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Publicado a: 22/10/2018

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[TEXTO] Moisés

É possível gostar do Conjunto Corona sem nunca ter fumado um charro? No limite, a resposta afirmativa será óbvia. A legitimidade é a mesma com que se apreciam os momentos mais bairristas de YG sem nunca ter pisado Compton ou as referências gastronómicas de Action Bronson sem nunca ter comido uma refeição gourmet (mas, pese a banalidade, talvez não seja a mesma coisa). Só que há, em Corona e em Santa Rita Lifestyle, outros universos de que é impossível fugir. Em primeiro lugar, todo o imaginário do Grande Porto, claro está.

Não que esse entendimento seja essencial para que o ouvinte se identifique e relacione com os artistas, como acontece com YG ou Bronsolino, mas sobretudo por uma questão de discurso. A começar pela finíssima escrita de Logos, mesmo que o tom raramente denuncie o conteúdo — ao bom estilo do Porto, onde a poker face é mais antiga que o popular jogo de cartas. Se as personagens de Corona são, ao quarto disco, mais reais do que nunca, isso começa na força de expressões aparentemente tão inócuas como “refustedo” ou “levas duas putas”. As letras de Edgar Correia não caricaturam quem fuma um “charro”, mas sim quem “mata um berloque” ou um “pavão”.

O quadro só fica completo com as “ninas” que vão polvilhando o vídeo que acompanha o álbum, com o 13-05-JC que os conduz ou com os interlúdios samplados das míticas rádios locais do “norte”. E é exactamente aí que se encontra o segundo grande ponto deste disco: a religião. Aqui, como representativa da “portugalidade” — ou mesmo da humanidade — no seu todo, mesmo que a pronúncia nunca se perca. A intenção e o destaque são óbvios (só os skits é que têm direito a legendas), e talvez não seja coincidência que a viagem comece em Santa Rita.

É na união desses pontos que se torna quase impossível definir, mais do que a forma, o conteúdo de Corona, e é nesses interlúdios que se percebe de uma vez por todas que as caricaturas de Logos e dB são, mais do que uma crítica jocosa, uma homenagem. O povo que retratam, e que fuma “berloques” no seu Honda Civic, é o mesmo povo que acredita em “profecias”, mas é exactamente o mesmo povo que responde a esse tipo de declarações dizendo “nós, os homens, é que temos que resolver o problema”.

O que o Conjunto Corona faz pelo hip hop, a partir do Porto, é bonito. E recomenda-se com entusiasmo redobrado: é bom que haja mais homenagens destas, às pessoas, ao país (e noutras zonas do país) e à música. A mestria de dB, no pensamento e na execução, não é novidade, e está, tal como a escrita e a entrega de Logos, cada vez mais perto do ideal — e de irónica também não tem nada. O Conjunto está mais rico, a música continua a crescer e ganha mais camadas. A mensagem, com ou sem legendas, já passou.

 


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