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Fotografia: Patrícia Afonso
Publicado a: 13/10/2023

ESTILVS MISTICVS é o “disco de metal” da dupla.

Conjunto Corona: “Isto é um álbum sobre morte, bruxedo e jarda”

Fotografia: Patrícia Afonso
Publicado a: 13/10/2023

Sem qualquer single divulgado do novo álbum, o Conjunto Corona esgotou o Hard Club, no Porto; e o Musicbox, em Lisboa. O projecto encabeçado por David Bruno (aka dB) e Logos (nome artístico de Edgar Correia) criou um estatuto de culto à sua volta desde que se apresentou em 2014 com a lufada de ar fresco, e ainda assim com um aroma clássico, de Lo-Fi Hipster Sheat.

Agora, chegou a vez de ESTILVS MISTICVS, um álbum sobretudo centrado em três temas: a morte, o obscurantismo e a jarda. O universo pagão, de muitas bruxarias, superstições e mezinhas, foi a principal fonte de inspiração para um disco obscuro que terá sido o mais “espontâneo” já feito pelo Conjunto Corona. A partir desta sexta-feira 13 já se pode ouvi-lo.

O grupo abriu duas datas extra de apresentação: ainda há bilhetes para assistir à nova performance (que volta a contar com o Homem do Robe mas que também inclui uma nova persona, Tropa Snow) a 17 de Novembro pelas 23 horas, no Musicbox; e no Hard Club a 1 de Dezembro pelas 23 horas. A edição física, como sempre, volta a ser original: desta vez o disco vem acompanhado de 25 saquetas de Chá Místico, para combater as maleitas dos ouvintes. O Rimas e Batidas entrevistou Logos e David Bruno em antecipação ao lançamento de ESTILVS MISTICVS.



A primeira pergunta que deve ser feita sempre que há um disco novo de Conjunto Corona é: como é que chegaram a este conceito? Neste caso, a este universo tão próprio de ESTILVS MISTICVS

[Logos] Tudo começou, ainda muito no ar, nas viagens da tour do G de Gandim. Houve uma quarta pessoa que andou connosco em alguns concertos, o Tropa Snow, que entra aqui como personagem no disco. E, na altura, na carrinha, nas viagens que íamos fazendo pelo país todo, foi uma temática de que fomos falando bastante. A parte da morte… e alguns temas mais crípticos, mais ligados ao obscurantismo, até porque o Tropa Snow tem bastante ligação a isso, tal como eu e o David. Percebemos que tínhamos alguns pontos em comum e que havia margem de manobra para isso. O que quero destacar acima de tudo é que sou do Porto, não tenho mesmo família na aldeia, portanto todas as minhas referências ligadas ao obscurantismo prendem-se sempre muito com aquelas histórias de que “a mulher foi ao bruxo, levou as cuecas do marido para fazer o bruxedo”, “o Pinto da Costa também vai à bruxa”, são sempre coisas muito ligadas ao urbano. Mas o facto de termos andado a viajar pelo país nestes estes últimos 9 anos, e como nunca tocámos só nos centros mais urbanos, temos falado com tanta gente… E este foi sempre um tema que andou a pairar ao longo destes 9 anos. E fez sentido agora.

[David Bruno] De facto, sempre foi um tema que me tocou muito. Ao contrário do Edgar, sou a primeira pessoa da minha família que nasceu em Gaia. Toda a minha família é da Beira interior. E sempre cresci a ouvir muitas histórias dessas, tenho até algumas que experienciei, e sempre fui uma pessoa muito supersticiosa. Basta dizer que, de há muitos anos para cá, sempre que vou tocar eu ou Corona , benzo o palco com água do Senhor da Pedra. Tenho muitas histórias. E eu recolho muitos samples de voz, aquelas coisas que são tantas vezes utilizadas nos álbuns de Corona como foram neste, para criar aquele ambiente à volta, o universo de que estamos a falar no álbum, e sempre recolhi e vi muito conteúdo desse. Em Portugal temos muitas histórias dessas, mas há poucas documentadas. Por exemplo, no Brasil, se fores procurar “reza para isto”, “pessoa possuída”, tens tudo no YouTube, toda a gente partilha tudo. E em Portugal há um certo tabu em falar destes assuntos, pelo menos em partilhá-los na net, em vídeos, etc. Sempre tive um grande fascínio por este universo, tenho muitas histórias da minha família e há muito tempo que recolhia material.

Já a pensar num disco?

[David Bruno] Não, às vezes vejo muitas coisas destas sem ser a pensar em discos. Falando mais do álbum, passámos pelo processo de sempre, que são primeiro os instrumentais e depois o conceito. Foi num aniversário em que a minha namorada me deu um disco de Cypress Hill, o Temples of Boom, e o DJ Muggs sempre foi uma grande referência para mim ao fazer os instrumentais para Corona. E recebi aquele disco, comecei a ver o material que tinha para lá, entretanto recebemos também os skits que usámos no álbum, do Tropa Snow e do Homem do Robe a falarem. E depois de ter isso fiz os instrumentais mesmo rapidamente. Foi um mês. E o Tropa Snow fala sempre com propriedade sobre aqueles temas. Aquilo é 100% espontâneo, não escrito, não alinhado e foram respostas a perguntas que eles não conheciam antes para um podcast que nunca sequer chegou a sair. Mas, pronto, juntaram-se estes ingredientes todos e decidimos fazer um disco sobre este tema, que, como o Edgar dizia, nos toca muito e, em geral, a Portugal.

[Logos] O país todo.

[David Bruno] Que deve ser o país da Europa onde as pessoas mais acreditam nisto…

[Logos] Portugal é o último grande reduto do obscurantismo da Europa. Mais de metade da população acredita piamente… Os presidentes de clubes de futebol, todos eles usam…

[David Bruno] E falas com alguém, contas uma história, e há sempre alguém que diz: “Uma vez, também me aconteceu isto e aquilo…” Há sempre histórias. E foi assim que chegámos a este álbum.

[Logos] Mas o álbum não é todo sobre bruxaria. A morte também é aqui algo que está muito forte e a jarda. Isto é um álbum sobre morte, bruxedo e jarda.

David, estavas a referir a influência do DJ Muggs em Corona. Aqui baseaste-te num universo sonoro específico para recolheres os samples para os instrumentais?

[David Bruno] Sim, sobretudo bandas sonoras de filmes de terror, também algum rock progressivo que tem partes muito escuras, por vezes… E já não fazia instrumentais destes há muito tempo e soube-me muito bem voltar a esta fórmula. Mas, sim, o universo samplado é esse: terror.

Como estavam a dizer, primeiro vêm os instrumentais e depois as letras do Edgar. Neste caso, como foi para ti entrar no estado de espírito para escrever?

[Logos] Eu e o David trabalhamos juntos há 9 anos. E em 9 anos nunca recebi uma mensagem destas por parte do David… Estava eu a trabalhar no escritório e recebo mensagem a dizer “Tens que vir à minha casa” [risos]. Respondi “Estou a ir, conta comigo”. E eram estes beats. Num espaço de 15 dias, diria… para mim também foi imediato. Um mês depois, no máximo, estávamos a gravar em casa do David aquilo que viria a ser este álbum.

Muito rápido, também.

[Logos] A temática foi muito natural, muito espontânea. O próprio facto de me sentir logo confortável com a abordagem a esta estética… Foi uma fluidez de temas e formas e cores que queria dar às letras. Diria que foi mesmo dos álbuns mais espontâneos que fizemos.

E como é que partem do obscurantismo para depois falarem da morte e da jarda?

[Logos] O álbum está mesmo um pouco dividido por esses temas. Se reparares, a primeira parte do disco é essa jarda, Corona em loucura total, nada corre bem, está sempre a tentar coisas e há sempre algo que lhe traz azares; depois vem toda a temática da bruxaria. Ele começa a procurar ajuda, porque não consegue resolver a vida dele, está sempre a dar merda. E depois culmina com esta parte da morte ou não. Fica em aberto se a personagem morre ou não. Até porque a última faixa é mais luminosa, parece quase…

[David Bruno] O atravessar para o outro lado.

[Logos] Ou então foi mais uma coisinha que ele tomou, foi para o outro lado mas não tanto.

Mas a eventual morte não representa o último capítulo de Corona, certo? Não poderá ser nada nesse sentido?

[Logos] Até agora, tudo o que foi escrito, pelo menos falando por mim, na criação das temáticas, vai ali até aos meus 28 ou 29 anos. Que foi precisamente quando eu e o David nos conhecemos. Estamos a falar de histórias dos meus 12, 13 até aos finais dos meus 20 anos. Se vamos continuar a escrever, dos 30 aos 40 do Corona, vamos ver. Estamos quase a chegar aos 40, já falta pouco, e, a continuar, se calhar a personagem também será um pouco diferente, porque está noutra década.

E já leva uma vida bem cheia.

[Logos] É um facto. Resta saber se a vai continuar a encher, ou se a vai esvaziar.

E como é que o Tropa Snow, figura importante neste disco, se junta a vocês?

[David Bruno] Foi através do Homem do Robe. Ele é que criou essa persona no universo dele. Entretanto o Homem do Robe também é um artista a solo e tem o seu próprio universo. E conhece o Tropa Snow, que é amigo dele, e convidou-o para fazer esta persona a nível de podcast. Portanto, o Homem do Robe é que trouxe o Tropa Snow para Corona. Nós criámos o Homem do Robe, o Homem do Robe criou o Tropa Snow.

[Logos] É a luz branca do Homem do Robe, no fundo. Ele é o cavaleiro da luz branca, o Tropa Snow. Porque a luz branca mata sempre a luz negra, um gajo não se pode esquecer disso.

Portanto, a formação ao vivo vai consistir em vós os quatro?

[Logos] Sim, esperamos que sim. Às vezes o Tropa Snow pode… Um cavaleiro da luz branca tem os seus afazeres, mas esperamos que sim, que possamos contar com ele maioritariamente nos concertos. É um quarteto, digamos que este disco é um gangue de quatro de Corona.

Também é uma característica de Corona: a formação ao vivo vai-se alterando ao longo dos anos e dos álbuns.

[Logos] É uma família. Neste jantar vai este primo, no próximo Natal vamos aos avós, é uma família. No fundo continuamos todos por aqui, sempre com muita ligação, mediante também as temáticas e a própria vida. Nem sempre dá para todos estarmos presentes. Mas é uma família.

Para construíres as letras foste buscar muitas memórias de coisas que foste ouvindo ao longo da vida, as tais superstições, as ligações a este universo?

[Logos] Eu quase que não escrevi, só escrevi para não me esquecer, para não chegar à casa do David e não me lembrar do que queria dizer. Foi mais isso. Foi um álbum que viveu muito mais de apontamentos e de um mood. Eu tendencialmente gosto de sonoridades escuras, são sedutoras para mim. Por isso deixei fluir. Foi entrar no mood, deixar a minha cabeça navegar para essa altura dos meus 28 e 29 anos, que realmente foi um momento complicado, que foi quando conheci o David. Nessa altura apanhei a minha geração a arrancar de Portugal e eu também estava mesmo, mesmo na calha de bazar. Foi uma altura de muita jarda, de toda esta temática obscura que está no disco. Para mim é muito mais fixe escrever 10 anos depois sobre as coisas. Já me rio da situação, depois já nunca a vês exatamente como ela foi. Já a vês com a perspetiva de não sei quantos anos, já nem te lembras muito bem se aquilo foi bem assim. A própria distância dá-nos… Há muito tempo que não escrevo sobre o “agora”. Gosto de dar esse tempo. Às vezes a forma como falamos sobre as coisas são completamente diferentes 5 ou 10 anos depois. E uma grande novidade neste disco é que finalmente tenho o meu partner na linha da frente em todas as músicas, 4400 OG, que também é ressuscitado, e que fluiu tão naturalmente quanto foram as minhas letras. É como se estivesses uns anos a falar sobre uma coisa é uma conversa que é regular nas nossas viagens, nos nossos momentos pessoais e basicamente foi deixar fluir.

[David Bruno] No meu caso, eu sou um bocado mais literal. Eu tenho mesmo muitas referências a este tema e a experiências pessoais. Quando digo que o “sal grosso na baqueta com a boca aberta é mau olhado” é a reza do mau olhado que a minha avó me ensinou a fazer para me proteger a mim e aos outros. E quando digo que estou protegido pela água da capela do Senhor da Pedra e as rezas de uma velha na Serra da Freita era a minha bisavó que era de lá [risos]. Tenho muitas referências. E outras são completamente wordplay, mas quase todas as letras têm muitas referências de histórias pessoais que têm a ver com este universo de mezinhas, paganismo, obscurantismo, etc.

E foi por teres essa ligação mais pessoal que quiseste estar mais presente em voz?

[David Bruno] Não sou eu que mando [risos], eu não mando nada nisso. Eu faço os instrumentais e depois o Edgar é que decide quem são os convidados. E foi ele que disse.

[Logos] Até parece mal, porque o David é que faz os beats, mas eu é que o convido para cantar nos próprios beats [risos]. Mas fazia todo o sentido, pela temática e não só. Finalmente vamos estar os dois na linha da frente nos concertos. Até já começámos a ensaiar.

E vocês agora vão ter as datas de apresentação. Certamente, pelo menos em Lisboa, poderiam ter-se atirado para uma sala maior. Quiseram fazer no Musicbox por terem ligação à sala e o espaço proporcionar aquele ambiente de proximidade?

[David Bruno] Precisamente, foi uma questão falada muitas vezes, poderíamos ter ido para um sítio maior, mas quisemos aquela sala porque foi ali que apresentámos os nossos álbuns todos. É pequena, vamos abrir uma segunda sessão e se calhar vamos partir-nos todos ao fazermos dois concertos de seguida, se calhar vamos de muletas para o Porto [risos]. Mas era precisamente esse ambiente que queríamos, porque todo o processo, o ambiente à volta deste álbum, etc., faz-nos lembrar muito os primeiros álbuns. Daí querermos fazer isto no Hard Club e no Musicbox.

E vai haver coisas novas em palco, elementos ligados a este universo?

[David Bruno] Sim. Como o Edgar já tinha dito, agora somos quatro. Portanto, temos dois performers em palco o dobro da performance. Eu também vou estar sempre à frente. Estamos a criar um espetáculo que tem também projecção de vídeo e luzes para conseguir proporcionar o ambiente escuro do álbum ao vivo. Estamos a preparar-nos para fazer um show para o pessoal sair de lá com nódoas negras, à metaleiro mesmo [risos].

[Logos] Este é o nosso álbum de metal [risos]. E no disco a própria mistura das vozes não está exactamente igual ao que é costume. Ou seja, parece que há sempre uma nuvem à volta das palavras, que se prolongam mais um pouco, e nós vamos tentar reproduzir isso ao vivo. Porque é realmente essa neblina que cria a intensidade do concerto. Aqui há um trabalho diferente na sonoplastia, nos delays das vozes, em criar todo esse ambiente mais obscuro. E, ao vivo, isso vai-se notar.


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