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Publicado a: 19/11/2018

Xoto: “Acredito mesmo que há estados criativos que nos alteram a vibração e nos conectam a redes de informação que simplesmente fluem”

Publicado a: 19/11/2018

[TEXTO] Gonçalo Oliveira [FOTO] Outros Ângulos Produções

Nem sempre o melhor hip hop nasce nos grandes centros urbanos e o estado da cultura em Portugal tem-nos mostrado que há muito mais para descobrir além de Lisboa e Porto. Xoto acena-nos a partir de Setúbal e tem desenvolvido as suas raízes na cultura urbana desde o final do milénio passado, quando colocou em prática os primeiros tracejados na parede com latas de tinta em spray.

Para os mais atentos ao que se passa no circuito independente do rap, o nome até pode não ser uma novidade completa, já que Xoto colecciona temas há cerca de dez anos, alguns deles com edição em vídeo, que se tornaram num chamariz para quem procura as letras de rap menos óbvias — “Setubalense” foi a peça de maior alcance, colocado no YouTube em 2013, numa fase ainda prematura da plataforma em Portugal, e amealhou 70 mil visualizações.

Ao seu catálogo, Xoto adicionou recentemente o terceiro álbum de originais, que é fruto de um período de isolamento em Tróia durante o qual o rapper passou para o papel todos os pensamentos que lhe crepitavam na mente. Ao Rimas e Batidas, Xoto explicou que o processo de composição se tornou mais fácil após o disco editado no projecto Ignis Verbis, bastando-lhe apenas um ano para nos trazer o sucessor de Recomeçar — antes disso, teríamos de recuar a 2010 para o ouvir no registo de longa-duração, o primeiro Despertar, que foi recentemente reeditado no seu canal no YouTube. Mera e Westline foram os produtores escolhidos para o acompanhar nesta nova aventura, que acaba de gerar sete novas faixas — “Modo Ostra” e “Gravidade Zero” até já têm videoclipes.

 



Para quem acompanha o hip hop produzido em Setúbal, o nome Xoto é muitas vezes referenciado como figura de culto e de estudo obrigatório. Para os que ainda não se cruzou com a tua arte, fala-nos um pouco sobre o teu trajecto. Como é que tudo começou?

Entrei no movimento com o graffiti, amor ao primeiro contacto, soava novo, livre e rebelde! Em 1999 conheci uma mana do Montijo que pintava e me motivou a mim e a outro irmão para desenharmos. Comecei por “mandar” as primeiras peças em fábricas abandonadas e do nada já estava a fugir à policia pelas ruas da cidade. Coração na mão, sorriso na cara.

Em meados de 2000 comecei a escrever umas letras, e junto com três irmãos, gravámos o primeiro som no quarto, num mic de um Pentium 100, com uma rede de protecção da coluna, atada com fita cola, a fazer de pop-filter. Tudo muito inocente e mal feito, mas como um verdadeiro toy, muito puro, sem regras nem pretensões, só vontade e sentimento. Mais tarde formámos uma banda chamada GTC (Guerreiros de Terracota) e embora não tenhamos gravado nada, girámos palcos de norte a sul do país com a nossa caixa de ritmos. Fazíamos live act e nem sabíamos o que isso era, foi como nos orientámos para passar os sons. Embora tenha sido tudo muito à toa, chegamos ao palco da mitica festa na IRS, em Albufeira, onde só tocámos porque o pai de um de nós obrigou o campeão nacional de beatbox a fazer um freestyle connosco, depois de nos termos esquecido dos cabos da caixa em casa. Toyada atrás de toyada. Anos mais tarde, já em 2005/2006, entre muito bombing e freestyle, fiz parte de outro grupo de rap que se chamava DI (Direitos Iguais). Também não deu em nada, mas foram fases de experimentação e auto-conhecimento, anos de ouro! Quando emigrei para Espanha meti na cabeça que só voltava com um álbum na mão e assim foi! Em 2010, graças aos meus irmãos galegos, dei à luz o Despertar. Foi o culminar de dez anos da minha vida, cinco deles emigrado, durante os quais quebrei sistemas de crença, me desapeguei de estereótipos que me ancoravam na tuga e cresci muito como ser humano. Isso deu-me as ferramentas necessárias. Foi aí que senti que tudo começou de verdade, embora saiba que hoje não estaria aqui se não fosse cada passinho. O processo foi lento mas saboroso. Mais tarde, em 2017, consegui lançar o segundo álbum, Recomeçar, num projecto com banda, chamado Ignis Verbis (Palavras Incendiárias).

Já tens alguns trabalhos editados, inclusive o projecto Ignis Verbis. O que é que destacas da obra que tens vindo a criar e o que é que cada uma dessas edições simbolizou no teu percurso dentro do respectivo momento?

O Despertar, em 2010, foi um álbum bastante inocente. Fi-lo na altura, a pensar bastante em mim, na minha namorada e nos meus manos da tuga. Não tinha noção de público ou de missão superior e estava sem expectativas nenhumas. Tive um feedback brutal de muita malta de STB e ainda hoje tenho rapaziada que canta essas letras comigo em concerto. Tive pessoal a dizer-me que os fez questionar a vida e outros props de deixar um puto sem saber onde se enfiar. De repente lancei o “Setubalense” e deixei a cidade arrepiada, desde o tropa ao pescador. Sem Facebook, Instagram ou divulgação, o videoclipe chegou longe e influenciou tudo a partir dai. Percebi que já tinha público. Só consegui lançar outro álbum sete anos depois, o Recomeçar. Pressionei-me a regressar mas foram só curvas no caminho. Dois produtores cagaram para o projecto quase no final e eu com data de lançamento marcada. Fui ter com uma banda de rock stoner de uns amigos meus — os Los Empty Heads — e fui sincero. “Não tenho mais ninguém para quem me virar. Temos dez dias para fazer dez sons ou tenho de desmarcar o concerto, como é que é?” Claro que a resposta deles foi “vamos embora!” Daí surgiu o projecto Ignis Verbis. Compusemos e refizemos 15 músicas, e transformámos o meu álbum no nosso álbum. Eternamente grato! Aprendi bué nessa experiência. A relaxar, porque a pressão só faz com que a cena não flua e que os processos só caiam na nossa cabeça. A queda faz parte do processo. Sem medo! Depois desta aprendizagem, bastou-me um ano para fazer o Acreditar. Puro fluxo!

O Acreditar vai de encontro à linha de pensamento que tens vindo a transmitir na tua música. O que te inspira a mergulhar nas profundezas do vocabulário português para tecer pensamentos tão cristalinos, que parecem estar em falta no panorama do hip hop da actualidade?

O que me inspira é a vida. Altos e baixos. Sinto que a minha missão divina para melhorar isto e honrar os meus antepassados é através da minha escrita. É para isto que eu vim cá desta vez. Agradeço o elogio, até fiquei meio atrapalhado. Seja como for, não acho que o meu trabalho seja mais ou menos importante do que o de ninguém. No nosso movimento há espaço para todos. Bué malta tem tendência a dar-me props, seguido duma comparação tipo que a minha cena “é que é, a do MC ‘tal’ não vale nada…” Acho mesmo que todos estão a cumprir uma função superior e se há quem ouve é porque faz falta. Fico contente de sentir que estou a preencher um espaço no hip hop que, até agora, pouco ou quase nenhum MC preenchia. No entanto, ia adorar se o meu álbum inspirasse malta a entrar no mesmo registo. Podem bytar à vontade! Espalhem a mensagem, é um favor que me fazem.

Noto neste disco uma grande comunhão entre culturas, filosofias e até religiões de vários cantos do globo. Tudo adaptado ao tempo no qual a nossa sociedade se encontra. Como é que se formularam todos estes temas na tua cabeça até chegares ao Acreditar? E porquê a escolha deste título?

Para chegar à inspiração que me concedeu este álbum, tive de me conectar. Deixei de fumar ganza, deixei de beber, deixei de trabalhar. Isolei-me em Tróia e “seja o que dEUs quiser”. Embora estivesse numa fase da minha vida em que estava com muita informação na cabeça, muitas quadras do Acreditar nem sinto que fui eu que as escrevi. Acredito mesmo que há estados criativos que nos alteram a vibração e nos conectam a redes de informação que simplesmente fluem. Muitas pessoas que escrevem têm a sensação de que há músicas de outros artistas que podiam perfeitamente ter sido escritas por elas. Pois bem, meus queridos obcecados com a originalidade, acredito que não somos nós que criamos nada, somos só o veículo dessa criação, e sinto que foi o que se passou comigo, bebi de uma fonte colectiva.

O título já vinha de uma ideia antiga, baseada na frase bíblica “No principio era o verbo”, que era a de fazer uma trilogia de álbuns: Despertar, Recomeçar e Acreditar.

Tens a ajuda do Mera e do Westline na produção. Como é que se deu esta parceria e de que forma é que ela afectou tudo aquilo que tinhas para contar?

A produção é do Westline, a composição de beats é dos dois. Como eu já tinha dito, foi tudo muito fluido. Andava à procura de produtores de Setúbal e um chapa deu-me a dica desses dois nomes. Como é malta mais nova não os conhecia. Ouvi os beats do Mera e fiquei estúpido com tanto talento. Identifiquei-me logo bué com os feelings da música dele e percebi que encaixavam perfeitamente com o que eu queria transmitir. O Westline conheci através de um amigo que temos em comum e deu-se uma conexão que se tornou mais de amizade do que musical, o que instintivamente me fez confiar nele. Acampou semanas intensivas no meu sofá e não descansámos até ter os beats certos e as letras fechadas. Era acordar e trabalhar até ficar com a cabeça em água. Rapidamente percebi que foi a pessoa mais talentosa, profissional e dedicada com quem já trabalhei. Sem dúvida nenhuma que já estavam ambos no meu caminho. Gratidão!

Lançaste o “Modo Ostra” e o “Gravidade Zero” no formato de vídeo. O que é que viste especificamente nessas faixas ao ponto de lhes atribuires essa “urgência” de destaque como singles?

O “Gravidade Zero” é a faixa do álbum pela qual tenho mais carinho. Queria mesmo que fosse o meu irmão Garras (Outros Ângulos Produções) a fazer o vídeo, porque com ele tenho uma ligação especial a níveis que ainda nem percebemos bem, e senti que tinha de ser ele. Sabia que ia sair algo especial, só podia. Entretanto isso comprovou-se com a história que partilhei no álbum de fotos do making off na minha página no Facebook. Se ficaram curiosos, já sabem.

No caso do “Modo Ostra”, quis fazer vídeo porque sinto que a mensagem que ali exprimi é vital nos dias de hoje. Sentimos um vazio espiritual tão grande que já temos medo de estar connosco próprios. Adorava poder desconstruir esse vazio e contribuir um bocadinho para a plenitude da alma. R.I.P. Chambel. One Love. Longa vida, HH.

 


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