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ben yosei

lagrimento

Edição de autor / 2023

Texto de Miguel Rocha

Publicado a: 11/12/2023

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ben yosei (Rafael Trindade para os amigues) diz fazer música devocional. Em entrevista ao Rimas e Batidas, no passado mês de julho, definia o conceito como “toda e qualquer música ou expressão musical que se alie de uma devoção a algo”. Portanto, eis a questão: a música feita por ben yosei é em devoção ao quê ou a quem?

Para respondermos a esta pergunta, há que refletir sobre o percurso musical de ben yosei. Antes de ben yosei se apresentar com luz, em 2020 — já lá vamos —, Rafael editou música sob um conjunto de nomes: vernon eat wax, old man dance with ghosts, richard was airs and roses ou leitmotif garish blizzard tombstone quartz plus (o mais curioso e experimental dos pseudónimos de Rafael). Quem escutou esses lançamentos, sabe que a música de ben yosei bebe dessas experimentações — os cruzamentos entre música ambiente e vaporwave para criar canções pop à sua maneira mantêm-se —, mas a raison d’être de Rafael metamorfoseou. Se Rafael passou anos a experimentar coisas para entender a direção artística que pretendia dar ao seu projeto, com ben yosei encontrou-o. Passou a criar música pop construída a partir de ambientes e paisagens a refletir sobre a sua estória — com princípio, meio e fim. 

Foi em luz que conhecemos mais sobre ben yosei. Nesse disco, apresenta-nos a sua visão de devoção e, simultaneamente, tenta encontrar respostas para a sua própria (devoção). Falamos de devoção às paisagens espirituais, etéreas, a certos elementos sonoros e estéticas que associamos à “margem quimérica” que os Glockenwise tão bem cantam em Gótico Português, que Riça tão bem explora em Diabos m’Elevem, que o Conjunto Corona homenageia no seu ESTILVS MISTICVS. Em lagrimento, o seu mais recente disco — editado em maio de 2023 —, o que Rafael faz é agarrar nesses temas e amplificar-lhes a emoção e profundidade com que os aborda. É a continuação (e evolução) de luz, uma nova tentativa de ben explorar e homenagear as suas raízes. Uma que tanto conta as histórias dos sons registado pelo etnomusicólogo Michael Giacometti (a série Povo Que Canta é obrigatória para qualquer interessado em música tradicional portuguesa) como da pop portuguesa atual construída num universo onde se sente a influência de entidades como B Fachada, Conan Osiris ou ROSALÍA.

Mas a que é que assemelha um disco como lagrimento em 2023? É um disco que respira, simultaneamente, tranquilidade e caos. Surge da necessidade de ben yosei homenagear a sua “margem” — Liceia, freguesia pertencente ao concelho de Montemor-o-Velho (em Coimbra) — e de encontrar paz com esta. Pelo meio, peças centrais a este enredo vão sendo descortinadas: a religião, tema crucial à obra de ben, em “o pote”, belíssima faixa de abertura. O seu pai em “amorosamente”. A sua avó em “bó” e “anjo”, canção central deste lagrimento, onde o cantar de yosei nos faz pensar que, na verdade, isto é tudo emo (e há elementos da sua música onde se sente a influência do emo trap). É propositado — só assim a catarse total é possível no meio de tamanha tristeza. É o clímax do disco. Daí para a frente, lagrimento reinicia. O universo de Rafael também. 

“prece”, ambient pop servida ao estilo canção de embalar, oferece-nos calma e leva-nos até “ceifa”, cantiga doce onde Conan Osiris empresta a voz. É uma faixa que tanto herda da lírica d’A Naifa como dos novos “desfados” portugueses que o próprio Conan ajudou a edificar. Sem género, sem barreiras, a cruzar passado e presente para soar a futuro. Soa às histórias da margem quando estas são cantadas com a dor de quem lá habita. É assim que ben as canta em “processionária”, penúltima faixa do disco, onde a reflexão a ocorrer é semelhante àquela que os Glockenwise cantam em “Vida Vã”. É o mote de quem sabe onde está o seu coração e refúgio independentemente de para onde vá. Se para os Glockenwise era “A vida inteira num lugar / Ficava aqui até ao final”, para ben é uma certificação para ele de que vai “continuar” independentemente para onde vai — apesar de saber sempre para onde voltar.

As canções de lagrimento existem porque são canções de resiliência. São como ben conseguiu fazer o seu mundo continuar apesar das dores, traumas e valências causadas pela sua “margem”. Pelo meio, pinta um local, uma vida, onde todos esses acontecimentos e sentimentos coexistem, mas sem nunca entrar numa onda nostálgica e romântica daquilo que é o “campo” idealizado. A sua “margem” é transformada na sua vida, a sua vida transformada na sua “margem” — uma não existe sem a outra. É com a sua obra que ben cristaliza a relação entre ambas. A sua devoção, afinal, é essa: uma de tentar encontrar um local, uma crença, um mito (talvez uma religião), que lhe oferecesse uma “estrada pra andar”, já cantava Jorge Palma nesse seu eterno clássico. Parece que ben encontrou isso. No final de lagrimento, quando a reza de “rosário” se faz ouvir, talvez nós também.


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