Pontos-de-Vista

Miguel Rocha

Twitter

pub

Muito mais do que um disco.

Um ano de Gótico Português dos Glockenwise: para onde é que esta “Besta” já nos levou?

Segundo o last.fm, nos últimos 365 dias, escutei mais de 1000 vezes (não vou revelar o número exato) as canções de Gótico Português, quinto longa-duração dos Glockenwise, o segundo de uma nova vida a cantar em português que tão bem assenta à banda de Barcelos. Obsessão? Provavelmente. Doença? Os meus amigos ficaram convencidos que sim.

No último ano, escrevi e mencionei várias vezes Gótico Português nos meus textos. Por estas páginas, escrevi a reportagem da apresentação do álbum na Culturgest, mas Gótico Português também se imiscuiu nas minhas análises aos discos de ben yosei (lagrimento) e Conjunto Corona (ESTLIVS MISTICVS). 

Um ano é pouco tempo para discutir o impacto e influência de um dado disco. Lembro-me que, há uns anos nestas mesmas páginas, o camarada Pedro João Santos escrevia sobre o primeiro aniversário de Deepak Looper. Foi esse texto que me inspirou a escrever este ensaio. Se era válido na altura questionar se a borboleta ainda batia “asas”, também é valido agora questionar para onde é que, um ano depois, a “Besta” de Gótico Português já nos levou.

Fora a aclamação da crítica — disco do ano para a Antena 3, quarto melhor disco português do ano para a Blitz, presença nas lista de vários meios independentes (o ReB foi um deles), o meu disco do ano, ausente da lista do Ípsilon (alguém já descobriu o porquê?) —, Gótico Português abriu a janela para um conjunto de atmosferas e narrativas que muitas vezes não fazem parte do discurso elitista cultural português. Centralista por natureza, claro, sempre localizado em Lisboa, a nossa “elite” esqueceu-se de que existe um Portugal que não se rege apenas por chavões e por leituras simplistas de um “campo” onde a felicidade é quem mais ordena. Pelo contrário. No Portugal de “Margem”, o povo é quem mais ordena. São as comunidades que ainda por lá ficam que funcionam como veículo para a transmissão das vivências — não só as tradições — desses mesmo locais.

No caso dos Glockenwise, isso até se reflete na forma como a banda se formou, quando ainda os seus membros eram adolescentes fascinados com o punk e rock de garagem escutados nos seus primeiros três álbuns, todos cantados em inglês. Os Glockenwise tinham devoção às bandas locais como os Black Bombaim ou os Green Machine e queriam também fazer aquilo — afinal, como os próprios disseram a dado ponto, em Barcelos “ou jogas futebol, ou te metes na droga, ou fazes uma banda”.



Gótico Português, influenciado pela corrente fantástica e mística do southern goth, não serve apenas como exploração da divisão entre aquilo que significa ser cosmopolita ou “do campo”, dos dormitórios ignorados, em 2023 (agora 2024). É, sim, uma homenagem a um sítio que pode apenas existir nas nossas memórias e imaginação, mas que nos continua a influenciar ao longo das nossas vidas. Ignorar esse sentimento é apenas e só prejudicial. Aquilo que torna Gótico Português é encontrar a linha fina entre como lidar com os traumas de quem cresceu no meio do nada e se sente ignorado, mas sem nunca cair em falácias populistas, e de homenagear esse mesmo sítio. É amor e ódio ao mesmo tempo, melancolia e felicidade no mesmo sítio. Não há melhor género que jogue entre esses campos como o shoegaze, ora. Daí a que as guitarras texturais e ondulantes de “Vida Vã” nos transportem para esse sentimento que, simultaneamente, é pessoal e abstrato. É pessoal no sentido que só podia ter sido escrito por pessoas que sabem o que é subsistir fora dos grandes centros urbanos, mas é abstrato porque o universo criado não é 100% real. As casas de pedra a pingar água após o dilúvio em “Água morrente”? As de Gótico Português são as mesmas que me lembro da minha infância. O Portugal retratado em “Margem” cujos contornos são pintados com a ajuda de Rosa Ramalho ao longo do disco? Mantém-se com “tendência para deslumbrar”. E se todos viemos desse mesmo “Lodo”, é para lá que um dia vamos todos voltar. Portanto, podemos — e devemos — trabalhar em conjunto para o melhorar. 

A ação coletiva move-se nas entrelinhas de Gótico Português. Quando escrevi na Playback sobre o disco, disse que, no limite, podia “ser muito emo”. Mas o “emo” dos Glockenwise, tal como o emo de lagrimento, surge de um local coletivo — o “nós” acima do “eu”, em contraste com muito do emo popular dos anos 2000 — que pode ser definido, como o Gato Mariano indicou recentemente, pelo sentimento “triste” de ser português. Porém, o que significa isto da tristeza portuguesa? É muito mais que a saudade do fado, isso de certeza.

Gótico Português, tal como lagrimento, e em certa medida, também Diabos m ‘Elevem (de Riça), é um disco frágil. A voz de Nuno Rodrigues parece estar constantemente no limite de colapsar sobre si mesma, como se estivesse sempre com medo de não conseguir encontrar o caminho mais ou menos certo para um destino incerto (temas que já tinham inspirado, de certa forma, as composições cantadas em português do seu projeto a solo, Duquesa). Em “Margem”, Nuno canta: “Vou tentando todo o dia / Toda a gente quer que eu ria / Mas não consigo esquecer / Que tentei na escada errada”; em “Gótico Português”: “São tantas as imagens que me assaltam / Sou forçado a ter de recuar / Conjuro a segurança que me falta / Dou um passo em direção ao ar”; no refrão de “Vida Vã”: “E se / E se falhar / Sem força para perder / A despejar o mal de mim”. Por cima de Gótico Português, paira uma dúvida existencial gigante, amparada apenas pelas texturas shoegazenianas de cada canção e de refrões orelhudos e quentinhos como no caso de “Besta” (mais agressiva) e “Lodo” (mais romântica). 

O que os Glockenwise conseguiram captar em Gótico Português é mais do que a arte de ser sensível — é a arte de ser realista. Em resposta ao universo “hiper” onde habitamos, onde tudo tem de ser megalómano, o universo de Gótico Português é o contrário de megalómano. As canções até podem ser longas e mais progressivas face aos registos anteriores dos Glockenwise, mas a instrumentação é mais esparsa e minimalista. Há espaço para as canções respirarem e é nesses momentos onde o espaço concedido permite à voz e letra de Nuno brilharem e fazerem-nos refletir sobre aquilo que nos rodeia. lagrimento e Diabos m’ Elevem, de alguma forma, fazem jogos semelhantes. Na tensão entre as paisagens sonoras destes discos, as interpretações emocionais e frágeis dos seus criadores (ben, mais emo; Riça, mais agressivo, mas sem nunca desprezar a melodia), encontra-se a chave para entender estes discos. Todos eles estão a construir, à sua medida, o seu próprio Gótico Português. O Gótico Português é mais que um disco — é uma forma de expressão, onde através da magia, os Glockenwise tentaram encontrar paz consigo mesmos, com a sua bagagem, com os seus traumas. Foi em Gótico Português onde eu — e aparentemente tantos outros — encontrei essa mesma paz. 

Nesta sexta-feira (1 de Março), no Musicbox, em Lisboa, celebramos essa paz — em conjunto, mais uma vez. Entre abraços e lágrimas, lá estaremos. Porque nunca os Glockenwise soaram tão despidos e crus como em Gótico Português. E nunca Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira, Cláudio Tavares e Rui Fiúsa soaram tão relacionáveis e cheios de esperança como em Gótico Português. Oxalá tenhamos todos essa esperança dentro de nós.


pub

Últimos da categoria: Pontos-de-Vista

RBTV

Últimos artigos