Em “TABULETA”, antepenúltima faixa de ESTILVS MISTICVS, nome do novo longa-duração do Conjunto Corona — dupla formada por dB (David Bruno) e Logos (Edgar Correia) —, dB abre-a com o afirmar do mito que define o percurso — e vida — do projeto: “Corona é hippie, Corona é gangsta, Corona é lo-fi”. É o resgatar de um momento de “Real”, faixa de Lo-Fi Hipster Sheat (2014), disco de estreia do grupo, onde dB apontava o dedo para aqueles que diziam que Corona “não era rap”, “era hippie”, era “hipster”. Isto não ocorre à toa. Logo a seguir, Logos resgata um verso de “Corona”, segunda faixa desse primeiro disco: “Como um virote, como um virote / Corona está sem casa a arranjar alma no escadote”.
Pela altura que “TABULETA” surge em ESTILVS MISTICVS, já percebemos várias coisas sobre este disco dos Corona. Em primeiro lugar, é um disco sobre, como indicaram ao Ricardo Farinha em entrevista por estas páginas, “morte, bruxedo e jarda”. Em segundo, os Corona regressam neste disco às suas origens. Daí as referências: é uma forma de os Corona se situarem, se afirmarem, se lembrarem de quem são e de onde vieram.
Em ESTILVS MISTICVS, os Corona regressam ao boom bap lo-fi que os estabeleceu — em particular com os dois primeiros discos — como um dos grupos mais criativos e excitantes do hip hop tuga da segunda metade da década passada. No entanto, se poderia existir o risco de os Corona repetirem fórmulas do já mencionado Lo-Fi Hipster Sheat e Lo-Fi Hipster Trip (2015), enganem-se. Ao olharem para o horrorcore — Three Six Mafia é talvez a maior referência para os beats deste álbum —, os Corona ampliam o seu universo sonoro, mas fazem-no de forma a que, simultaneamente, soe refrescante e familiar.
Se falarmos de ocultismo e espiritualidade, dois temas (e acima de tudo ambiências) explorados neste ESTILVS MISTICVS, não só ambos estão enraizados em muito do hip hop construído a Norte (pense-se, imediatamente, nuns Mind Da Gap), como surgiram esporadicamente no repertório da banda. Exemplos: “Osso”, do primeiro disco. Uns quantos momentos de Cimo de Vila Velvet Cantina (2016) — como “Redenção na Igreja dos Grilos”. Os skits de Santa Rita Lifestyle (2018). Mas se antes era apenas pano de fundo para as vivências de Corona, em ESTILVS MISTICVS é o adorno principal para esta fase de vida de Corona — do grupo e da personagem. Em “ESTILVS MISTICVS”, faixa de abertura, dB não demora a colocar as cartas na mesa sobre o assunto: “Estilos místicos, sentado na mesa a falar com espíritos”.
Então, que fase é esta onde se encontram os Corona e a personagem que dá nome ao grupo? Corona envelheceu, cresceu. Já viveu muito. Ao deparar-se com isso, percebe que pode estar prestes a morrer. Então, vai à bruxa em busca de respostas. Os Corona não vão à bruxa, mas ESTILVS MISTICVS é o equivalente a isso. É uma redenção, de certa forma. Da personagem e da dupla.
Segue-se, contudo, a questão: de onde surge esta necessidade de redenção? Entre o lançamento de Lo-Fi Hipster Sheat, em 2014, e Santa Rita Lifestyle — o disco mais completo da dupla — em 2018, o conjunto de fãs de Corona expandiu-se de forma gradual, levando que estes se tornassem um nome de culto além do circuito de hip hop. Depois, com a explosão de David Bruno a ocorrer de forma simultânea com o lançamento de G de Gandim, em 2021, os Corona ganharam ainda mais fãs, culminando num enorme concerto em Paredes de Coura em 2022 (como parte do infame dia que visou “celebrar” a música portuguesa). Corona estava no pico. Portanto, para quê redenção?
A resposta poderá estar na forma como G de Gandim foi recebido e envelheceu. No predecessor de ESTILVS MISTICVS, dB e Logos homenagearam as discotecas dos anos 2000 do Porto através do reggaeton, fugindo àquilo que se pensava ser a sonoridade e identidade de Corona. Claro que ficar preso a um só estilo ou sonoridade não é desejo de nenhum artista, mas G de Gandim é um disco… estranho. Não porque seja mau — longe disso — mas porque é um disco onde os Corona, ao reinventar-se, soam muito pouco àquilo que é o mito por trás da banda. Sim, em G de Gandim há ritmos bons para abanar a anca, hooks orelhudos, barras engraçadas. Mas se Corona é gangsta, lo-fi e hippie, poderia ser reggaeton? Meio-termo — e sim, ainda custa a acreditar que o reggaeton “podia ter sido inventado em Rio Tinto”.
Como José Duarte escreveu no Espalha-Factos ao nomear G de Gandim como um dos melhores discos de 2021, G de Gandim é um disco menos focado no “sampling” face aos álbuns anteriores da dupla, focando-se ao invés nos “ritmos e hooks”. Nada de errado com isso. O problema é que, decorrido dois anos, as faixas que melhor envelheceram de G de Gandim são as canções que soam mais próximas do mito de Corona: “Onde aparra a polícia” e “Mãe birei gandim”. Os Corona sempre foram fenomenais em conjugar psicadelismos — e honrar belíssimos paivas ao fazê-lo — com regionalismos e humor. Apesar desses elementos existirem em G de Gandim, não é o suficiente para esse disco poder ser visto como um álbum OG de Corona.
Pode não ter nada a ver com isso, mas em ESTILVS MISTICVS, os Corona ao regressarem ao seu campo predileto de jogo, relembram-nos do seu mito. É a redenção para com os fãs, talvez. Com eles próprios, quiçá. Com o Deus do Santo Paiva, também. São Corona outra vez — mais dB (e 4400 OG) e Logos, menos David Bruno e Logos. Escute-se “Gémeos”, por exemplo, onde se nota a grande camaradagem entre os dois intervenientes. Foi sempre aí onde esteve o segredo de Corona: a química gigante existente entre dB e Logos.
Os Corona — que agora além de dB, Logos, e o Homem do Robe, contam também com o Tropa Snow na formação ao vivo —, ao efetuarem esta procura pela redenção, estão também em procura pela sua identidade. Isto pode parecer estranho de auferir, pois a identidade dos Corona sempre esteve bem definida, mesmo em G de Gandim. Porém, em ESTILVS MISTICVS, nota-se que há umas quantas barras a refletir sobre como os intervenientes de Corona mudaram, em particular dB. Será o dB que colocou milhares a “gritar Mafamude” no Parque da Cidade (do Porto) o mesmo dB que tocava em caves e clubs? A resposta real a isso só o próprio poderá dizer, mas parece que em ESTILVS MISTICVS os momentos mais braggadocious têm uma veia existencialista por trás, algo que outrora não estava particularmente presente na música da dupla.
Quando inserimos a questão existencialista na equação para entendermos ESTILVS MISTICVS, começamos a perceber que o disco tem alguns paralelos com outras obras lançadas este ano, como no caso de Gótico Português, dos Glockenwise, Diabos m’Elevem, de Riça — que também conta com influências de mística pagã, tal como este ESTILVS MISTICVS — lagrimento, de ben yosei. Estes discos, à sua maneira, efetuam homenagens em busca de resposta a questões identitárias profundas. Mesmo que o disco de Corona possa ter uma componente humorística mais presente que os restantes, não é uma procura identitária menos válida que as outras. Os Corona, ao que parece, precisavam de encontrar a sua margem, de definir novas fronteiras entre aquilo que é o Corona — a personagem fictícia — e os Corona, a dupla. Se o fizeram com sucesso? A resposta a essa pergunta estará, porventura, como olhamos para a conclusão de ESTILVS MISTICVS.
Em parte, ESTILVS MISTICVS é uma homenagem dos Corona ao próprio percurso dos Corona. Serve como antologia sonora, de certa forma, do percurso que os Corona efetuaram. Soa mais próximo dos dois primeiros discos, introduz a tal componente mencionada do horrorcore, mas não esquece os ensinamentos de fazer uma canção à Corona de Santa Rita Lifestyle — “PRA CABEÇA OU PRO PEITO” é um bom exemplo disso — ou os hooks mais orelhudos de G de Gandim — “PUTA DA VELHA” ou “ORA RING DING DONG”. Esta última, contudo, é a faixa mais esquecível do disco em termos de hook, mesmo que conte com uma das barras mais hilariantes (“Quando eu morrer lá no caixão, vou ‘tar tão lindo / Sempre a mandar flex com um Rolex à Tozé Brito”).
Todavia, tudo isto, quando conjugado, levanta uma questão acima de todas as outras: será este o último disco de Corona?
Há dicas que apontam para um “sim”, mas não nos arriscamos a dar uma resposta final. Há indícios na própria estrutura do álbum que aponta para que Corona morreu — não parece ser ao acaso que a penúltima faixa seja 13 segundos de silêncio e inclua “Luz Branca” no seu título. Mas se Corona morreu mesmo, o que encontrou depois? Se foi “FUMO NA PANELA”, certamente pode ter sido só resultado de uma bad trip de um paiva que caiu mal. Acontece. Mas não descartarmos que o nome na “TABULETA” seja, de facto, o de — e dos — Corona.
Mas se este, por acaso, for o último disco dos Corona, estes despedem-se em grande. Há grandes, enormes malhas em ESTILVS MISTICVS. A já referida “TABULETA” entra logo para o panteão das grandes faixas da dupla, e o mesmo se pode dizer sobre “CORONA BYE BYE”, cujo hook pede para ser clamado ao vivo. Quando estas faixas surgem no disco, porém, já estamos a falar de morte. Antes, contudo, houve jarda. “CHICO COM A 6-35” é Corona em modo gangsta, com um 4400 OG a surgir em grande forma (“Fato de treino do City, mas do Canidelo City / O sítio onde manos param com pitas Hello Kitty / Fresco tipo mentol, trepo tipo Tintol / Dedos besuntados tipo pussycake doll (Uh-huh)”). “EI OH MARUJO”, beat afinado por uma energia punk a lembrar os shows ao vivo de Corona, é a dupla a relembrar que nesse campo, há poucos da história do hip hop tuga que tão bem aí operam. É um clássico instantâneo.
Mesmo que ESTILVS MISTICVS não chegue ao patamar (talvez inalcançável) de Santa Rita Lifesyle em qualidade, é um disco que, ao permitir aos Corona reencontrarem-se com eles mesmo, se coloca imediatamente no patamar abaixo. E se, por acaso, este for o último registo do grupo, então só podemos sorrir por os termos acompanhado tanto tempo e com tanto som de qualidade — e outras substâncias — à mistura. Não fiquemos tristes porque (talvez) vá acabar — sorriamos porque aconteceu.