, não é? “Vi-me a fazer r&b, ‘tou tão isolado” [risos].

[xtinto] [Risos] É assim, eu sempre gostei muito de cantar, só que sempre tive um estigma gigante: sempre achei que não sabia cantar. Pessoas à minha volta diziam que eu sabia cantar, para eu não dizer isso. Depois tem bué piada, porque a primeira vez que o Benji me meteu assim, em autotune live, foi quando eu pensei: “Ok, é agora que eu vou começar a cantar.” E pronto, o autotune libertou-me um bocado isso, não vou mentir, e arrisco muito a cantar mesmo por saber que não vou passar figuras. Mas acho que o meu público não vai estranhar ouvir-me a cantar várias vezes, já o tenho vindo a habituar. A última faixa que eu lancei neste intervalo todo, entre o “Android” e o “Cadáver”, temos o “Com um Brilhozinho nos Olhos” em que eu canto bastante, com a Pikika, o “Saia” com o Stereossauro, que é também uma faixa onde eu canto bastante, tenho o “Indelével” com o Maudito, em que só canto refrão, nem tenho um verso [risos]. Tenho o “Pontas”, com o Harold, onde também canto o refrão, a faixa com o Guire, “Hamartia”…  Acho que fui habituando o público a ouvir-me a cantar e eu não sinto muito desconforto, porque isto para mim é tudo tão gradual.

[RMA] O pessoal dos Grammy teve de criar uma categoria. Eles tinham categorias para rappers e para cantores e, de repente, pessoal como o Drake apareceu a fazer as duas coisas e surgiu a questão de “onde é que a gente enfia quem tem esta flexibilidade?”

[BF] Mas será que este conforto te vai levar a arriscares num projeto sem ser de rap? Porque estás a falar do autotune e em músicas como a “Saia” isso nota-se. Mas eu vi-te com a Bia Maria no Bons Sons e foi um momento lindo, cantaste muito no “Pentagrama”. Vês-te a arriscar em todo um outro projeto num género diferente?

[xtinto] Ah sim, sem dúvida. E o Billy sabe, nós temos coisas feitas que se calhar nem vão bem ao encontro do rap e são coisas mega melódicas e cantadas.

[BF]  E para quem se inspira tanto em B Fachada, não é?

[xtinto] Ya. E Sérgio Godinho. Acho que são bons exemplos. 

[PP] Mas, para ti, já é intuitivo abordares qualquer coisa que tenhas escrito de uma forma cantada, ou também precisas sempre deste núcleo de produção?

[xtinto] Eu normalmente até me vejo mais a escrever e a magicar logo a melodia. Também continuo a escrever muitas vezes textos que são barras e, quando não estou a pensar em nenhum beat, ainda me sai muito assim. E espero que me continue a sair, porque é onde me saem as melhores frases e trocadilhos, etc. Mas quando estou em estúdio com a malta, se começarem a fazer um beat, a minha cabeça vai logo para: “o que é que isto pode ser melodicamente? O que é que eu posso fazer aqui em cima deste instrumental que enalteça a cena de forma melódica?”

[RMA] E vês como possível consequência dessa tua inclinação natural um dia destes estares a escrever uma canção para outra voz, por exemplo? Com pés e cabeça, princípio, meio e fim.

[xtinto] Eu tenho feito isso. Temos feito isso bastante aqui na MUNNHOUSE, temos recebido artistas.

[PP] Como o Lázaro, por exemplo.

[xtinto] O Lázaro foi diferente, porque ele pegou numa letra minha que já existia e que eu já tinha noutro beat. Não foi bem estar a escrever para o Lázaro. Mas já saiu um som da India Malhoa que fui eu que escrevi com o benji e temos trabalhado com a April Ivy, também. Ando a escrever bastante para outros artistas, porque eu quero viver disto e divirto-me genuinamente a fazer isso. Não me custa nada, então nem me sabe a trabalho. Eu quero só viver disto e é isso que estou a tentar fazer.

[RMA] Não se pensa muito nisso, não é? O rapper é um rapper, não é um cantautor ou um autor.

[xtinto] Mas eu, por acaso, gosto bastante do termo “cantautor”. Gosto bastante disso e não tenho feito grande esforço para me desligar dessa imagem. Eu acho que, naturalmente, as pessoas vão rotular-me como quiserem, não me vai incomodar. Não me ofende, de maneira nenhuma, chamarem-me rapper. Muito pelo contrário, eu sou um rapper, não é?

[RMA] Mas não és só um rapper, é isso?

[xtinto] Eu acho que não sou só um rapper, se bem que eu acho que as conceções também vão mudando, os contextos vão mudando e pá… Drake é um rapper, não é?

[RMA] Mas tu agora mencionavas aí uma coisa que eu acho que é muito importante e, de certa forma, eu acho que estamos a viver isso neste preciso momento, que era a ideia de que musicalmente os mundos eram estanques: o rap não comunicava com a música pop, que não comunicava com o rock, que não comunicava com o fado, que não comunicava com o jazz ou whatever.

[xtinto] O que era um desperdício.

[RMA] E nós hoje em dia vemos que estes universos andam todos a cruzar-se, a contaminar-se uns aos outros, a inspirarem-se uns aos outros e já não há verdadeiramente fronteiras. Acho que a música é um espaço Schengen onde as pessoas circulam livremente, é um bocado por aí agora, não é?

[xtinto] Sim, lá está, eu nunca tenho estigma nenhum em fazer o que quer que seja, desde que goste do que estou a fazer. Portanto, se eu entrar aqui algum dia e o Lunn estiver a fazer um grande kuduro e eu curtir bué, eu vou tentar fazer algo em cima daquilo porque curto, ya. Ele sabe que isto é verdade, esteja a produzir o que estiver a produzir, se eu curtir daquilo, eu vou tentar esculpir algo em cima daquele beat. E não tenho estigmas nenhuns em relação a isso e estou a afastar-me ao máximo dessas energias de querer encaixotar demasiado, porque acho que já vivi isso nos meus primeiros anos de rap, que foram um bocado nessa mentalidade. Isso inibia-me criativamente e eu quero exatamente o contrário.

[PP] Aproveitando essa deixa do Lunn, tu já nos falaste um bocado sobre como foi o processo de criação deste álbum e dos produtores com quem trabalhas; foram-te mandando beats e a coisa foi surgindo?

[xtinto] Mais ou menos. Com o Lunn, ele não tem necessariamente de me mandar beats, porque eu passo os dias com ele e com o benji, também.

[PP] Mas pelo que ouvi, e pela sensação que me ficou, tanto no caso do Lunn como no do benji, além da coisa soar coesa e haver um universo — apesar das diferentes produções, daquilo que eu conheço e já ouvi —, parece que todos eles foram para sítios que não costumam ir. Não é um benji type beat, se é que isso existe hoje, nem é um Lunn type beat, se é que existe também. E a pergunta é mesmo essa: vocês alinharam mais ou menos uma frequência, do género, “vamos mais longe, vamos sair do que estamos sempre a fazer”? 

[RMA] Isso que ele está a dizer é muito verdade, porque está a sentir que há aqui coisas que são bué vanguardistas e experimentais nos beats, mesmo.

[xtinto] E são experimentais! Eu até costumo dizer, em tom de piada: “façam de mim a vossa cobaia”. Eu digo mesmo assim, porque sei lá, se eu estou a sentir bué aquilo, porque é que eu não hei de usar aquilo.

[RMA] Mas o Paulo pergunta se isso é uma coisa que foi pré-determinada.

[xtinto] Não, isso foi uma coisa mega natural. Em relação às produções do Lunn, por exemplo… Epá, em relação a todas, na verdade. São coisas tão naturais, chegamos e fazemos. Não é tipo: “eia, olha, hoje, ‘bora tipo fazer aqui um four on the floor para eu mandar aqui umas dicas bué melosas sobre a minha vida amorosa”. Isso não acontece. Ele faz e eu crio à volta disso. Aquilo leva-me sempre para um universo e eu vou criando à volta disso. 

[Lunn] Eu queria acrescentar que eu acho que está bué aliado ao facto de sermos muitas cabeças e, como trabalhamos com muita gente, para além de serem muitas pessoas a trabalharem com muitas cabeças, bebes de muitos sítios. Depois acabas por ser a cobaia, como estavas a dizer, porque és também o gajo mais versátil, não tens problemas nenhuns em experimentar em sonoridades diferentes, então, naturalmente, acaba por haver mais essa exploração, porque é uma cena que tem mais margem de manobra.

[xtinto] E deixa-me à vontade, como estava a dizer.

[RMA] Se calhar em vez de cobaia, eu usaria o termo piloto de testes: o gajo que vai testar o novo avião e a nova velocidade e todas essas coisas.

E isso é um privilégio.

[PP] Mas, por exemplo, se calhar houve coisas que eles te mostraram e ficaram de fora. E só ficaram estas. Portanto tudo o que ficou é fora do “normal”.

[Lunn] É isso. Eu acho que as cenas que eu fui dropando e trabalhando com outro pessoal eram um bocadinho orientadas para uma cena um bocadinho diferente. O Hélder [L-ALI] tem uma personalidade particular, por exemplo. O Xico também tem uma personalidade mais particular, mas abrange um universo um bocado diferente; podes ir buscar um four on the floor, por exemplo, ou uma cena até techno, ou, de repente, estares num funk com free jazz. Portanto eu diria que, para mim, não acho que esteja a fazer cenas que eu não costumo fazer. Eu é que não lanço muitas [dessas coisas] ou simplesmente quando estou no mindset de trabalhar com uma pessoa em particular, depois não tenho tanta abertura. Portanto, eu não acho que o meu processo ou o tipo de beat que é fuja muito ao que eu costumo fazer, mas também, lá está, é um bocado behind the scenes.

[PP] Foge é ao que nós ouvimos. 

[Lunn] Sim, é isso, acho que faz mais sentido nessa perspetiva, sem dúvida.

[BF] E é interessante porque, mesmo sabendo que já experimentaram tanto neste álbum, tu dizes na “Loop”: “Já fiz do rap emprego, falta-me entrar com tudo”. O que é que achas que falta para entrares com tudo? 

[xtinto] Essa frase é uma frase que vive com a frase a seguir, que é: “já fiz do rap emprego, resta-me entrar com tudo, mas no fim eu volto ao mesmo, perco a paca e concluo, isso é só um loop.” ‘Tás a ver? Mas isso remete mais para a própria gestão que eu tenho de fazer economicamente, querendo viver do rap. Isso remete-me muito mais para isso, que é num dia recebo um pagamento e penso: “Ok, eu estou a viver do rap” e depois passados dois dias… [Risos]

[BF] Se calhar não estás assim tão à larga [risos].

[xtinto] [Risos] Se calhar não fiz bem do rap emprego, ainda.

[RMA] Mas para atingires esse objetivo, o palco vai ser importante. O que é que vai acontecer com este disco em palco?

[xtinto] Ainda não temos bem delineado. Não temos datas de apresentação nem nada. Mas em palco, o que nós estamos a preparar — eu, o Billy, o Guilherme Simões, que ao longo destes anos de estrada tem sido o meu técnico de som, mas que é um músico incrível e que em princípio vai ser o meu teclista/guitarrista, e também o João Mascote, que é um amigo meu… Lá está, eu curto de puxar a família para tudo o que eu faço e fazê-lo de forma íntima, como este álbum o é. O Mascote é um baterista que é meu amigo desde sempre e estamos mega entusiasmados para começar a fazer estrada e para apresentar este álbum. Em princípio será esse o formato, não quero estar aqui a prometer coisas, mas idealmente.

[RMA] Dois músicos live atrás de ti, é isso?

[xtinto] Exato. Ainda não sabemos bem se não serão três, porque aqui o Billy também toca flauta transversal e pronto, também é uma grande mais-valia.



[BF] Qual é que seria a sala de sonho que elegias para apresentar este álbum? 

[xtinto]Sala de sonho?

[Lunn] Estádio.

[xtinto] Um estádio? [Risos] Pá, para já, o meu sonho, é esgotar o cineteatro de Ourém.

[BF]  Falas bastante da tua terra natal. Sentes que essas raízes e background ainda são uma das tuas maiores inspirações? Do género: “Pessoal de Ourém, I made it.”

[RMA] Isso vai ser quando o Presidente da Câmara te oferecer a chave municipal.

[xtinto] Isso não sei se será possível.

[PP] Ter o nome numa escola, qualquer coisa assim.

[xtinto] A minha mãe já me disse para deixar de meter referências políticas por causa disso: “qualquer dia não te convidam”.

[BF]  Achas que não? Quer dizer, tu és vocal nisso, até dizes, por exemplo, na tua música com o João Tamura e o Beiro: “Pai Comuna, sou de esquerda desde puto/ Acho comum não aturar mais ditaduras neste move”

[RMA] Podes ser da cor política que tu quiseres, se um dia chegares ao topo, qualquer Presidente de Câmara vai querer associar-se a isso, seja ele de que partido for.

[BF] E música também pode ser política. 

[xtinto] Em relação a Ourém, eu não sinto que tenha um sentimento de dívida para com ninguém, ou para com a minha zona ou whatever, mas são prendas que eu gosto de dar. Sinto que eu vou a algum lado e está lá sempre gente de Ourém, é incrível. Ir atuar à Covilhã e ver que houve uns cinco gajos que encheram um carro [para me ir ver]. Eles não ganham nada por ir ali, eles já viram aquilo muitas vezes e vão a uma discoteca da Covilhã ver-me. Isso reflete muito o apoio que eu tenho recebido ao longo do tempo e eu acho que isso deve ser retribuído. Acho que no álbum retribuo isso também, de certa forma. Tenho por exemplo o skit do Xiquinho, que é aquela reação ao “Tontura”, que são coisas que a malta vai ouvir e pensar: “eia meu, este gajo meteu aqui o Xiquinho!”. Isto vai dizer muito para aí a dois por cento das pessoas que me ouvem, mas acho que é importante.

[BF]  E sentes isso como um entrave? Lembro-me que quando entrevistei o benji price ele me falou sobre as dificuldades no início da sua carreira, de ser do Ribatejo e não estar tão imediatamente incluído nas comunidades de rap mais centrais.

[xtinto] Sim, mas isso é outra conversa. Nesse caso eu concordo, acho que quem vem de fora… Nós tivemos de nos mover todos para aqui.

[RMA] Mas quão curioso é que a variedade que hoje todos reconhecemos existir no hip hop, em Portugal, esteja também ligada ao facto de ter havido um momento na história em que havia dois polos principais, Lisboa e Porto, e 80% das pessoas soavam a cópias dos outros 20%. Com mais uma nuance ou menos uma nuance, com mais um pontinho de diferença ou menos, mas havia sempre um: “ah, eu sei quem é que este gajo ouviu toda a vida para estar a escrever assim”. E agora eu sinto que há uma pluralidade incrível, mas ao mesmo tempo acontece esta coisa que eu acho que é bué saudável, que é: “eu sou de Tomar”, ou “sou de Ourém” ou “sou do Ribatejo”, completamente sítios que são de fora desses circuitos.

[BF] Tem muito a ver com a ascensão da internet e das redes sociais, também.

[xtinto] A aldeia global. 

[BF] De repente, estás a falar no Twitter com alguém e next thing têm uma música juntos, como vi um tweet teu há pouco tempo a falares com o Wugori.

[xtinto] Ya. O que eu lhe respondi foi “agora vais começar a sair porque tens de vir aos gigs comigo.”

[BF] Exato. E assim, como ele estava a tweetar isto de um sótão na Amadora, agora há a possibilidade de chegar a outros, vindo de qualquer sótão que seja, Amadora ou, sei lá, Alpiarça.

[RMA] Mas não achas que é essa multiplicidade de perspetivas, de montes de origens geográficas diferentes, que enriquece a cena?

[xtinto] Claro que sim. Eu, pelo menos, sinto que a minha criatividade tem muito a ver com tudo o que me rodeia, com tudo o que me influencia. Eu quando tenho um block de escrita — e já tive blocks duros, durante meses — cada vez mais sinto que a forma de combater isso é mudar de ares: “faz outra coisa, man, já estás muito rotineiro, tens de mudar, tens de fazer outra coisa à tua vida.” E depois dessa mudança do dia a dia e das influências — e isso pode significar passar uma semana em Ourém em vez de passar uma em Lisboa — já vai mudar muito o meu chip, acho eu. É a vivência. Lá está, não temos todos a mesma vivência e o ponto geográfico muda muito a vivência das pessoas.

[RMA] Uma vez ouvi um songwriter americano a dizer que toda a vida escreveu canções à guitarra e a coisa mudou quando houve um dia em que ele decidiu que ia escrever um álbum todo ao piano, sendo que ele não sabia tocar piano. Mas forçou-se a escrever as canções com um piano à frente e isso mudou o chip e mudou o resultado da arte dele. 

[xtinto] Por isso é que eu deixo o meu processo muito ao Deus dará.

[BF] E com todas essas influências e este teu à-vontade com outros estilos musicais, o que é que andaste a ouvir no decorrer deste álbum?

[Lunn] Demos de pessoas aqui [risos].

[xtinto] Às vezes acontece muito isso, ya. Tenho o privilégio de ter amigos que fazem música excelente, então fico colado às demos do que se faz por aqui. Mas lá está, o processo deste álbum é gigante.

[BF] Mas também te queria perguntar se não te preocupa o facto de poderes criar aqui uma espécie de echo chamber, porque estás rodeado pelos teus, ouves música dos teus, fazes música com os teus. Não houve algo fora daqui, álbum ou mixtape, que tenhas ouvido e que te tenha inspirado a fazer algo?

[RMA] Ou a picar, não é? Às vezes é o provocar. Hás de ter recebido aquele relatório que todos recebemos há uns meses…

[BF] O Spotify Wrapped! O que é que estava no teu?

[xtinto] Pedro Mafama, Sérgio Godinho, Amália Rodrigues… Às vezes as pessoas perguntam-me o que ando a ouvir, na expectativa de descobrir alguma cena nova, e eu ando a ouvir bué Sérgio Godinho e depois é sempre a mesma resposta [risos]. Mas agora encontrei um bacano, que julgo que é do UK, e se chama TyriqueOrDie.

[BF] Falas muito do dilúvio, uma referência muito usada no hip hop tuga, como por exemplo pelos COLÓNIA CALÚNIA, que também sei que te inspiram. O que é que este dilúvio representa para ti?

[xtinto] A capa do álbum e a palete de cores remete-nos para uma coisa mais aquática. E temos o “Noé”, temos o “Katrina”, temos o “Iglu” e temos várias referências mais tempestuosas. Ao longo destes dois anos, acho que reflete bem o que é que foi a vida artística — e geral; não foi só uma cena minha. E o dilúvio é mesmo o chegar deste álbum e é o “Noé” a dizer “buli na arca, ’tou pronto para o dilúvio.” É do género: “quando chover, vocês vão ver.” E eu queria dar uma vibe de tempestade ao álbum, porque ele depois acaba em bonança, em paz mesmo. Para mim, o fim, com o “Cadáver”, é mesmo a paz total e é quando chega o fim do álbum. Mas quando chegar o fim do álbum, espero que as pessoas vão ouvir o “Katrina” outra vez e que recomecem a tempestade.

[RMA] E recomeça o “Loop” [risos].

[BF] E na “Cadáver” vemos-te a ser enterrado. O que esperas que fique da tua obra? 

[xtinto] Lá esta, a tal malta fiel a ouvir nos fones e a dizer as minhas letras religiosamente, como têm dito muito bem. Às vezes é incrível ver malta que sabe um “Marfim” de cor.

[RMA] Há quem descreva isso como o momento em que arte se transforma em cultura — cultura no sentido de algo que as pessoas partilham, vivem, sentem que pertencem. Porque há arte que nunca chega a tornar-se cultura, porque nunca alcança as pessoas, nem se torna numa prática. Mas isto é quando a arte se transforma em cultura: de repente passa a fazer parte da vida das pessoas e elas repetem as palavras, sentem-nas, compreendem-nas, vivem-nas. 

“Onde quer que eu ponha a mesa, o prato vira cultura.”


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