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Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 12/11/2021

Como ser um gandim em 13 passos.

Conjunto Corona: “O reggaeton podia ser de Rio Tinto”

Fotografia: Renato Cruz Santos
Publicado a: 12/11/2021

G de Gandim acaba de sair e é o novo e diferente projecto de um dos duos musicais mais emblemáticos do hip hop feito mais a Norte, o Conjunto Corona. Com uma sonoridade mais próxima dos géneros com pendor latino como reggaeton — que a dupla garante ser parte importante da cultura musical e “chunga” portuense dos anos 2000 -, o mais recente disco pode levantar algumas sobrancelhas e fazer alguns fanáticos torcer o nariz à primeira audição. A esses, dB e Logos recomendam uma segunda tentativa, chegando mesmo a afirmar que “está ali tudo e muito mais do que foi feito em Corona até agora”.

Nas entrelinhas, como já é típico do grupo, são inúmeras as histórias esboçadas pelas centenas de referências à cidade que tem vindo a mudar ao longo dos últimos anos: do desaparecimento de restaurantes e confeitarias de eleição dos nossos artistas à migração da vida nocturna para o centro da cidade. Pelo caminho há tempo para deixar uma ou outra dica ao Chef Rui Moreira e uma opinião quanto às propostas para criminalização do consumo de drogas e à instalação de câmaras de videovigilância na baixa da cidade.

Mas para os mais curiosos o melhor é arrecadar um bilhete para os concertos em Lisboa e Porto o quanto antes, em Dezembro.



A última vez que falámos foi há cerca de três anos, quando saiu o Santa Rita Lifestyle. Desde então que Conjunto Corona não apresenta novos temas. O que é que se passou? Foi a pandemia que vos fez abrandar?

[dB] Nós falámos mesmo no início do Santa Rita e depois tivemos dois anos fortes com concertos sempre a bombar.

[Logos] Na verdade estamos parados nem há dois anos…

[dB] Mas estivemos parados desde que começou a pandemia.

[Logos] Ainda tocámos duas datas em Março, a última foi na semana antes do primeiro confinamento, ainda sem máscaras nem nada.

Foi bom então, deu para despedir.

[dB] Nada disso, foi muito mau! Os concertos que tivemos foram em Aveiro e no Fundão em dias seguidos. No Fundão estavam os bilhetes todos vendidos e não apareceu ninguém porque nos chamávamos Corona.

[Logos] Já só tocamos para meia casa, é verdade. Sofremos por causa disso, um bocado como a marca de cerveja, não é? Depois deixou de se falar em Corona e passou a falar-se em COVID-19. Mas é verdade que estivemos estes dois anos sem lançar nada, mas sempre a trabalhar. Não fazia sentido com o nosso tipo de concerto tocar para pessoal sentado e com máscara.

[dB] Parados mais com um álbum feito!

É essa a ideia que eu tenho, que já têm o disco pronto há bastante tempo.

[Logos] Está mesmo fechado desde Maio do ano passado. Há mais de um ano e meio.

[dB] Quando começou a pandemia também já tínhamos muita coisa encaminhada.

[Logos] Sim, eu já tinha escrito quase tudo. Começámos a escrever em Novembro de 2019, mas depois tivemos que esperar.

Por curiosidade e só para por os pontos nos Is, o Gandim do Guilherme Duarte não tem nada a ver convosco, pois não? É que eu nunca tinha sequer ouvido esta palavra e de repente aparecem dois projectos com nomes muito semelhantes e em simultâneo… deixou-me a pensar.

[Logos] Não, senhor, é uma daquelas felizes coincidências.

[dB] E está tudo bem com isso.

[Logos] Aliás, vai ser agora que vamos, finalmente, conseguir meter a palavra no dicionário. Vai deixar de estar só no Priberam e passar para o da Porto Editora.

Mas falando agora da música em si, este G de Gandim segue numa direção muito diferente do último projecto. Apostaram mais numa sonoridade próxima ao reggaeton e aos perreos, falem-me um bocado sobre a ideia e o conceito deste projeto.

[dB] É fácil, na parte dos instrumentais posso-te dizer que o Porto sempre teve uma ligação a estas sonoridades enquanto em Lisboa, que é onde estamos, sempre houve uma ligação — em termos mais tropicais — ao universo afro desde o tempo da kizomba antiga, e continuas a ter muito afro e afrobeat, etc. Já o Porto, por sua vez, sempre teve uma ligação gigantesca ao universo da música latina, e estou já a falar do tempo dos avós do Edgar.

[Logos] Ouviam muito Júlio Iglesias. A musica hispânica sempre teve mesmo muita tradição no Porto.

[dB] O reggaeton não é diferente. E agora vou-te explicar porquê o reggaeton, porque não tem a ver com esta explosão actual do género quase como um género pop. Eu e o Edgar somos os dois de 1985 e começámos a sair à noite por volta dos anos 2000 e foi a altura em que começaram a aparecer os primeiros êxitos globais de reggaeton, para aí com o Don Omar, que, na altura, apesar de se tornar num êxito global, era uma estilo de música muito marginalizado.

[Logos] Mal visto, até.

[dB] Nessa altura, em Lisboa, devia-se andar a ouvir a tarraxinha e etc., mas no Porto o Don Omar e o Nicky Jam eram fenómenos enormes.

Era isso que ouviam nas discotecas?

[Logos] Na abertura da pista, mas depois passavam house e techno.

[dB] No que diz respeito à história do Corona, este capítulo tem a ver com esses anos badalados da noite do Porto. que era passada não nas Galerias de Paris nem na baixa da cidade, mas naquelas discotecas à antiga com o porteiro à porta e que estão bem reflectidos no disco com aqueles skits em que as raparigas passam à frente de dois rapazes sozinhos.

[Logos] Quisemos explorar esses rituais todos, coisas como não se poder entrar de chapéu nem de fato de treino. “Hoje afinal é festa privada, são 250 euros para entrar”, enfim…

[dB] Temos estas memórias porque foi quando começámos a sair à noite. Eu falo por mim, mas na altura ainda não era o maior apreciador de house nem de tech-house, embora hoje em dia já saiba apreciar essas coisas. Eu gostava de hip-hop, que era também um estilo muito marginalizado, e havia o reggaeton também muito marginalizado mas bem mais foleiro e muito mais popular. Quando saía à noite ficava encantado com estas tais pistas de abertura. Havia uma pista que servia para abrir a discoteca, e depois entrava a pastilhada.

[Logos] Tinhas aquelas coreografias que o pessoal fazia…

[dB] Sempre fui muito fã de reggaeton, e sobretudo do lado punk que ganha através do do It yourself. Porque, afinal, quando começou, eram gajos que faziam a sua música em casa com as letras mais badalhocas e simples que pudessem haver, e conseguiram fazer aquilo explodir a um nível mundial. 

[Logos] Era uma coisa genuína e representativa.

O espanhol também é um idioma que adoça a coisa. Soa tudo menos mal, não é?

[dB] É verdade, mas o sotaque do Porto não é pior que o espanhol. Eu era muito fascinado por este género de música. No carro, no backstage… sempre ouvimos muito. Houve uma altura em que eu fui a pé por Gaia, Porto, Maia, Ermesinde e atravessei a cidade toda — foram para aí três horas a pé e ia a ouvir uma playlist de reggaeton. E à medida que ia passando pelas zonas suburbanas do Porto e via as pessoas eu dizia “meu deus, isto parece que foi inventado aqui”.

[Logos] O reggaeton podia ser de Rio Tinto.

[dB] O reggaeton é completamente de Rio Tinto! Quando acabei o meu passeio, quis fazer uns instrumentais de reggaeton. Utilizei uns drumkits de reggaeton, mas o resto foram só VSTs e umas coisas mínimas. E fiquei com um pack de instrumentais sem qualquer objectivo, o que me remete para o nosso primeiro álbum [Lo-Fi Hipster Sheat], que foi igual: tinha um pack de instrumentais com samples de rock psicadélico que mostrei aqui ao Edgar. Com o reggaeton a diferença é que nem lhe ia mostrar.

E como é que surgiu a ideia de fazer dali um disco?

[dB] O Edgar foi um dia a minha casa e eu disse-lhe que tinha mesmo de ouvir aquelas cenas, que me faziam imenso lembrar o SoundPlanet e aquelas discotecas da zona industrial do Porto.

[Logos] Por coincidência estávamos já a pensar no quinto álbum, embora sem grandes ideias em específico, mas havia duas coisas de que eu estava certo: estava a atravessar uma fase em que os instrumentais habituais não me estavam a puxar e sabia que queria falar sobre a transformação da cidade do Porto. A minha base antes de Corona já era o rap e fiquei a sentir que já tinha feito aquilo tudo. Já o Santa Rita foi, entre aspas, o álbum mais fácil de fazer porque eu já estava muito dentro de tudo, mesmo do personagem e na abordagem, por isso é que também é, claramente, o nosso melhor álbum. Então, chegou uma fase em que me cansei; queria fazer algo diferente mas não sabia o quê.

Depois, em termos de narrativa, queria falar sobre a transformação do Porto porque estive uma temporada aqui a viver em Lisboa por questões de trabalho, e quando voltei senti que a minha cidade estava muito diferente. Tinha os mesmos problemas mas pareciam estar mais escondidos, um bocado como acontece aqui por toda a situação do turismo há muito mais anos do que no Porto. E isso passou por perceber que o Presidente da Câmara queria voltar a criminalizar o consumo de drogas, uma cena que já tinha sido descriminalizada nos anos 90; meter câmaras de vigilância na cidade… Queria falar sobre isto.

Quando contei ao dB que queria utilizar os instrumentais, ele respondeu-me que eu era tolo.

[dB] Foi mesmo essa a minha resposta… “Tu és tolo”.

[Logos] Pedi-lhe os beats para os estudar durante uns meses porque precisava de perceber o que é que conseguia fazer ali, se é que conseguia fazer alguma coisa, e hoje estamos aqui. E Corona sempre foi isso. A nossa cena sempre foi inovar de alguma forma e agitar as águas. Podemos explorar o auto-tune, que era algo sobre o qual sempre tive muita curiosidade para perceber se teria uma aplicabilidade diferente daquela que estamos cansados de ouvir, muito repetitiva em termos de abordagem.

Em termos de colaborações, apresentam só um nome, Fred&Barra, e deixaram cair o Kron, por exemplo, que era um habitual.

[Logos] Fred&Barra já é colaboração habitual e o Kron faz parte da equipa ao vivo, mas neste álbum não está.



Em termos das letras, falaste, Edgar, que querias discorrer sobre as mudanças da cidade do Porto. Onde, especificamente, é que podemos notar essas referências?

[Logos] No “Onde Aparra a Polícia” tens uma referência ao Zomato por causa dos restaurantes, na “Alucina Eugénio”, que é a primeira faixa, tens logo uma forte referência às tradições do São João com a malta a assar sardinhas e, ao mesmo tempo, o Chef Moreira — que é o [Presidente da Câmara do Porto] Rui Moreira — a “filmar” e a “fumar” no fim.

Hipócrita…

[Logos] Exactamente. Mas há muitas, o álbum está repleto delas. Na última, o “Solero Bootleg” fala-se da Maria Contumil que é uma senhora… a Maria que mora no bairro de Contumil onde tem duas casas. Numa dessas casas vende sapatilhas bootleg, Air Force, Air Max… tudo contrafeito a 20 ou 30 euros.

[dB] Tens o “Ben-u-ron”, que é sobre as discotecas todas que existiam no Porto no final dos anos 2000. 

[Logos] O refrão são só discotecas do Porto. A SoundPlanet, Act, Indústria… 

[dB] A “Silo-Walk” é uma música que fala só sobre a Rua Gonçalo Cristóvão, onde está o Pérola Negra. 

[Logos] E nessa rua tens o famoso parque de estacionamento ao alto que foi um ex-libris dos anos 80 da cidade, o Silo Auto. E há muitas mais referências sobre espaços que já nem existem, como o Big Ben, que era uma confeitaria. Este é o álbum com mais referências de Conjunto Corona, e mais calão também.

E o Corona anda a fazer o quê neste disco. Foi à discoteca viver os velhos tempos, é isso?

[Ambos] Anda na noite.

[dB] E a relembrar esses tempos de loucura em que a noite do Porto se passava nessas zonas industriais e quando a vida era diferente. A nível de ser um gandim passava muito por sair à noite nestes sítios e por um outro lifestyle mais falado em músicas como o “Mãe birei Gandim”. Esta é quase uma música de memórias pessoais. É a nossa “Dia de Um Dread de 16 anos” [tema do Allen Halloween].

[Logos] Mas mais novo ainda. 

[dB] Quando eu comecei a sair à noite, as merdas todas que fazia na escola eram mais infantis e acredito que menos problemáticas. Hoje os jovens têm mais informação e são mais hardcore nas porcarias que fazem.

[Logos] São mais premeditados, talvez. 

[dB] E fazem coisas mais a sério. Antes fazias merda do tipo de soltar um peidinho engarrafado na sala de aula, chegavas à noite e apanhavas uma bebedeira e ‘tava tudo bem. Hoje os jovens já não fazem essas infantilidades mas metem-se a mandar umas merdas bem pesadas numa idade muito pequena. O “Mãe birei Gandim” é isso, é esta noite do Porto vista por um miúdo.

[Logos] E respondendo à tua pergunta, esta é a maneira que o personagem tem de explicar de vez o que é isto de ser um gandim, porque ele já é um gandim desde o primeiro álbum.

Outra coisas que salta ao ouvido são os skits que deixaram de ser samplados…

[Logos] Isso é uma meia verdade. No primeiro álbum temos muitos skits gravados por nós, foi um bocado até um regresso à origem.

Foi uma coisa premeditada ou não tinhas alternativa por falta de material que te agradasse, David?

[dB] Foi sobretudo porque o que queríamos descrever eram memórias sobre o que era sair à noite naqueles tempos e aquele estilo de vida. A conversa na casa de banho, a cena do porteiro à entrada… é muito difícil arranjar cenas gravadas sobre isso.

E ao vivo, o que é que podemos esperar deste álbum?

[dB] Bandidagem total.

Há algo que, calculo eu, deve sempre passar pela mente de um artista quando lança um projecto novo. Vocês não têm aquele receio de desiludir as expectativas dos vosso fãs? E pergunto isto sobretudo pela mudança de sonoridade entre álbuns.

[Logos] Estamos com bastantes expectativas, claro. Mas não podemos fazer nada se não esperar para ver como vai ser recebido. 

[dB] Nos concertos não vamos só tocar as músicas novas. Vamos partilhar a setlist com repertório mais antigo de outros discos. Mas quem perceber o universo de Corona e esta cultura regional e “chunga” do Porto não vai notar diferença.

Com o nosso primeiro álbum, as pessoas também andaram muito tempo a perguntar-se o que raio era aquilo. Tem a ver com a base sólida por trás, e este álbum é construído com o mesmo critério e está a falar sobre as mesmas coisas. Eu percebo que a mudança de sonoridade possa ser estranha para algumas pessoas, mas peço só que ouçam o álbum mais do que uma vez, e vão começar a descobrir que está ali tudo e muito mais do que foi feito em Corona até agora.

Este projecto é só sobre ser disruptivo, a única coisa que se mantém sempre intocável é o lado B da cultura portuense. Não temos medo, amigo. 

E não têm medo que um dia vos acabe essa veia imaginária da cultura urbana portuense?

[Logos] Ainda nem vamos a meio. Já temos seis álbuns e nunca tínhamos falado sobre esta fase em específico de 2000 a 2005, mais ou menos. Eu raramente escrevo sobre coisas que se estão a passar agora. Gosto que as coisas marinem porque passados uns anos tens uma perspectiva melhor e mais abstrata.

Corona é nostálgico, não é?

[Logos] É um pouco, sim. Mas tentando sempre fazer a ponte para o atual.

[dB] Nós podemos parar de falar sobre isto e cansar-nos, mas a nossa fonte de inspiração vai estar a escorrer para sempre. 

[Logos] Nós temos 36 anos e, pelo menos eu, ainda não escrevi nada sobre os meus trintas. Se calhar só vou escrever aos 40. Também não fazia sentido falarmos sobre o COVID, o tema ainda está quente. 

E quando é que vamos poder ouvir tudo isto ao vivo?

[dB] Ora, 3 e 4 de Dezembro no Musicbox em Lisboa, e depois há também concertos marcados para os dias 10 e 11 de Dezembro no Porto, no Pérola Negra. Os bilhetes estão todos disponíveis online. É coisa de clicarem no link da bio do nosso Instagram [risos].


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